27 abril 2005

suplemento à farmacia nº10

quatrocentos anos e tanta juventude

Eu peço-vos desculpa humildemente, desculpas por vos vir bater à porta a desoras, desculpas pelo meu entusiasmo, pouco condizente, porventura com a minha idade, desculpas, como dizia não sei quem, por qualquer coisinha.
Mas o caso não é de somenos, amigos e companheiros, não é de somenos. Há quatrocentos anos publicava-se o D Quixote pela primeira vez. Ou, por extenso, El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha (compuesto por Miguel de Cervantes Saavedra, con privilegio en Madrid por Juan de la Cuesta, vendese en casa de Francisco Robles librero del Rey, nuestro Señor).

Tão extraordinário foi o acolhimento deste livro que em 1614, um falsário de nome Avellaneda dava à estampa uma apócrifa segunda parte que obrigou Cervantes a publicar a sua vera segunda parte, onde, com um espírito absolutamente novo, não só refere essa edição apócrifa como intra texto a refuta, fundando num mesmo momento, num verdadeiro big bang literário, o romance, tal qual hoje o conhecemos.
Impérios, nasceram e caíram, milhares, milhões de livros publicaram-se, tiveram o seu momento de glória e foram esquecidos. De alguns só se conhece uma referencia ao título. Outros foram presa das chamas odientas e na própria terra pisada pelo imortal cavaleiro e pelo não menos engenhoso Sancho, correu tanto sangue que parecia ser por isso, por uma predição do futuro, que Cervantes afirma não se querer sequer recordar do nome desse lugar da Mancha onde vivia o fidalgo.
Nessas terras adubadas de sangue e sofrimento a guerra cedeu o lugar a uma pacífica disputa entre pequeníssimas terras que se reclamam de berço duma simples figura literária.
E as pessoas, e não são tão poucas, antes pelo contrario, que conhecem o Quijote de cor e salteado, discutem-no como quem discute a última novela da tv ou o desafio de futebol de ontem. O livro faz parte das suas terras, das suas vidas, do modo como se sentem no mundo.

Entre nós, correm várias edições do livro ( as três primeiras são ainda de 1605!!!) e anunciam-se para breve mais duas, na “D. Quixote” e na “Relógio de Água”. Eu propor-vos-ia qualquer uma espanhola mas estou bem consciente que não é leitura fácil. Ao fim e ao cabo foi escrito há quatrocentos anos. Portanto, avante com uma edição na língua de Camões (e de Mendes Pinto... e de Vieira... acrescento). Contra o meu costume não irei aconselhar qualquer edição. Passei quase dois meses do Verão passado a ler e a rever, página a página, palavra a palavra, uma das novíssimas traduções e não quereria, como calculam, que sobre este tão sincero entusiasmo caísse a simples sombra de uma suspeita.
Assim sendo, por aqui me fico, desejando-vos a intensa, luminosa felicidade de ler este livro inicial e único.
Para leitores ousados, aqui fica uma proposta boa, barata e interessante: a edição do IV centenário proposta pelas academias de línguas de Espanha e dos países latino americanos. Custa menos de 10 €, tem anotações q.b. e letra decente.
Quem além disso quiser ler uma entusiasmante homenagem ao Quijote tem à disposição “Al morir don quijote” de Andrés Trapiello (o fidalgo morre e Sancho e o licenciado Carrasco vão à procura do autor que já os imortalizou: um regalo)

4 comentários:

M.C.R. disse...

Por vezes tenho receio de ocupar demasiado espaço. O resto, evidentemente, é figura de estilo.
mcr

Silvia Chueire disse...

Não há o que desculpar. Há sim, o que agradecer.
Obrigada.

Abraço,
Silvia

josé disse...

Aqui há uns meses largos, o Jornal de Notícias de um domingo, oferecia o volume de Cervantes, cartonado e bem apresentado, como promoção de outras obras futuras.

Há ainda menos tempo, uma excelente revista de história ( Historia y Vida) que se publica em Espanha e vende por cá, oferecia a mesma obra em formato de bolso, pelo preço da revista ( cerca de 3 euros).

Confesso: conheço o romance de Cervantes desde o tempo das bibliotecas Gulbenkian;já o encetei várias vezes para a leitura profícua, pois a da infância não deixou marcas para além de umas breves noções do que significa o quixotismo, o voluntarismo, o idealismo e a mentalidade panciana.

Por falar nisso, ó amigo MCR!
As bibliotecas itinerantes da Gulbenkian dizem-lhe alguma coisa?

Tenho pena de não poder ir a Lisboa,à Feira do Livro da instituição e recolher algumas Colóquio-Letras.
Mas tenho ainda mais pena por não ver e tocar em alguns dos primeiros boletins informativos da Gulbenkian- e tenho-os quase todos.

Deviam ser reeditados e distribuidos gratuitamente pelas escolas secundárias, com muito proveito e suspeito algum espanto e perplexidade para alunos e...professores!
A cultura já não é o que era! E é pena- digo-o sem saudosismo mas com a noção de que só o cnhecimento nos liberta da miséria, a intelectual e até a material!

M.C.R. disse...

José: qualquer biblioteca me diz muito. As da Gulbenkian também, obviamente. Alguns grandes intelectuais portugueses foram funcionários delas: por todos o imenso, torrencial, absoluto, Herberto Helder.
A historia y vida de que sou devoto (e também da clio, da aventura de la historia, da historia do national geographic ed. española etc...) trazem sempre excelentes prendas por pouco dinheiro. Esse quixote ofereci-o a um amigo que, pasme-se,Um abraço já vai quase no fim, animosamente, de dicionário em punho.
Ah os boletins da Gulbenkian...
Atenção José eu dei um endereço mail para a compra dos livros da Gulbenkian. Se aceita um conselho há umas traduções de Rilke, Nietzsche, Brecht e Holderlin. Vem nas obras de Paulo Quintela, vol 3 ,4 e 5.