15 maio 2005

Au Bonheur des Dames nº 6

Ganhar & perder


Valha-me a Senhora da Encarnação, miraculosa protectora das gentes de Buarcos e Tavarede, terras antigas hoje meros subúrbios da Figueira da Foz. Então não é que a Naval, a nossa Naval, ou melhor, a Associação Naval 1º de Maio, corre o seriíssimo risco de entrar já para a primeira divisão de futebol? Mas que é isto, mãe dos pescadores, que mal fizemos nós ao mundo para, de repente, nos quererem no covil de todos os escândalos, de todas as traições e de todas as negociatas?
Vamos por partes: eu de futebol percebo pouco, quase nada, digamos que passei sempre à rasquinha, fosse a coleccionar cromos, a discutir os méritos comparados do Bentes ou do Travassos ou no que, á falta de melhor, chamarei “trabalhos práticos”.
O meu campo de futebol foi quase sempre a praia, ainda que na escola jogássemos em terreno mais firme. Tive aí alguns dos maiores triunfos, graças a um par de volumosas botas de carneira armadas de protectores ferozes. Os meus colegas, todos filhos de pescadores andavam de tamancos e jogavam descalços pelo que pensavam duas vezes antes de se chegarem perto. O outro menino calçado lá da escola, o Mário Zé Guerra usava sapatinho afiambrado o mesmo é dizer que se não dava ao respeito.
Na praia as coisas mudavam. Jogava tudo descalço pelo que havia que juntar à teoria ( cuidado com a bota) a prática (que o gajo arreia). Eu jogava a back esquerdo por ser canhoto e a minha tarefa era infantilmente simples: podiam fintar-me mas sem canelada não passavam. Ponhamos que não era um modelo de desportista e fui mesmo causa de um vigoroso protesto de meninos espanhóis que disputavam connosco aí uns dez Portugal-Espanha por época balnear. A minha missão era, já adivinharam, a de padeiro de Aljubarrota. Os castelhanos uivavam indignados com as canelas esfoladas mas, como o árbitro era da casa, a coisa não assumia proporções graves, nem queixas à ONU.
Chegado que fui á idade da razão, 11 ou 12 anos, compreendi simultaneamente que o meu destino se jogava fora das quatro linhas e que as meninas, melhor, as raparigas, eram infinitamente mais interessantes que as fintas e os half tricks (se é assim que se diz). Perdeu-se um desportista e (não) se ganhou um sedutor. (Paciência! Fiz o que pude, dei o meu melhor, cumpri o meu dever sem olhar a sacrifícios.A História julgar-me-á.).
Entretanto, entre a minha entrada triunfal na escola primária de Buarcos e o fim do primeiro ciclo liceal, o meu pai, moderadamente conservador, foi presidente da proletária Associação Naval 1º de Maio, Naval, para os mais íntimos. A Naval era um dos dois clubes desportivos da cidade (o outro era o Ginásio Clube Figueirense, covil dos talassas figueirenses) mas o único que disputava o campeonato da segunda divisão. O meu pai acumulava duas funções: presidia ao clube e era o médico à borla de atletas, dirigentes e sócios mais militantes. Pior, entendia que sendo ele tão grada figura no clube havia que dar o exemplo pelo que, em vez de ir para o cinema, a minha corveia quinzenal era ir ver a bola ao campo da Mata quando a Naval jogava em casa. Jesus, que seca!!!
Todavia, algo me ficou desses tempos, se é que não confundo o doce aroma da infância com falsas memórias sempre possíveis nesta idade. E o lastro desses anos de vinho e rosas, melhor de limonada e gencianas, é este: sou um navalista ferrenho (mesmo que não saiba o nome de um só jogador, o resultado dos jogos, sequer se ainda jogam no campo da Mata ou noutro sítio mais apropriado) qualidade que compartilho com a mãe e a tia do João Rodrigues, esse mesmo que já aparecia numa crónica sobre o Assis Pacheco. Ser navalista é mais do que uma escolha, é um destino, um traço de carácter adquirido ao longo de inumeráveis gerações, coisa fácil numa terra onde se diz que “quem não rema já remou e quem não tanoa, já tanoou”.
E nós lá íamos remando e tanoando pela segunda divisão, a tal que chamam de “honra”, vogando á bolina na parte superior da tabela, durante estes anos todos, carregados de respeitabilidade mas nunca correndo o risco de descer à divisão principal. Havia aquela ideia farol (sempre estas vozes náuticas!...) de que antes tremelga entre sardinhas que faneca entre tubarões.
Ora bem: é isso que está ameaçado neste momento. Corremos o risco de naufragar nos traiçoeiros escolhos da 1ª liga para onde nos arrastam uma onda impetuosa, um tsunami invencível, uns alísios desgovernados de que nem S Pedro patrono nos pode salvar.
Estava eu a acabar esta crónica e cai-me na mão de bombordo (a esquerda, leitor José, sempre essa) o “público” com os textos dos meus amigos Ferro Rodrigues e Manuel Alegre. Ou seja um sportinguista e um benfiquista alucinados pelo derby que se avizinha. Estão os dois a duzentos à hora, dizem-se mimos, muito desportivos, mas se pudéssemos ver dentro dos sapatos deles juro que os dedinhos dos pés de ambos os preopinantes estão a torcer-se, a fazer figas, promessas á Senhora de Fátima ou à das Tempestades, enfim, estão que fervem.
E por tão pouco, manos. Por um campeonato de pés rapados, de país de 2ª linha, que vive de recordações de anos de ouro, o Águas, o Eusébio e os Cinco Violinos. Estes dois ainda não perceberam que mesmo ganhando, perdem porque depois têm de ir para a Europa para o verdadeiro tira-teimas com os Real Madrid, Liverpool Milão e quejandos, para não falar nesse novo rico, o Chelsea, mais russo que britânico. A grande tragédia dos clubes ditos grandes é que ou ganham sempre ou estão perdidos. O segundo não existe senão como desconsolo. Vejam o Porto, coitado. Já há sócios a rasgar cartões e o sr. Pinto da Costa tem a ascendência feminina até à 23ª geração pelas ruas da amargura. Até o sr. Rui Rio se atreve a rir pelos cantos.
Ao passo que nós, os da Naval, andávamos na maior. Até já tínhamos aviado o Sporting numa taça de Portugal... Mas agora, agora... com essa subida a pique para os cafundós da divisão principal estamos perdidos.
Alguém quer um cachecol da Naval?

4 comentários:

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Caro MCR, os parabéns pela subida da Naval à 1ª Divisão, ou como agora se diz à Superliga! A sua Naval ainda andou a bater-se com o FC Marco da minha terra, mas acabou por levar a melhor.
Ainda bem, uma vez que no Marco de Canaveses, como em tantas outras localidades, o futebol só sobrevive à custa do financiamento da autarquia. E, no Marco, ainda temos muito que fazer em termos de necessidades básicas para nos podermos dar a esses luxos da 1ª. Fala um ex-atleta, sem qualquer tipo de sucesso, das camadas jovens do FC Marco, mas que há vários anos deixou de ir ao estádio, hoje denominado "Avelino Ferreira Torres". Aquele estádio dos pontapés e das invasões de campo...

M.C.R. disse...

Meu Caro JCP: agradeço, sensibilizado os seus bons votos mas em nome de Meu Pai: Ele, sim, estaria como um cuco. Em contrapartida eu preferiria que a minha proletária Naval continuasse a fazer boa figura onde estava. A autarquia pouco ou nada ajudou e então o dr. Lopes de má memória ainda menos. O clube ainda por cima viu há tempos, a sede a arder perdendo-se valiosíssima (para nós remadores e e tanoeiros) documentação.
Agora as coisas complicam-se: vai ser preciso arranjar dinheiro para comprar jogadores e isso não parece coisa fácil numa terra como a minha. Não gostaria de ver certa gente apoderar-se de uma herança pobre mas honrada, à força de dinheiros limpos ou sujos, tanto me faz. O desporto havia de ser outra coisa, como V. ex-atleta decerto sente e compreende. Um cordialíssimo abraço

Silvia Chueire disse...

Eu daqui do outro lado do Atlântico não sei das minúcias, embora compreenda o funcionamento geral da coisa. O futebol aqui ou aí parece ser a mesma coisa, difere apenas no tamanho. Mas me deliciei com a crônica , as memórias.

Abraços,

Silvia

josé disse...

Pois caro MCR, após a leitura de mais um texto ´fleuve`, como gosto de ler, tenho que meter a minha colherada da praxe!
É sobre a "esquerda" e a sua definição. Tenho cada vez mais a impressão que a esquerda ( e já agora, a direita) são lugares imaginários.
Explico: não tem explicação possível, para além das razões que a razão desconhece e que são as afectivas.
Respeito, por isso, todas. Porque são aceitáveis, as razões do coração.

Se entrarmos pela discussão racional, com a convocatória à liça, das ideias e modelos económico-políticos, não conseguiremos distinguir actualmente a direita da esquerda. Daí o meu argumento...

Quanto ao resto, ao futebol de miúdo, lembro-me bem dos fins de tarde, deste tempo de primavera, em jogos épicos de compeonato juvenil e aos voos acrobáticos que a bola de "capão" impelia e a sensação de liberdade que o jogo permitia.
Já não salto da mesma maneira e já não corro tanto, mas ainda me lembro...