16 maio 2005

VEMOS,OUVIMOS E LEMOS - NÃO PODEMOS IGNORAR...

Recolho do Diário de Notícias de hoje:

1.Francisco foi abusado pelo pai aos cinco anos, Pedro quase morreu desidratado, Ivo foi vendido pela mãe...
Duas semanas depois da morte trágica de Vanessa, milhares de crianças continuam em risco em Portugal. Só em 2003, as comissões de protecção de crianças e jovens acompanharam 5294 menores vítimas de negligência, 2378 expostos a maus tratos físicos e psicológicos, 474 alvo de abusos sexuais. Francisco, Pedro e Ivo são nomes fictícios. São nomes de crianças de todo o País, a quem a comunidade teve de estender a mão. Porque alguns membros da família não o fizeram. Histórias recolhidas pelo DN, algumas com final feliz, outras à espera de um desfecho. Infâncias marcadas por uma sociedade que ainda não atribui à criança um lugar principal. sofia jesus

Há dois anos, Francisco quebrou o silêncio. Contou, sem saber que era "mau", o que o pai lhe fazia quando dormia em casa dele. A mãe percebeu, por fim, os motivos das noites em claro, dos prantos sem motivo. Um "pesadelo" que os levou a tribunal. E do qual ainda não acordaram. Francisco tinha cinco anos.Raquel estava separada do marido há cerca de um ano. A relação "não resultara", mas ele parecia ser "um bom pai". Os três filhos visitavam-no regularmente. Mas, nesses dias, Francisco - o mais novo -, molhava os lençóis durante o sono. E acorbava a chorar, a meio da noite. A mãe e a psicóloga, que acompanhava a família desde a separação do casal, pensavam "É um menino muito preso à mãe." Até àquele fim de tarde."Os manos hoje brigaram", contou o mais velho, explicando "O Francisco queria pôr uma coisa no rabinho do mano..." O menino desculpou-se: "É como o pai me faz..." E o tempo parou. O mais velho não conteve as lágrimas. Os outros dois olharam, confusos, a expressão de terror no rosto da mãe. "É tão estranho. Só pensava que era um filme, que eu não podia estar a viver aquilo", conta Raquel, lembrando o "pânico" que a dominou e levou a ligar logo à psicóloga, em busca de apoio. Três dias depois, o tribunal decretava a ordem que impedia o pai de se aproximar da criança. O início de uma batalha legal. Por uma justiça que tarda.Entre relatos e desenhos, Francisco foi traçando a história das "coisas estranhas" que o pai fazia e ele "não gostava", na altura sem saber que eram "erradas" - apenas que eram "segredo". Os abusos sexuais passaram pela introdução de objectos, mas deixaram marcas indeléveis. E invisíveis.
A defesa do pai foi o ataque. À ex-mulher, ao seu novo namorado, à vida que deixara para trás. Na sala de tribunal, os amigos do pai, que, segundo a criança, "às vezes assistiam", negaram tudo.Mais de um ano depois da denúncia, "quando o menino já reaprendera a rir", quando "já não queria falar mais sobre o assunto", o tribunal pede nova avaliação a um pedopsiquiatra. O especialista conclui que a criança "não aparentava sinais de trauma".Sem provas físicas de violência, sem testemunhos que não o do próprio menor, o processo acabou por ser arquivado, quase dois anos depois de aberto. De nada valeram os relatórios da psicóloga que sinalizou o caso junto das autoridades ou o facto de ainda não serem conhecidos os resultados dos exames psicológicos feitos ao pai - que foi faltando às consultas.Hoje, Raquel tem "medo". A justiça ordenou que as crianças voltassem a ter contacto com o progenitor, mediante o acompanhamento dos técnicos.
Mas depressa as regras foram quebradas e o pai apareceu de surpresa. "Um choque tremendo." Francisco pouco ou nada contou. "Ainda tem medo." Mas os irmãos não esconderam nada. "Quando vi o pai, pensei que o meu coração saía pelo umbigo", contou o mais velho, de dez anos.
O processo está de volta aos tribunais.Agora é esperar. Raquel já desistiu de entender. Houve um tempo em que se perguntava a todo o momento "O que leva um pai a fazer isto a um filho?" Até que uma técnica a aconselhou: "Não tente encontrar uma lógica para uma coisa que não tem lógica nenhuma." Mas é precisamente essa falta de nexo que a faz recear o futuro: "Então quem me garante que ele não voltará a fazê-lo?"
Pedro. Os primeiros sinais de alerta apareceram junto dos serviços de saúde. Pedro falhava as consultas de rotina e o Plano de Vacinação há muito deixara de ser cumprido. O bebé vivia com os pais e três irmãos numa casa degradada. Até ao dia em que foi de urgência para o hospital. "Que querido, tem quantos dias?", perguntaram nos corredores. Pedro tinha um ano.O pai passava as noites nos bares, gastando o pouco dinheiro que ganhava como motorista no vício da bebida. Durante anos os serviços sociais tentaram ensinar à mãe - ela própria vítima de uma infância passada entre instituições - as tarefas simples de cuidar de uma criança. Mas nem a sopa era capaz de fazer. O ciclo de pobreza nunca se quebrou. E cedo a negligência dos pais se fez notar no pequeno Pedro. Com apenas um ano, chegou ao hospital em risco de vida. Diagnóstico fome e desidratação.A situação foi de imediato sinalizada ao tribunal. A mãe visitava-o, durante os meses em que esteve internado, tentando alcançar o peso normal de um bebé da sua idade. Mas as bolachas que as enfermeiras lhe davam, para alimentar os outros filhos, não chegavam ao destino. Ela comi-as, sem pudor. À frente das crianças.Pedro esteve um ano numa família de acolhimento, enquanto decorria o processo para adopção, nunca contestado pelos pais. Das poucas vezes que o visitaram, não se ouviu um "ele está bem?". Não houve risos. Não houve colo. Os laços de afecto quebraram-se.Hoje, Pedro é uma criança feliz. Longe da zona onde nasceu, mora com os pais adoptivos. Pais que nunca teve e que, até o acaso o ditar, não passavam de nomes numa infinita lista de espera - por um filho. Imersa no passado de que Pedro fugiu, a mãe biológica não pergunta por ele.ivo. A história de Ivo, como tantas outras, começa muito antes da sua vida. No tempo em que a mãe, grávida, anunciava já ao mundo a intenção de o dar para adopção. Após o parto, Lúcia deixou a criança no hospital e acorreu aos serviços sociais, a dar conta da decisão. Disseram-lhe que teria que aguardar seis semanas, como dita a lei. Não foi preciso tanto três dias depois voltou ao estabelecimento de saúde e levou Ivo consigo, registando-o como seu filho e de um outro homem, que a acompanhou. Ivo não mais foi visto nas ruas.O técnicos - que julgavam que a jovem se arrependera da opção de abandonar o bebé -, começaram a estranhar encontrá-la sempre sozinha. Sem criança no regaço. Sem papas no saco das compras. "Está com os primos", mentia-lhes. Mas não por muito tempo. Encostada à parede, acabou por confessar os contornos obscuros de uma história que atirou Ivo para os braços de estranhos. Em troca de dinheiro.Tudo começou no hospital. Um dos funcionários combinara avisar um determinado casal assim que desse entrada uma mulher que quisesse abdicar do filho. Lúcia foi a escolhida. O casal contactou-a. E ofereceu-lhe uma quantia elevada de dinheiro. Bastava que registasse o menino como filho do homem e lhes entregasse a criança, como se de um acordo entre pais separados se tratasse.A investigação policial desmascarou todos. Os testes de paternidade comprovaram não existir qualquer relação de parentesco entre Ivo e o homem que o levou para longe, fingindo ser seu pai.Dois anos se passaram.
Ivo está entregue a uma família de acolhimento. Aguardando a sua vez de poder ter alguém a quem chamar "pai" e "mãe". Alguém que o leve ao colo pelas ruas. Sem receios.
Rodrigo. Aos sete anos, há quem diga que Rodrigo "tem a vida hipotecada". Na mente jaz a recordação dos maus tratos infligidos pelo próprio pai. Reduzido a um "enorme vazio afectivo", ainda hoje se "cola" a qualquer adulto que lhe estenda a mão. Ou lhe atire um sorriso.A mãe, prostituta, trabalha de noite. Dorme de dia. Explorada pelo pai de Rodrigo - que chegou a abusar sexualmente da filha -, a mulher não consegue mudar de vida. Depois do telefonema anónimo dos vizinhos, que denunciaram os gritos, o choro, as nódoas negras nas costas, e ditaram a institucionalização de Rodrigo, a mãe insiste em não autorizar a adopção. Nas visitas, leva iogurtes e brinquedos ao "seu menino", bem como a promessa de que, "um dia", deixa "aquela vida" e vai buscá-lo. Mas já se passaram dois anos. E o tempo de uma criança não se compadece com o pêndulo dos tribunais...
2.Juízes impreparados para ouvir crianças

Durante uma inquirição, o magistrado disse à criança que ia chamar o pai. A reacção foi imediata "Não quero ver o meu pai." Bastou para o juiz decidir suspender a diligência. Um caso apontado por Maia Neto, especialista em Direito de Menores, para explicar que muitos magistrados "não conhecem a linguagem dos afectos". Um desconhecimento que se reflecte na forma como abordam os casos e, sobretudo, como se relacionam com as crianças no decorrer de um interrogatório.O menino apenas recusava ver o pai naquele momento, em que o sofrimento era ainda muito grande. Quando Maia Neto, presente na diligência, lhe disse "se não o queres ver isso resolve-se, vou mandá-lo prender", houve nova reacção, agora a defender o pai. Interrogar uma criança exige sensibilidade que possibilite "a descodificação da linguagem", diz Maia Neto, só que os magistrados, reconhece, "não tiveram preparação para ouvir uma criança".Uma competência que não se adquire num curso de Direito, nem sequer na formação de magistrados no Centro de Estudos Judiciários (CEJ). Joana Marques Vidal, que esteve ligada ao CEJ na área da protecção de crianças e jovens, defende que a formação específica passe a requisito para a colocação nos Tribunais de Família e Menores, a par da classificação na carreira. Um magistrado neste tipo de trabalho "não tem que ser psicólogo ou sociólogo, mas tem de ter conhecimentos nessas temáticas", reconhece.Para a procuradora- -geral adjunta, "ainda há muito a fazer e a investir" na área da formação de magistrados. O que se aprende no CEJ é "o mínimo daquilo que deve ser dado numa formação inicial". Falta a aprendizagem da linguagem dos afectos, com base em critérios científicos para ajudar a tomar decisões competentes. Paula Cristina Martins, do Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho, não hesita em afirmar que os juízes tomam muitas vezes decisões com base "no preconceito e nas representações" que têm dos problemas. Daí que defenda que "a formação dos juízes" tenha "de ser revista".


DN.16.05.05 -dn.on line

1 comentário:

josé disse...

O Rui do Carmo tem inteira razão.

A LPCJ e as Comissões respectivas, podem ser um bom case study do modo como o legislador-político trata os problemas que aparecem a gritar nos jornais.
Faz-se a lei e apresenta-se a mesma com a pompa e circunstância dos discursos da AR e simultaneamente nos media em geral. A lei parece perfeita e à medida dos problemas, tornando evidente para a opinião pública que ouviu falar no assunto que o problema vai passar a ser do aplicador da mesma, pois do lado do legislador está resolvido.
Esta idiossincrasia é também assumida pelos próprios dirigentes gerais, escolhidos pela governação para coordenar. Assim, da parte destes só muito veladamente se poderáo ouvir críticas ao seu funciomanento e nunca ao modelo em si: ainda não chegaram ao ponto de cuspirem na própria sopa, valha a verdade, que se diga.

Assim, o que temos para inglês ver é uma lei aparentemente boa e perfeita e que depende para a sua perfeita aplicação da questão de pormenor: os meios para que as Comissões funcionem como deveria ser, ou seja, a tempo mais que perfeito e não em voluntarismo e part time.

Basta falar com algum membro das inúmeras comissões de crianças e jovens que foram sendo formadas pelo país fora para se perceber onde reside o mal: na organização que depende do governo central, particularmente do ministérios da segurança social, caldeirão onde caem todos os agravados em romagem.
Não há pão para tanta fome e é esse o problema...