13 abril 2005

Farmácia de serviço nº 7 (hoje pharmacie de garde)

Para desenhar um pássaro
Pintar primeiro uma gaiola/com uma porta aberta/pintar depois/ qualquer coisa bonita/qualquer coisa simples/qualquer coisa bela/qualquer coisa útil/para o pássaro/pendurar depois a tela numa árvore/num jardim/num bosque/ou numa floresta/ escondermo-nos atrás do tronco/ sem falar/sem um gesto.../às vezes o pássaro chega depressa/ mas também pode acontecer que demore muitos anos/antes de se decidir/ Não se desencorajem/esperem/esperar anos se for preciso/a rapidez ou a lentidão da vinda do pássaro/com o êxito do quadro/quando o pássaro chegar/ se acaso chega/ guardar o mais rigoroso silêncio/esperar que ele entre na gaiola/ e depois dele entrar/ fechar docemente a porta com o pincel/depois/apagar um a um todas as grades/tendo o cuidado de nunca tocar nas penas do pássaro/desenhar depois a árvore/escolhendo o mais belo dos seus ramos/ para o pássaro/ pintar igualmente a verde folhagem e a frescura do vento/a poeira do sol/e rumor dos bichinhos da erva no calor do verão/e esperar que o pássaro cante/Se o pássaro não canta/é mau sinal/ indica que o quadro é mau/mas se ele canta ai que bom/ é sinal que podemos assinar/nessa altura arranca-se suavemente/uma das penas do pássaro/ e escreve-se o nosso nome num canto do quadro.
(Jacques Prévert, Pour faire le portrait d’un oiseau, Paroles, trad. do escriba)

As promessas cumprem-se!

Na remessa nº 5 prometia a JCP e R. Sousa que me lêem por esforçada penitência, um gostinho de Prévert para a botica imediatamente a seguir. Não pode ser dessa vez mas vai agora. O atraso não terá importância porque Prévert é como os melhores vinhos: o tempo só o enriquece.

Abusando da generosidade dos dois citados e de mais algum(a) leitor(a) atrevo-me a recordar o meu primeiro contacto com o autor de Paroles: ocorreu num Verão inesquecível, numa mágica Figueira, estava eu de férias do colégio e juntou-se ao nosso grupo o Carlos Férrer Antunes, recém chegado duma pequena estadia em França. Trazia na bagagem duas histórias de mais que duvidosa veracidade sobre francesas e o “Paroles” de Prévert, na edição “poche”. O meu francês não era enorme mas lá me desembaraçava. Com a leitura, com as múltiplas leituras e releituras de Paroles, afinou-se de tal modo que hoje é a minha segunda língua. Tempos houve que conhecia de cor metade do livro (e olhem que são quase 250 páginas!). A leitura de Prévert e a descoberta que poderia ler em francês permitiu-me a partir desse longínquo verão de 59, começar uma vasta biblioteca em francês e deu-me coragem para, mais tarde, me meter a ler espanhol, italiano etc... Descobri centenas, milhares de escritores depois, mas Jacques Prévert tem um lugar especial na minha estante. Digamos mesmo que me ocupa mais de um metro, porque o vício é tal que dele tenho tudo e tudo o que pude apanhar sobre ele.

Hoje porém o receituário tem em linha de conta a bolsa dos clientes pelo que aqui venho dar conta de um dvd: “Mon frére Jaques” de Pierre Prévert (ASIN BOOO6Z2X6S) versão restaurada por Catherine Prévert; de uma selecção de poemas e canções em disco: “Jacques Prévert et ses interpretes” (coffret de 6 discos, Polygram). Nunca se esqueça o disco dos "fréres Jacques": Les freres Jacques chantent Jacques Prevert, em venda em www.friendship-first.com
Jacques Prévert está obviamente publicado em edições populares pelo que basta procurar na internet. Todavia, para doentes graves que necessitem de cuidados mais sérios, não se exclui a receita que se segue:
1 “Oeuvres Completes”, 1 e 2 Plèiade, Gallimard.
2 “Album Prévert”, Plêiade (sumptuoso!!!)
3 “A la rencontre de Jacques Prévert”, Maeght (álbum de exposição, belíssimo)
4 “Jacques Prévert”, de Bernard Chardiére, col- Découvertes, Gallimard. (barato, bom e muito bonito)
5 “Rue Jacques Prévert” do grande fotógrafo Robert Doisneau, Hoëbeke (uma beleza!)
6 “Le Paris de Jacques Prévert” , J.P.Caracalla, Flamarion (excelente!)
7. o “magazine littéraire” já dedicou dois números a Prévert: o 155 e o 355
8. Quem quiser mais bibliografia, escreva a pedir.

Abri-vos o apetite, ó prevertianos perversos? Então tomem lá uma receitinha de que o velho Jacques certamente faria uso: Em boa caçarola de ferro( ou numa panela, também não vale a pena ser demasiado rigoroso) botem muita cebola bem picada e alho esmagado – aí 2 ou 3 dentes – Deixem alourar. Ferrem-lhe com uma quantidade de mexilhões que se veja e deixem abrir. Abertos os bichos, baptizem-nos com um belo copo de vinho branco, natas a gosto, pimenta preta bem fresquinha e coentros) deixem ferver cinco minutos mais e sirvam, com o que vos der na cabeça. Os franceses e os belgas servem batata frita em palitos. Bom apetite e boa leitura.

Des milliers et des miliers d’années
Ne sauraient suffire
Pour dire
La petite seconde d’eternité
Où tu m’as embrassé
Où je t’ai embrassée
Un matin dans la lumiére d’hiver
Au parc Montsouris à Paris
A Paris
Sur la terre
La terre qui est un astre.
(in Paroles)

PS: Então não é que o mundo está sempre cheio de surpresas ? Estava já pronta para aviar esta receita quando tive notícia de um novo livro do Assis Pacheco. Atirei o post noticioso para o éter e sai-me ao caminho um cavalheiro chamado JOSÉ que comenta generosamente a boa nova e me fala dos "fréres Jacques". Desses mesmo de que aqui dou notícia! Isto é pasmoso: um leitor que me fala do Assis e gosta destes macacões. Não deve ser criatura de fiar, como o escriba, este, que o sauda cordialmente. A gente um dia destes vê-se. Para já vamos andando por aí...

A próxima farmácia trará (se tudo correr bem) receitas africanas.

9 comentários:

josé disse...

Estranho, de facto, caro MCR...mas a verdade, verdadinha é que de Jacques Prévert conheço...o nome, de leituras vadias- et c´est tout! Sou apenas um diletante destas coisas, como digo sempre, para desprazer do amigo Compadre que por cá também aparece.

A alusão coincidente aos frères Jacques advém da circunstância dos franceses andarem preocupados com a perda da importância do Francês como língua franca e de essa preocupação sintonizar com a nossa, já manifestada na visita do PR a terras gaulesas.
Agora repare nesta história deliciosa que hoje ouvi na TSF:

Para nos representar em França, num espectáculo de variedades, o "protocolo" não encontrou ninguém melhor do que um tal Rodrigo Leão que é um músico pop travestido de tradicionalista.
A vocalista do grupo, no espectáculo para promover a ideia do "Je parle portugais.com", só cantou em...brasileiro, espanhol,e...e...foi assim!O tipo, coitado, confrontado com o contra senso ainda balbuciou que a música que faz tresanda a fado e saudade...pois.
Notável, este serviço de assessores do PR!

Um abraço e é claro que um dia destes temos que trocar uma ideias.

josé disse...

Mas a receita das moules vai ser para experimentar.

A tradição das Ardenas que se pode provar perto do Moulin Rouge e noutros sítios espalhados pelo Paris de hoje, nos vários Léon de Bruxelles, faz abrir o apetite e traz água para a boca.

Ora, na gastronomia refinada, o Pacheco também dava cartas ou pelo menos parecia bom jogador.

O que traz saudade do Assis que não conheci pessoalmente, é uma imensa generosidade no falar e no comunicar na língua pátria. Apesar de ascendência galega, vinha-lhe daí, se calhar, esse sentir profundo de português de gema, pois foi por aí que houve nome do condado portucalense, lá nos séculos cuja história também me interessa.
E é por aí que hoje em dia se podem comer os melhores mexilhões e mariscada variada. Em Baiona, Vigo ou Coruña, o sabor do polvo e dos mejillones é único, assim como o das almejas ou dos chocos com tinta de Padrón, acompanhados por pimientos e a visão da casa de Cela.

Silvia Chueire disse...

Obrigada. Gostei do poema, da crônica do verão de 59, da receita - de dar água na boca, como dizia o José, da escrita, das sugestões litero-musicais.
Enfim, está ótimo, o post.

Abraço,

Silvia

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Boticário amigo, o blog está consigo! (perdoe-me esta expressão revolucionária, mas as suas receitas são imperdíveis.

Kamikaze (L.P.) disse...

Foto manhosa do meu livrinho de cabeceira, Gallimard-Livres de Poche, onde fiz constar, na 2ª página, a letra ainda redondinha, : 5/3/72 Liliana André

(Também sabia muitos dos poemas de Paroles de cor, caro MCR, agora só alguns poucos... mas o livrinho continua a ser de cabeceira. Obrigada pelo belo post.)

M.C.R. disse...

Eu já suspeitava, caríssima Kamikaze, que você pertencia á tribo prevertiana... Obrigado pela ilustração. É igual ao meu exemplar. Com uma diferença. O meu tem a data de 1960!!! E não o trocava por nada. Isto apesar de ter todos quantos citei e mais outros ainda. Claro que se me perguntarem aconselharia as Obras na Pleiade, Imagine que são ilustradas com desenhos e colagens de Prevert. Aliás são até à data os livros da Pleiade que mais se venderam... Bem sei que não é grande critério mas mesmo assim...
Temos que convencer o leitor José a atacar o Prevert: já estou a vê-lo perdido em louvores ao velho senhor.

Kamikaze (L.P.) disse...

Há vários poemas de Prévert no Incursões, em posts ou comentários. Infelizmente não consegui ainda actualizar o índice temático Poesia. É uma tarefa ciclópica. Volto a reiterar o pedido já feito há tempos: algum contributor se oferece para me ajudar? É fácil e eu explico como se faz...

josé disse...

Ah! Pode crer que em lhe pondo a vista em cima, vou arrear-lhe a mão, na lombada, como num cumprimento a um amigo, recomendado por outro que nem conhecemos; mas com a delicadeza que se concede ao prazer da curiosidade, lerei o que aprouver. Verei se gostarei. Só assim consiguirei dizer alguma coisa.

Para já, para já, ocupo alguns minutos disponíveis a passar as primeiras folhas do novo Eco: A misteriosa Chama da Rainha Loana!
É fantástico , este Eco!
COnsegue sempre fazer algo que alguma vez imaginei, mas a que nunca dei seguimento. Desta vez, começa a contar a história de um tipo, sessentão que sofreu um acidente e perdeu a memória das coisas imediatas! Lembra-se do passado remoto, mas não atina com o presente. Lembra-se das heroínas de papel de bd, mas nem se recorda das feições ( bem bonitas, segundo o magano) da própria mulher!
E para contar a história do reconhecimento gradual do seu eu, sabe o estratagema malandro e genial que o Eco utiliza?!
Coloca a cada passo das páginas, citações, em itálico, mas ás quais não dá pistas de reconhecimento imediato. É de génio, porque automaticamente, permite variadíssimos níveis de leitura e suscita a curiosidade policial de quem procurar a chave da citação. Podem ser ditados; podem ser passagens de livros; de rezas; de ditos de outras proveniências que faltalmente irão permitir o aparecimento de exegeses e outros manuais de leitura do próprio livro.
À semelhança, aliás do que aconteceu com O NOme da ROsa.
É disto que eu gosto!

M.C.R. disse...

E não tem nada mau gosto, não senhor...Eu ainda não meti o dente neste eco mas aproveito para dar notícia de um outro que talvez ainda não exista em português. Chama-se "como viajar com um salmão" ou coisa parecida. É divertidíssimo. E, já agora que estou com a mão na massa, o novo Assis (memórias de um craque) é outra loucura de humor. Aliás ia já provocando uma crise matrimonial porque comecei a lê-lo na cama e ria-me tanto que a minha mulher acordava constantemente. À terceira reprimenda percebi que estava na iminência de apanhar um beliscão pelo que, a contragosto, pus o livro de lado, apaguei a luz e sonhei com uma perdida Coimbra e iuma viagem de autocarro com o Assis. Íamos para Lisboa para o dia do estudante e o Assis contava a morte dum cágado a quem ele pintara a carapaça de azul: acho que nos rimos de Condeixa até Leiria...