07 junho 2005

Gaudeamus Igitur 7

A"MOVIDA"MADRILENA ANTES DA"MOVIDA"


Há mitos que têm a pele dura e demoram em persistir para além de toda e qualquer decência. Um deles é o de Madrid capital da movida.
Passei por lá vai para seis meses e mover o que se chama mover só vi os êmbolos das seringas dos "drogadictos".
Desculparão os mais radicais, mas as únicas pessoas interessantes no que se convencionou chamar período da movida, já existiam antes, e, num dos casos, continuam. Refiro-me a D. Henrique Tierno Galvan e a Francisco Umbral. O resto não passava de um pacho culturaloide simbolizado com a ascensão da "gente guapa" e anexos marbellenses que faziam a glória (e o lucro...) da "Hola".
Movida a sério, e em Madrid, conhecia-a eu no ano de 75 mais propriamente entre meados de Setembro e fins de Outubro. Eu conto:
A Faculdade Internacional para o Ensino do Direito Comparado e Santa Gulbenkian (graças e louvores a todo o momento lhes sejam dados) entenderam na sua (delas) infinita sabedoria fazer deste vosso servidor um verdadeiro euro-jurista. Para o efeito concederam-lhe ao longo de anos, bolsas que não sendo faraónicas eram mais que decentes. A de Madrid não foi excepção pelo que se não melhorei significativamente os meus conhecimentos jurídicos consegui, em quatro semanas, de noites brancas, ficar ao par da noite madrilena e, milagre dos milagres, da outra "movida" da altura.
Expliquemo-nos: entrei em terra espanhola a 27 de Setembro de 75 depois de esperar 6 horas na fronteira. Os espanhóis não estavam propriamente satisfeitos com a lusitanagem que, no dia anterior, lhes tinha assaltado e saqueado a Embaixada de Lisboa e o Consulado do Porto. Protestava-se contra a execução de mais um grupo de políticos o que era louvável e honroso. Roubaram-se, todavia, muitas coisas o que deu ao acto o toque canalha que ainda hoje nos envergonha.
À chegada a Madrid tive oportunidade de verificar que Portugal não gozava de boa reputação entre as autoridades. E isto chegou mesmo ao ponto de mandarem arrear a bandeira portuguesa que, com mais uma dúzia, ornava as instalações onde decorria o nosso curso.
Ao ver a afronta à bandeira e com o intrépido apoio da catalã Marguerita, da basca Maria del Coro e da castelhana Pilar, recorri ao professor Salinas director do Instituto para os protestos patrióticos de usança. Ao fim de dez minutos de conversa o professor abriu a porta num gesto dramático e chamou-nos. Pelo corredor da Faculdade de Direito fugiam estudantes e os polícias que os perseguiam até metralhadoras usavam.
Sobre ser um homem de bem o professor Salinas era, naquele momento, um homem envergonhado. Lembrado de tempos idênticos na pátria madrasta, cumprimentei-o e saí estreando, nesse momento, a primeira cacetada espanhola. Faltava-me para a colecção e, como era português, pareceu-me adequado desandar rápida e silenciosamente. O mesmo fizeram as do país irmão que entretanto guinchavam fortes "hijoputas" logo que se viram a salvo. Acompanhei-as no nosso vernáculo no que fui aplaudido por uns galegos emigrados na construção civil. Foi com quem acabámos a primeira jornada madrilena a beber vinho do Ribeiro e a comer empanada.
Três dias depois, conduzia eu o cansado Austin perto da Plaza de Oriente quando um polícia me mandou parar. Em má hora o fiz que o carro que me seguia me meteu a mala dentro.
Os minutos que tive de gastar para convencer um enfatuado agente que não necessitava de ajuda policial deixaram-me encurralado. Toda a Espanha de "olé e pandeireta" resolvera, num último estertor, sair à rua para apoiar o cadaveroso Franco, espúrio filho do Ferrol.
Imaginem-me leitoras, cercado de franquistas assanhados que só paravam de cantar o "Cara al sol" para dar morras ao México e a Portugal países onde os excessos ainda que justificados foram evidentes... Durante os dias restantes a cidade alternava entre a violência nos "campus" e a noite louca, entre a "gauche divine", os "tablaos progres", e encontros com tudo o que era clandestino e que ia tomando posições na cidade como quem sabia próximo o fim do regime. A polícia conseguia apanhar células inteiras mas eles vinham de todo o lado, da França, da Bélgica, de Portugal com um verso de Celaya ou de Alberti na boca e a vontade firme de acabar uma guerra que tinha quarenta anos e um milhão de mortos a mais. A Espanha, como dizia o poeta, "estava em marcha".


Gaudeamus igitur

Quem gostaria de ver Madrid e galegos amavelmente cúmplices seria Fernando Assis Pacheco meu amigo desde 1960. Sabia destas charlas, pedia, amiúde, notícia da publicação em livro. Já o não verá que um coração daquele tamanho que tanto, e a tantos, se deu não podia durar muito ...

Nota: este texto foi publicado num livrinho que em seu tempo se chamou A pedra no sapato, a pata na poça. Em boa verdade pertencia á série “Gaudeamus igitur” pelo que aqui vai, com uma especialíssima dedicatória ao meu amabilíssimo leitor José que me pedia, há dias, literatura sobre as minhas aventuras políticas. Ó José: o que eu conspirei em Madrid!...Também namorei, bebi e fiz bons amigos.

4 comentários:

Silvia Chueire disse...

Como sempre uma delícia ler estas suas crônicas. Que mais posso dizer?
Não pare. : )

Abraços,
Silvia

josé disse...

Pois já que me honra com a dedicatória, seja feita essa vontade de contar as histórias de uma vida...que presumo bem vivida na companhia de outros hermanos e hermanas.

Os espanhóis, para mim, sempre foram pessoas de Ducados ( os cigarros, lembra-se?) e cujos carros, movidos a uma gasolina misteriosa, exalavam um cheiro acre de empestar o ar.
Tirando isso, sempre andaram á nossa frente na cultura; na desenvoltura; as mulheres são mais libertas, mais não sei quê que lhe dão um toque de feminino que só lá se vê. Aprecio, mas sou fiel e por isso, refreio.

Por outro lado, numa livraria espanhola, agora e mesmo há trinta anos, lê-se quase tudo o que vem de fora, mas em espanhol, traduzido a tempo e a preceito, seja em Vigo,seja em Madrid.
A minha viola acústica de imitação country americana, é japonesa da Suziki, mas foi comprada lá e trazida de contrabando, nas barbas do alfandegário a quem lha mostrei, tentando convencê-lo que não era nova( não adianta...foi em 1976 e já prescreveu a infracção, há muito...).
Por cá, não havia nada disso e a Espanha galega era um mundo, até para comprar calças de ganga e discos de música popular.
Aliás, o El Corte Inglés, já existia nesses longínquos anos revolucionários e de lá saiam não só caramelos como turrones de Alicante e passas deliciosas pelo Natal.
Ainda hoje saiem.

Além disso ainda, para quem quiser mesmo saborear uma mariscada, tem sempre à mão de trânsito de uma Baiona à beira-mar, um restaurante especializado que faz o polvo como ninguém e serve os mejillones como poucos, embora em toda a Galiza se possam provar. Os pimientos de Padrón, com sus choquitos con tinta, são de comer e chorar por mais, principalmente se formos a caminho de Santiago, a pé e em jornada festiva com camaradagem a preceito.

A Espanha para mim, é a terra do lado de lá que nos mostra o que também poderíamos ser mas não somos capazes.
Y viva España! Mas Portugal primeiro...

M.C.R. disse...

E viva a Ibéria.
Ou, mesmo, viva a Espanha, no sentido do
Arriba arriba gajeiro
arriba ao mastro real
se avistas terras de Espanha
areias de Portugal.

isto não tem nada a ver com união ibérica mas não tem também nada contra. Na minha vida cosmopolita ( ou melhor nas escassas partes cosmopolitas da minha vida) verifiquei que quando o grupo era diversificado começava por ter mais a ver com os do lado; depois com os franceses; depois os italianos. Com os europeus se o resto era doutro continente. Com brasileiros e/ ou latino americanos de seguida. E confesso mesmo que me dei lindamente com dois amabilissimos japoneses que, em Murnau, durante uma temporada no Goethe Institut me tratavam, oh maravilha, de "Marcero San" com imensas vénias. Um programa...
Os Ducados... ah... os ducados! eu já não fumo mas, como todo o ex ( eu sou um ex de 4 maços por dia...) ainda ows sinto aromátivcos, fortes, aqui na garganta, Nada dessas pinderiquices de tabaco loiro para donzelas semi-virgens.
Preto, bem preto, o tabaquinho: gauloises,gitanes, boyards e os portuguesíssimos Antoninos...
Felizmente ainda posso mexilhoar: aliás estou preparado: nos primeiros quinze dias de Agosto, ala que se faz tarde para a Galiza: todos os dias uns mexilhõesa a abrir. Depois logo se verá. Ai a barriga há de me matar...
Um abraço

jcp (José Carlos Pereira) disse...

“Me gusta España” e suas gentes. A cultura, as cidades, as planícies, as serras, as praias, a gastronomia, os vinhos. Já percorri grande parte do país e continuo a gostar das particularidades das diferentes “Espanhas”. Sobretudo do seu “placer de vivir”.
Recordo com prazer as viagens, os fins-de-ano com amigos, o encontro casual com um galego dono de um restaurante em Madrid, apaixonado por Portugal por aqui ter estudado muitos anos. De vez em quando, lá tenho que ir à Galiza comprar uns “puros” a preços praticáveis, aproveitando sempre para comer umas “parrilladas” e beber uns “alvariños” ou “ribeiros”.
Depois das Baleares, virei-me em 2004 para as Canárias e descobri Lanzarote. Este ano estarei de férias em Fuerteventura. Uma Espanha diferente, com tonalidade africana, mas ainda assim muito interessante.