12 junho 2005

Gaudeamus Igitur 8

ROSÉ ENTRE OOSTVOORNE E ROCKANJE


Não fora a abominável pinochetada e o Verão de 73 teria sido perfeito. Foi, por acaso, o último ano da minha mais que prolongada juventude. Passei boa parte dos meses de Agosto e Setembro na Holanda tendo como pretexto concluir um curso de direito comparado, tarefa de que me saí com uma "mention bien" um tanto ou quanto injusta se se considerar que, já naquela altura, a minha fé no Direito estava a pisar o risco vermelho.

Agora, que relembro esses dias tumultuosos, vem-me à ideia que a grande maioria dos meus companheiros de promoção (promotion E.M. Meijers) também não tinha em especial consideração a nossa formação jurídica. Ecos de 68....

Isto dito, convém esclarecer a que vêm esses dois palavrões neerlandeses que dão sal ao título da croniqueta. Trata-se apenas de nomes de duas perdidas localidades da região de Roterdão já cerca do mar do norte mas fora, felizmente, da zona do Europoort. Chega-se lá por estradas que cortam o mar frio e sujo e se perdem docemente entre dunas e vento.

Se eu fosse leitor perguntaria ,agora: "E que faz um lusitano em tão extravagantes paragens?" - A pergunta tem sentido porque, mesmo hoje, portuga que se preze só sai de Amesterdão para dar um salto a Haia e, vamos lá, a Maastricht terra fatal para d'Artagnan e para os eternos patriotaços que se vão criando à sombra de um Portugal que nunca existiu.

Voltando, porém, às nossas encomendas: a razão que me levou a tão impronunciáveis pontos da geografia dos Países Baixos era do sexo feminino, respondia pelo nome de Alatha e os seus familiares tinham ali uma confortável casa de férias.

Os senhores v. d. B., ao saber dos amorios de uma das herdeiras, ter-lhe-ão manifestado o desejo de ver de perto o requestador. Para que o confronto não parecesse demasiado óbvio foram também de jornada quatro ou cinco amigos comuns a pretexto de week-end. Entre eles iam a Tani M., o seu chevalier servant polaco que atendia por Lech e o inevitável Michael, inglês com queda para línguas, álcoois de qualquer proveniência e graduação e naufrágios.

Fui recebido com a cordial gentileza que é de uso entre o patriciado holandês ainda que, para lá da cortesia manifestada, se vislumbrasse um inquérito implacável. Lá fui respondendo como podia e com êxito, como mais tarde soube. Já rodava a segunda genebra, generosamente fria de tanto gelo moído, quando o céu pardacento e holandês me caiu em cima. A anfitriã tinha resolvido perguntar-me sobre vinhos e eu, descendente de exportadores de Porto, já rodava a cem à hora. Quando se esgotaram os tintos e os brancos eis que, à menção dos "rosés", desembestei numa catilinária apoucando a mistela com mais gana do que a de Mafoma sobre o toucinho.

Sobre a minha veemência atrevida caiu a notícia, pesarosamente murmurada, que, em minha homenagem, iria ser servido ao jantar um "rosé" português! Por um momento Alcácer Quibir, todos os naufrágios da história trágico-marítima, o terramoto de 1755 e mais umas quantas calamidades pareceram-me nada frente ao embezerramento que sentia. Eu tinha guelras e estava, de olho esbugalhado e em alvo, fora da água e, à volta, já só via flamengos gordos e vermelhuscos olhando-me com a mesma comiseração com que avaliam os arenques mal fumados...

Há, todavia, perdido por essas terras brumosos e distantes, um pequeno duende que, desde a noite dos tempos, protege esta antiga família Heinzelmann ou não nos chamássemos assim. Nesses escassos segundos que duraram uma eternidade, um Heinzelmänchen misericordioso apontou-me, num canto da sala, um garrafão fraternamente ibérico de rioja tinto.

Num grito de patético alívio mostrei aos circunstantes a "pomada" espanhola, gabei-lhe os méritos (subitamente prodigiosos), o toque, o aroma, a finura da lavra, enfim converti um vinho honrado mas sem pretensões no Rembrandt da viticultura peninsular. Em tudo isto, é bom que se diga, fui leal e resolutamente apoiado pela catalaníssima Tani e pelas duas esponjas que respondiam por Lech e Michael.

A batava gente, antes um pouco ofuscada pela condenação sem atenuantes do rosadeco, felicitava-se, agora, pela compra providencial do garrafão olhando-o com alcoólica ternura enquanto me devolvia a cortês gentileza inicial. Suponho que, nesse dia "altamente perigoso", não servi a pátria tanto mais que me bandeei, ainda que só vinicamente, com Castela.

A meu favor apenas alego que, nesses tempos, a liberdade e a democracia ausentes não puxavam para o patriotismo "a outrance” e que o amor pode ser louco desde que não seja pouco!


Gaudeamus igitur!

Em memória de Alatha v.d.B.: o amor não foi pouco, antes pelo contrário, mas não terá sido suficiente contra as razões da morte. Tantos anos depois, recordo-a com uma imensa alegria.

4 comentários:

EU SOU LUZ disse...

Olá,
estava olhando o painel e vi seu blog. É raro um blog em português, que ele me chamou a atenção. Antenado seu blog!
Se houver tempo, passe pelo blog de mensagens.
Abraços
Mara

Silvia Chueire disse...

Dei uma gargalhada ao ler a história do rosé. E percebo claramente a ternura com que você escreve estas crônicas.Claramente.
No mais apoiei-o na saída espanhola. : )

Abraços,
Silvia

M.C.R. disse...

Sei perfeitamente que V, com o seu 7º sentido de poeta (as restantes mulheres que não escrevem tem só seis sentidos enquanto para os homens só há cinco e nem para todos -com esta a nossa cara Kamikaze não resiste - ) leu nas entrelinhas e agradeço-lhe a doce discreção. Agradeço também o seu apoio na saída espanhola. De todo o modo um rioja tinto é, para mim, sempre melhor que um rosé de qualquer nacionalidade.
Abraços
mcr

Silvia Chueire disse...

MCR,

Nem fui tão doscreta, escrevi ali que dei uma gargalhada. Mas foi, digamos, uma discreta gargalhada (se é que isso é possível). Concordo com a sua opinião sobre os tintos de Rioja e foi por isso que o apoiei na saída achada para o dilema afetivo-vínico-familiar.
Quanto aos sentidos, nem sei se tenho tantos. De qualquer modo a ternura tem perpassado estes seus textos.

Abraços,

Silvia