20 maio 2005

Gaudeamus Igitur 2

Viajar na Eslovénia com espanhóis


Como es posible que esté usted
tan tranquilo tal y como van las cosas?
Gonzalo Torrente Ballester "Hombre al água"


O ano de 75 foi, para uns, a aberração e o escândalo. Para outros a festa vencida pela traição. Para a resignada criatura que esta escreve foi a vera descoberta da Espanha, dos espanhóis, gentes e nações todas confundidas. Numa palavra, aprendi a ser peninsular.

75 foi também um ano de viagens, que santa Gulbenkian seja louvada e o Doutor Férrer Correia exaltado!

Graças a uns vagos estudos de direito comparado, passei grande parte do mês de Agosto entre Trieste (olá Svevo, olá Joyce, olá Magris) e Ljubljana.

Ora foi nesta última cidade que, imparavelmente, conheci:
a) o efeito ascensorial da slivovice;
b) a versão eslovena dos autocarros turísticos;
c) o "savoir vivre" dos espanhóis.

Expliquemo-nos: Ljubljana. era, na altura, a montra da Jugoslávia e, como afiançava um prospecto local, sede de vertiginoso progresso. Por mero acaso este ainda não chegara ao elevador do nosso prédio que, movido por uma errónea concepção da então consagrada "auto-gestão socialista", teimava em não funcionar.

Foi o Ferran Camps, hoje grande jornalista na Catalunha, que descobriu a única maneira de subir até ao nosso 12º piso: "bastava, disse-nos em voz pastosa, entrar no café Slon, ali ao lado, e beber uma pequena carga nuclear líquida, a que os indígenas chamavam "slivovice". O efeito era garantido. Com tal viático até a Torre Eiffel seria canja.
Gostaria de vos dar a composição desta especialidade mas, penso que, ainda hoje, é considerada segredo militar.

Os espanhóis meus colegas, tributavam à beberagem um respeito tal, que, até conseguiam pronunciar correctamente o seu nome, quando a pediam. E este é feito notável porquanto nem sequer conseguiam pronunciar a palavra eslovena para espetadas (rasnici) a quem sempre chamaram "pinchos morunos" conseguindo, por milagre de Santiago padroeiro, que, em todos os sítios de comes e bebes, lhes compreendessem a encomenda e os servissem.

Ora foi com esta tropa, alegre e galhofeira que parti para uma excursão a Cerkno. Da comandita faziam também parte franceses, italianos, americanos e a minha querida amiga Ewa Teresa, que era americana, cega e de origem polaca, e se fazia guiar por uma cadela cuja graça já não recordo. O autocarro que nos transportava não tem descrição possível, a menos que me permitam usar uma linguagem desbragada, o que não farei.

O motorista que pilotava aquele raro exemplar de viatura, de humano só tinha uns bigodes caídos e 2 manápulas capazes de estrangular um boi.

E a viagem começou: trafegávamos por caminhos que só por delicadeza se poderiam apelidar de estradas, entre terras cujos nomes eram autênticos arrepios (Pohor, Gradec, Gorenja Vas, Zakniz) no meio de precipícios que mais pareciam a autêntica entrada do inferno.

A tripulação só não enjoava porque o terror nem isso permitia. A cadelinha da cega uivava docemente e os 2 árabes da comitiva murmuravam de minuto a minuto "Inch Alla". Só a cega, porque cega, ostentava um sorriso beatífico. A turbamulta espanhola, toda colocada a estibordo, de habitual tão cantadora, ia mais muda que um cardume de carpas. De vez enquanto olhava-os e via-lhes crescer, para lá do medo, uma vaga vontade de blasfémia e desafio próprio das gentes que contra Napoleão gritaram "Viva las cadenas".

Ao 20º precipício sucedeu a esperada erupção andaluza. A curva fizera-se a 120º sobre 3 rodas duvidosas e uma chiadeira inenarrável. O "olé", soltado por aquelas gargantas tufadas pelo medo, merecia o palco da Maestranza.

O proto-criminoso motorista ao ouvir tal balbúrdia virou-se, iluminado pela gratidão, e ergueu as 2 mãozorras num tosco sinal de vitória.

A partir daí, o resto da viagem foi pontuado pelos nossos guinchos histéricos, pelos uivos da cadela e por pragas no mais puro polaco que já ouvi a uma cega indefesa.

À volta viemos todos de táxi, cega e cão incluídos, e comemoramos este nosso regresso dos arrabaldes do reino de Plutão com uma jantarada no Grand Hotel Union.


Gaudeamus igitur!

3 comentários:

josé disse...

Que sortão! Dessas experiências, poucos se podem gabar!
Em 1975, por aqui, no pasaba nada...tirando uns tiritos avulsos para amedrontar refractários e umas bombitas colocadas a preceito,em geral e felizmente só de fumaça, em lugares escolhidos por uns pândegos do ELP que ainda se riem para aí em grandes gargalhadas.
E diga-me, caro MCR: nem assim ficou vacinado, com essa experiência dos elevadores movidos a "slivovice"?!
Era coriácea, a maleita...

Silvia Chueire disse...

Ah, fantástica experiência !
É mesmo dessas coisas que merecem registro escrito. : )

Abraços,
Silvia

M.C.R. disse...

Meu caro José: elevadores que não andam são só isso. E nem é demasiado grave... O grave é substituirmos a indignação pela resignação, a liberdade pela segurança a esperança pelo desãnimo.
Nem você sabe o que me tem custado refilar, refilar sempre, indignar-me, protestar...
Só para lhe dar um exemplo: nunca aceitei uma nomeação dum ministro da cor. Os lugares que tive, com prestígio e alguma fraca compensação financeira, vieram-me sempre do outro lado. quando a ocasião se proporcionar publicarei os meus inéditos de crítica política: V então verá com que lenha me aqueço e com que vontade arreio na "minha gente...
Sempre seu, mcr