09 maio 2005

Farmácia de serviço nº 11

Ritorno di mcr in patria ou o turista ocidental
Em Veneza tinha estado já quatro vezes. Em duas delas, mais do que andar á descoberta de novas paisagens e de novos lugares, coube-me fazer de cicerone. Da última vez o meu tutelado era o Rui Feijó, que fora Delegado Regional de Cultura, cargo em que, com alguém de permeio, eu haveria de suceder-lhe. O Rui vinha pela primeira vez a Itália mas, de certo modo, pisava solo conhecido tantas as leituras, tantos os filmes que durante uma vida já longa o tinham preparado para essa viagem. Todavia, o velho Senhor ( com mais que merecida maiúscula!), com um entusiasmo juvenil disse-me: “Parece-me que ando a mais de um metro do chão.
2 É nisso que penso agora, acabados de embarcar no vaporetto que liga o piazalle Roma à Academia, ao ver o sorriso embevecido da Crazy Grazy (C.G. para alguns amigos e daqui para diante). Este sorriso irá acompanhá-la durante toda a estadia. É puro deslumbramento ou para a citar “esgazeamento” signifique isto o que significar.
3 E aqui estou, de novo, como cicerone: A CG estreia-se absolutamente em Veneza e em Itália. Estão-me, pois prometidos, uma vez mais, o palácio dos doges, o museu da Academia, o Rialto para não ir mais longe. Porém, estabeleci como programa, deixar a catedral e as ilhas para outra vez, e dar-me ao luxo de conhecer a Scuola Grande de S Rocco, um par de igrejas, entre elas a da Madonna del Orto e o que mais viesse à mão. Está bem andar de guia benévolo mas também não se deve exagerar.
4 Desde a minha primeira visita até hoje, Veneza viu a população reduzida de 50%. Dito de outra maneira: em 30 anos perdeu 60.000 habitantes! E desde 1951 perdeu 120.000 (dados da municipalidade)! Pior: perdeu essa italianíssima característica de ter, um pouco por toda a parte, os pequenos ofícios, os sapateiros, os vendedores de legumes frescos, os encadernadores, os ourives, enfim, o menu peuple que dava cor às cidades e nos permitia sonhar com um passado nosso e perdido. A diferença italiana estava (também) naquele apego, naquela teimosia, naquele savoir vivre que invejávamos às cidades italianas ainda tão à nossa dimensão.
5 Claro que este quadro negro refere sobretudo S Marco, o Dorsoduro, à beira Canal Grande e os arredores do Rialto. Quem se aventurar pelo Cannaregio e por Castello ainda encontra os pequenos comércios muito activos e diversificados. E essa é a salvação dos (cada vez menos) venezianos que, entretanto, se vêm obrigados a maiores percursos para comprar as coisas mais elementares a preços que sem ser baratos não são explosivos.
6 E se os bens de consumo correntes estão assim que dizer do preço da habitação? O centro de Veneza tem mais casas vazias do que habitadas mas os seus proprietários não estão interessados em alugá-las. O preço do m2 atinge facilmente os 10.000€ quando os não ultrapassa! Daí a fuga para a Giudecca e para a Terra Ferma.
7 tudo isto se reflecte nos custos para o turista. (A propósito, são três milhões e setecentos e cinquenta mil os turistas que anualmente entram em Veneza. Mas, em média, só passam aqui dois dias!) Comparativamente a Paris, os hotéis são 30% mais caros e a restauração não está longe destes parâmetros. E também diminuiu drasticamente o número de locais de visita livre, ao mesmo tempo que os preços de entrada nos que já eram pagos subiu. A comuna desculpa-se com o custo dos restauros (e é verdade que há estaleiros por toda a cidade) mas paguei por uma pequena exposição sobre Veronese, aliás decalcada da de Paris em 2004, mas com menos de metade das peças, um preço idêntico senão superior a esta última! E trata-se de uma exposição que já se pagou integralmente, sem custos de deslocação e sediada no museu Correr!
8 Mas nem tudo é assim tão desolador: o pequeno bed & breakfast que consegui encontrar desfrutava de uma situação excepcional: nas traseiras do La Fenice, no cruzamento de dois canais. Tratava-se de um apartamento dentro de um palazzo sem especial relevância com um chão lindíssimo, alguns tectos e paredes decorados. O quarto era amplíssimo, três boas janelas, e o serviço primoroso. Acrescia a isto a gentileza e amabilidade do casal de proprietários e um preço que, para a zona (estava-se a cem metros em linha recta da praça de S Marcos) era simpático: 115 € dia!
9 Também encontrei um restaurante bom e com um serviço excelente para o preço. Aliás vinha citado no “guide du routard”, a minha habitual bíblia turística. O curioso foi vê-lo referido por várias das pessoas com que falei. E mais: no Cannaregio conseguimos encontrar uma tratoria com preços imbatíveis para a quantidade e qualidade da refeição:11 € o menu turístico, 12 o menu veneziano! Mas o Cannaregio é outro (melhor) filme...
10 Uma pequena anedota: num dos dias, dedicado integralmente ao passeio sem rumo, aportei a uma pequena livraria, muito simpática, enquanto a CG mercava lãs espantosas desembrulhando-se numa língua franca com a amável vendedora. Interessado em voltar ali pedi o cartão da livraria para não me perder: quando li “Línea d’acqua” disse ao livreiro que alguém ma tinha recomendado. Então, sabendo que eu vinha do Porto, perguntou-me se essa pessoa não seria (e era!!!) o dr. José Abreu, meu vizinho. Cumpre dizer que este meu amigo é um fanático de Veneza, conhece tudo, tem uma biblioteca sobre a cidade que põe o meu escasso metro de livros sobre Veneza a pão e laranjas. O mundo era pequeno e diminuiu ainda mais.
11 Descobertas: A “Scuola Grande de S. Rocco” ultrapassa toda e qualquer expectativa. E não são só os “Tintorettos” que a adornam e que necessitariam de um largo par de horas embevecidas. Os tectos, ah, os tectos..., San Sebastianno e Santa Maria dei Frari para não falar da longamente ansiada Madonna dell’Orto foram entre outros, mais alguns momentos de pura alegria, a mesma que vos desejo se ainda lá não foram.
12 Eu, Veneza, vou-a consumindo como Paris: a lentos pequenos sorvos, ano pós ano (em havendo morabitinos que o permitam), não só para evitar intoxicações, sempre perigosas nesta idade, mas, sobretudo, para ter um pretexto para regressar. A CG perdeu a cabeça e jura que se ganhar o euromilhões compra aqui casa. Transigi, magnanimamente, desde que primeiro se compre a de Paris.
13 Sei bem que haverá, mesmo entre os companheiros de incursão, quem ache maniática e quiçá bizantina (como a catedral de S Marcos, ora toma!) esta lenta e meticulosa insistência no palmilhar das velhas calle, rugge, salizate e outros rami da cidade dos doges. Mas isto esteve independente 1000 anos ó amici miei! Mil anos, cáspite! E eu quero sentar-me num café a ouvir falar (já não o dialecto veneziano quase perdido) mas o italiano com o sotaque rude da Sereníssima, eu estou disposto a aturar os maus cheiros dos canais em obras e não me preocupam as hordas de turistas. Afinal também eu sou aqui um turista (ocidental e nunca acidental, ah, ah, ah, boa malha esta indirecta à nossa gioiosa administradora...), um turista que quereria ter o tempo, a arte, e visão dum Goethe, dum Président des Brosses dum Turner, ou dum Stendhal para gozar a cidade e transmitir aos outros, a vós meus compassivos leitores, essas vivíssimas impressões.
Eu gostaria, mas isso daria para um cronicão!!!, de vos falar da espantosa arquitectura política, da inteligentíssima divisão de poderes, que as múltiplas magistraturas venezianas criaram para manter á tona, contra tudo e todos uma república patrícia que, todavia, conferia aos pequenos os direitos, liberdades e garantias suficientes que os tornavam ímpares na Itália e os convenciam a ser galleotti da marinha de guerra que pouco recorreu a forçados. Foi essa gente, esse povo miúdo comandado por nobres que não desdenhavam comerciar, que conseguiu a vitória de Lepanto ou, melhor dizendo, que foi o eixo fundamental dessa vitória onde combateram os melhores e, por todos, um certo Miguel de Cervantes y Saavedra, que é um dos meus heróis preferidos (esta é para o leitor José).
E permitam-me que acrescente um certo cavalheiro de nome Baffo e autor de poemas licenciosos por cuja casa passei quase diariamente e o meu caríssimo Giacomo Casanova, cuja “Histoire de ma Vie” recomendo ardentemente (ed: Robert Laffont, colecção “Bouquins”). Li esse monumento ainda estudante em Coimbra e nunca me conformei com a visão donjuanesca que os estúrdios lhe atribuíram e, em má hora (péssima!!!) Fellini acompanhou.
Consta que uma grande dama francesa terá perguntado a Casanova se ele vinha de “là bas”. A resposta de cintilante contundência foi: Pelo contrario Madame eu venho de “là haut!”
E vinha. De Veneza e dos Piombi! Lá no alto do palácio!
E é daí que, com o mesmo entusiasmo das outras quatro estadias, mais velho, porventura mais sábio, desgraçadamente sempre ingénuo, venho: De là haut!

Ps: Um agradecimento ao Anto pelo excerto do Pavese no comentário ao Bonheur des Dames, nº4. Um abraço a tld que me corrigiu duas falhas: a refinaria que, de facto, está em Marghera e o facto de haver a estação de Santa Lúcia. Esta última, construtiva/o tld, não foi falha, foi de propósito: para a crónica dava-me jeito que Veneza não tivesse estação de comboio. Aliás creio que concordará que melhor fora que os carros e os comboios se ficassem na “Terra Ferma” e a entrada na cidade sereníssima se continuasse a processar por barco através da laguna: che bella passegiata!
Pps: mal ficaria se não metesse os habituais conselhos recomendação: Na Opus 111 estão a publicar uma integral de Vivaldi. Benedetto Marcello, outro dos enormes músicos venezianos: Requiem in the venitian manner (Chandos), Arianna (Chandos) e Concertos op 1 (Rivo alto 989131).
De Cesare Zavatini ( que não é veneziano mas merecia sê-lo) saíram as “Opere Complete”. Para quem desconheça: é o guionista de Milagre de Milão e de Ladrões de bicicletas. Em português houve in illo tempore o seu famosíssimo “Os pobres são malucos”(que também traz “falemos imenso de mim” e “eu sou o diabo”). A minha edição é de 1947 e tem a chancela da Livraria Portugália do Porto. Vi há tempos um exemplar num alfarrabista: dêem à perna, manos, que é grande literatura.

4 comentários:

josé disse...

Grande incursão aqui vai, em vaporetto e com vista para o Gran Canal!

Cannaregio é um local interessante, refúgio de judeus e com piazzetas de repouso nocturno. O que me impressionou, na noite das pontes e pontinhas sobre os canais, foi um silêncio sem carros e apenas o barulho sussurrado do marulhar das águas à passagem das gôndolas e dos barquitos a motor, com ruído abafado e misterioso logo que se afastam. Porém, Veneza assume, hoje em dia, a imagem geral de um mito urbano, feito de reminiscências e de lugares míticos de um romantismo a la carte.
Para mim, Veneza é um sítio subtil. Pode ser romântico e inesquecível ou pode muito bem ser a maior seca para quem lá vá à procura do fantástico.
O fantástico está sempre dentro de nós...e talvez seja por isso que a mioria das pessoas se contente com dois dias de visita e a população local abandone esse lugares de mito. A realidade impõe-se bem depressa para quem saia do olhar da fantasia.
Mas o que retenho do postal é a referência ao Guide du Routard!

Ah! Caro MCR! O Guide du Routard é o meu Michelin! Nunc me deixou ficar mal e foi devido a esses esforçados testadores de lugares que tenho apreciado e gozado as minhas estadias fora.
Hotéis, restaurantes ( principalmente estes), lugares de visita: tudo o que interessa vem lá, com indicações preciosas de quem o faz quase pela amizade de transmitir um conhecimento útil e descomprometido com outros interesses.
Na Itália, lugar que conto repetir já este ano, já sei onde vou buscar os lugares de comer risotto. E já sei que ficarei satisfeito.
Bem aventurado Routard!

M.C.R. disse...

Meu caro José: a minha CG também notou o som do silêncio (ah quem não recorda esse maravilhoso disco...?) de acordo também com a (extrema) subtileza do lugar. Para mim Veneza foi, primeiro, descrições em romances, depois alguns filmes e entre eles um que passou ainda há dias num canal da power box: "Eva" do Joseph Losey (lembras-te companheiro Anto? ).
Quando lá cheguei ia prevenido mas esperançado e em todas estas vezes nunca me desapontou.
O restaurante de que falei é a Taverna S Trovaso no dorsoduro e a tratoria é a Da Mimmo no Cannaregio. aí mesmo conversei com um cavalheiro judeu, lá nascido a quem uma generosa familia de Pádua escondeu durante a guerra. comprei-lhe umas gravuras. A loja fica enter o ghetto novo e o velho.
Antissimo: sempre oportuno, mano. Trouxe-te um Sabba (triestino) que em breve te entregarei. Poesia belísima, claro. Vem direito da libreria Tolleta na calle do mesmo nome. Obrigado pela citação do Mann ( otal que não é autor da Utopia, ah, ah,). Também eu vi Luanda da ponte do "Pátria" ao amanhecer. Mas melhor foi o Lobito e melhor ainda S Tomé. Sempre pela fresquíssima manhã, parece que o comandante fazia de propósito. Eu enjoava como uma pescada e fiz a viagem quase toda no deck, daí essas poderosas recordações, E a entrada de Cape Town. E Lourenço Marques?... Jesus que velho baboso estou! Um abraço

metropolis disse...

Bem me parecia que a da ferrovia era só porque lhe dava jeito!
Quanto aos turistas, sobretudo americanos e japoneses, é verdade que disputam com as pombas o título de "praga veneziana" - i maledetti!!!Mas também é verdade que, a partir do momento em que os últimos raios de sol espreitam nas ruelas, ambos desaparecem sem deixar rasto. E é nesta ocasião que vale a pena experimentar alguns lugares, por exemplo a praça S.Marcos. De noite, quando já nos podemos sentar à vontade nas esplanadas dos "Florians" e beber um copo de vinho com algum músico que trocou o palanque pela cadeira ao nosso lado, e se a lua nos presentear com a sua presença, é seguramente um dos lugares mais belos do mundo.
Durante o dia, temos sempre as fondamenta e os lugares castiços do bairro de Castello...

M.C.R. disse...

Mano: a nossa pátria, a nossa vera pátria, é a poesia. não que eu poete, nem sequer tento, mas de cada vez que leio um poema que me agrada assalta-me a sensação de que aquilo é exactamente o que eu queria dizer.
que o Sabba era óptimo já eu o sabia que tenho cá, lido e relido o Canzoniere. Trieste, de resto, é terra de gente da melhor: Italo svevo, Magris, andou por lá o Joyce, enfim um prazer. eu próprio (ah, ah, ah) demorei-me por lá 3 semaninhas á pala dum curso de direito comparado do trabalho,,,