29 abril 2005

Au Bonheur des Dames (de gôndola)


Guia de Veneza para principiantes
(modesta proposta para um guia de turismo cultural)


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1. Veneza não é Aveiro - faltam-lhe as enguias de escabeche, as salinas e a estátua de José Estêvão. Também não tem o Eng. Ângelo Correia e, "porca miséria", barricas de ovos moles.

2. Em Veneza não há mar que se veja. O Adriático é, em termos náuticos, um vago lava-pés perante a grandeza do Atlântico. Também é verdade que do Lido, em dias especialmente claros, olhando em frente pode ver-se a Dalmácia ou, com esforço a Albânia: de Aveiro, por mais que se queira não se avista Nova Iorque. Nem sequer a estátua da liberdade.

3. Veneza não tem estação da CP. Aveiro tem, como qualquer utente da linha norte decerto saberá: entre Coimbra e Porto, o foguete pára e ouve-se uma voz: "Aveiro, estação de Aveiro, previnem-se os senhores passageiros que esta composição parte dentro de um minuto".

4. Tanto Aveiro como Veneza têm, nos arrabaldes, fábricas que lhes dão o indispensável toque de progresso . A primeira possui uma odorífera fábrica de celulose enquanto a segunda apresenta, para quem goste, uma olorosa refinaria em Mestre.

5. Outra semelhança que nos apraz registar diz respeito à indústria de louças e afins. Se Veneza produz "Muranos", Aveiro tem a "Vista Alegre", esta bem mais útil e completa que aqueles, convém dizê-lo sem falsos pudores nacionalistas.

6. Em ambas as cidades há um festival de cinema mas não vamos discutir qual o mais interessante. Em arte os gostos não se discutem e, aliás, foi em Veneza que Manoel de Oliveira ganhou um "leão de ouro", o que prova à saciedade que os portugueses nada devem aos outros, mormente aos italianos.

7. Concede-se, todavia, que o carnaval de Veneza é mais vistosos que o de Ovar. Mas é muito menos divertido que o do Rio de Janeiro, agora, de resto, com sucursal em Viana.

8. Em matéria prisional, porém, Veneza goza de uma característica única: para se fugir dos "Piombi" era necessário trepar aos telhados e, de lá, tentar chegar a porto seguro. A honrada cadeia comarcã de Aveiro permite o recurso a técnicas mais experimentadas quais sejam a de cavar um túnel.

9. O sistema de transportes públicos veneziano assenta numas poucas linhas de "vaporetti" ou em gôndolas, métodos primitivos, demasiado aquáticos para meu gosto dada a possibilidade de cair ao canal ou de molhar a roupa. Isto para já não falar de enjoo ("mal di mare") de que muito boa gente se queixa.

10. Aveiro (masculino) tem uma ria. Veneza (indubitavelmente feminina) tem o Ri del Vin onde, surpreendentemente, só corre água pouco limpa. Aliás, quanto a águas Veneza está servida (águas correntes quentes e frias, "acqua alta" e "acqua piena di merda") mas Aveiro não deixa os seus créditos por mãos alheias (água do luso, colónia, da companhia, aguardente velha, ginjinha e amêndoa amarga - esta última só em casas rigorosamente seleccionadas).

11. Em Veneza há venezianas. Em Aveiro também mas em declínio; agora prefere-se persianas de plástico que duram mais. Aliás janelas com tabuinhas só para bordeis e outros estabelecimentos similares.

12. Veneza não tem personalidade própria. Em francês é Venise, em alemão Venedig e em inglês Venice. Inclusivamente em italiano não é Veneza é Venezia. Aveiro é, lusa e triunfantemente, Aveiro, cá, lá ou na Bechuanalândia.

13. Em Veneza só há casas velhas com a excepção de Casanova que, aliás, se chamava Giacomo de Seingault. Em Aveiro, Deus seja louvado, o progresso é vertiginoso e as casas são todas novas ou, pelo menos, muito arranjadinhas.

14. O doge de Veneza tinha hábitos sexuais bizarros para não dizer deletérios - casava-se com o mar. Como e com que consequências, desconheço. Em Aveiro os duques casavam-se com as duquesas, faziam-lhes filhos e, quando havia oportunidade, ainda fabricavam uns bastardos por mero desenfastio e para não perder o treino. Infelizmente o Marquês do Pombal matou o último duque e, desde esse momento, Aveiro foi uma cidade republicana como se prova pelos congressos que lá se faziam.


PS "C'est triste Venise
au temps des amours morts ...

"Em Aveiro
é tudo porreiro!

O texto como de costume tem anos. Acontece, porém, que o cronista parte para Veneza e, desta vez, vai de cicerone da mulher que se estreia em lides italianas. Como de costume deixa umas recomendações:


Discos: Vivaldi: sonates pour violoncelle (Alpha004) Concertos transcrits pour clavecin (Symphonia, SY00175. Monteverdi: il sesto libro de madrigali (Arcana A321) e Vepres (Raumklang RK9605)
Guias: o incontornável guide du routard para não se deixar lá a pele e o sumptuoso (e quase esgotado) Venise: guides Gallimard! Coisa fina!
Para terminar alguns livros: a impressionante “Civilta di Venezia” em três tomos, por G. Perocco e A. Salvadori (LOA Stamperia di Venezia, editrice) “Histoire de la republique de Venise” de Pierre Daru (Bouquins, Robert Laffont), “Marca de Água” de Joseph Brodsky e obviamente algunns policiais: os de donna Leon, americana expatriada na cidade lagunar e um belíssimo Fruttero & Lucentini (essa dupla maravilha). Há-de ter sido editado por cá com um tírulo deste género: “O amante sem domicílio fixo”. O cronista atreve-se a acrescentar um livro a sair brevemente, por si traduzido: “A Tempestade” de Juan Manuel de Prada, Âmbar.
Para os que vão à Gulbenkian, aos livros, ou e-mailam (atenção José): não percam de Paulo Quintela, as “Obras Completas” volumes 2, 3 e 4. São centenas de páginas de tradução de poesia. Da melhor: Goethe, Rilke, Brecht, Holderlin e Nietzche, entre outros.


A propósito, faz hoje anos que se libertou Dachau. Lembremo-nos disso: para que não se repita!

4 comentários:

Amélia disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Amélia disse...

Buon viaggio!

[já lhe disse como gosto destes seus textos de Au boinheur des dames?]

Vivi um ano em Aveiro(lá ,me estreei em 1966 como professora) e vi lá belíssimos pôr-do-sol no outono.
Estive por duas vezes em Veneza e da primeira vez que saí, sozinha, por aquelas ruelas,por detrás do Canal,(ainda afastadas de San Marco) de repente senti-me dentro de uma obra de arte e emocionei-me.Havia algo de estranho que não sabia bem definir - depois e de repente dei-me conta -não seria só disso, mas não havia automóveis...
Nunca uma cidade me rmocionara assim, antes.Estranho, não é?

Morrer em Veneza? Não, viver em Veneza -talvez.

29/4/05

Silvia Chueire disse...

Tenha uma boa viagem !

De Veneza tenho uma recordação encantadora, nos muitos significados do encanto.Uma beleza sempre. À noite um cenário fantástico e silencioso, inspirador mesmo. E de dia tanta gente, a praça, os palácios. Linda Veneza. Tenho também a promessa de alguém irmos lá juntos.

Aveiro pareceu-me uma cidade interessante e bela. Os barcos, lindos, cheios de cores. A praia...Ah sim, bela.

Abraços,
Silvia

metropolis disse...

Permita-me apenas duas pequenas correcções:

-Veneza tem estação da CP (ou da equivalente italiana, Trenitalia). Chama-se Santa Lucia, nome herdado da pequena igreja que aí existia até à construção da ponte (1841-1846)e à conclusão da linha ferroviária Milão-Veneza (1857).

-A "olorosa refinaria" situa-se não em Mestre, mas em Marghera, a poente da cidade lagunar. Os pores-do-sol costumam ter como silhueta as esbeltas torres da refinaria...

Obrigado pela discografia/bibliografia!