08 abril 2005

Au Bonheur des Dames (primeiro numero)

A imortalidade do cronista, descomposta e em companhia desabonatória

1. "Os amigos não têm defeitos"
2. "Dizer bem é supérfluo"
(Regras de vida de M..S. figueirense cosmopolita)


Ponhamos, leitora, que um destes dias, ensandecida pela curiosidade, entras numa livraria e compras a "Ilíada" de Homero (se é que ainda por aí corre a edição da Sá da Costa). Desatas a ler aquela voluptuosa maravilha e chegado que sejas à rapsódia sexta, deparas-te com o episódio do duelo de Diómedes e Glauco. Tal duelo não se realizará pois os dois heróis descobrem que são "hóspedes hereditários" trocam as armas (de ferro as gregas, de ouro as do troiano) e vão à procura de outras vítimas mais desconhecidas.

Homero, neste passo que é, juro-te!, sublime, descreve uma das mais belas instituições gregas - a hospedagem. Trocado por miúdos: nas cidades helénicas só os habitantes - aliás nem todos - tinham direitos e protecção legal. Os estrangeiros que a elas chegavam para comerciar só se protegiam de incómodos quando considerados hóspedes de um cidadão. Tal favor retribuía-se na cidade do hospedado, o que, para além disso, dava sempre oportunidade a festas e troca de presentes.

assis1.gif (25493 bytes)Vem toda esta balivérnia a propósito de "Trabalhos e Paixões de Benito Prada" festejadissimo romance do Fernando Assis Pacheco. Obra acabada digo-vos eu. "Bem acabada" remata, unânime, o coro dos críticos literários uma vez sem exemplo.

Ocorre, neste ponto, dizer que eu e o Fernando somos amigos desde Coimbra. Amigos "hereditários" até, já que os nossos respectivos pais se conheciam e estimavam.

E, como os hóspedes homéricos, temos trocado presentes ao longo destes mais de 30 anos. Ele dá-me livros e eu chego-me com umas botelhas de Porto, fabrico do Avó Alcino, coisa fina de se beber.

Entremos, porém, no objecto da crónica. Aí vai.

Que o Fernando era poeta e do melhor que a sua geração produziu já não há quem duvide. Que na prosa não deixava créditos por mão alheia idem, aspas. Mas romancear o que se chama romancear é que é novo e alviçareiro.

Até aqui cumpri a primeira regra acima exposta. Haverá que temperá-la com a 2ª para a missa chegar ao "ite".

Ponhamos que o Fernando me desconsiderou e gravemente. De facto o abencerragem do Galego Prada (avô do autor) enxameia o romance de amigos e conhecidos: o João Rodrigues agiganta-se como croupier reviralhista do Casino Peninsular, o António Cunha Pinto, que assoma na sua qualidade de Leonel Brim, assiste, de capachinho, o Prada num eventual confronto com um inspector de Pide.

E o queixoso? Ora o queixoso, que estas traça penosamente, aparece como marca de aguardente que o herói Prada enfia pela goela de um agente da "prestimosa" que lhe andava no encalço. O mariola do agente Bordalo, sobre ser uma besta, enche a mula de arroz de polvo caldeado por um tinto do Barcouço e, de gorjeta, esvazia meia garrafa de "aguardente uma reserva de vinte anos do Dr. Manuel Heinzelmann" (sic., pp 194!, 1ª edição).

Ó Fernando, isto faz-se? Não te tremeu a mão escrevente que é, nota bem, a mesma com que esvazias num enlevo de escanção, cálice após cálice esses Portos velhos, velhíssimos com que este teu amigo te tem tratado a figadeira rija e o coração chorão?

Não te preocupou o saberes que este teu compincha vai ficar no dicionário das figuras romanescas liquefeito em "pomada" para "pasmas" e secretas? Logo eu, canhoto de pata e de convicções, de nem Deus nem Mestre, cliente involuntário que fui dos hotéis da benemérita no tempo da "outra senhora"?

Leitora indulgente: atira-te ao "Benito Prada" que é coisa que se deixa ler e nos reconcilia com a lusa edição mas faz-me a fineza de não acreditar que um tunante troca-tintas, preferisse a minha aguardente reserva àqueles celebrados e inomináveis “uisquis” saloios que eram de moda nos anos de chumbo.

Quanto ao Pacheco ele há-de aparecer por aqui a rondar, mais sequioso que um berbere, que, nessa altura, vai corrido a água e da torneira!

(a crónica acima apresentada vem de 1993, destinava-se a um jornal de referência mas acabou por ficar inédita: nem o Fernando a leu, mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa)

À margem: De Fernando Assis Pacheco ler-se-ão com felicidade e sofreguidão: “A musa Irregular”, “Trabalhos e Paixão de Benito Prada”, “Retratos Falados” e “Walt” (todos na Asa editora); Respiração Assistida (Assírio e Alvim).
De Leonel Brim, poder-se-á ler num misto de espanto e prazer: “Talvez Pinóquio” (Hiena ed.) e “Magistério e Desgosto” (Bizâncio). Se é com dificuldade que se começa a meter o dente nestas peças maior dificuldade se terá em largá-las depois de se começar a apreciar este particularíssimo autor.


Manuel Heinzelmann, sócio gerente de Au Bonheur des Dames

4 comentários:

M.C.R. disse...

Há uma boa alma, uma fada madrinha, um gnomo amável ou o que quer que seja que me ilustra os textos com mão certeira e generosa. Que fique claro, e bem alto, que aqui lhe agradeço do fundo do coração. O que os textos não ganharam com essa amabilíssima colaboração!...
manuel heizelmann, sócio gerente que também representa o boticário m.c.r.

Silvia Chueire disse...

Foi um prazer ler a crônica.

Silvia Chueire

josé disse...

Li dois textos de MCR. Não sei quem é.
Sei, é que escreve como o Assis Pacheco: com o estilo dobrado a um português irrepreensívl e que já não se usa muito. Poderia dizer, paralelizando, que é um estilo de "fato por medida", por oposição ao estilo corrente de pronto-a-vestir.
Para além disso, os temas recendem ao português genuíno, desconhecido de um qualquer liberal amamentado a Hayeck ou mesmo a Burke.
O que o falecido Pacheco trazia de novo, era uma referência ao antigo e generoso hábito de conversar com os outros, através de códigos porreiristas caldeados numa cultura humanística de abas largas.
Tirando o pendor esquerdista acentuado pela generosidade pessoal, o que ficava era o discurso límpido de uma língua a recuperar: o português bem escrito e a escrita inteligente!
Parabéns ao sucessor ( ou herdeiro)!

M.C.R. disse...

Bem quisera eu ser sucessor ou herdeiro do "mano" Fernando.
Lambi-me todo com o elogio mas, graças a nãO SEI BEM O QUÊ,percebi a gentileza e não me vou agigantar mais do que devo. No fundo sou um leitor que deve tudo a Verne e Salgari, essas duas drogas duras que me obrigaram a nunca mais parar de ler.
Em segundo lugar sou mais curioso que um rato do campo: em farejando novidade ou primícia aí vou eu quue nem um tiro.
Em terceiro, gosto de conversar e penso que a escrita de uma crónica é uma conversa "a batons rompus" com um leitor desconhecido.
E, por último, sou devedor de uma multidão, chamem-se eles Manuel da Fonseca (ai que falador...) Herberto Hélder (Jesus!!!)ou a minha velha avó Aldina, de quem em breve falarei, e que era cá uma contadora de histórias!...
De todo o modo, fico desvanecido com o acolhimento à minha modesta oficina de retrosaria.
mcr