13 julho 2005

Magistratura: Itália e Portugal

"Em Portugal nada de semelhante ao que ocorre em Itália se poderia passar! Entre nós governa um partido de esquerda, que, por o ser, nunca pensaria em vingar-se das magistraturas por causa de concretos processos que tivessem afligido militantes seus...

1.No próximo dia 14, a magistratura italiana fará, pela quarta vez na sua história, uma greve. Trata-se de um movimento cívico de protesto contra a chamada "lei Castelli", que o Presidente da República, Ciampi, se havia já recusado a promulgar e que Leandro Despouy, o relator especial da Nações Unidas da Comissão dos Direitos Humanos sobre a Independência dos Juízes e Advogados havia, recentemente, considerado "uma limitação inquietante da garantia da independência que desde há um decénio caracteriza o sistema judicial italiano, confere à Itália um prestígio moral invejável e constitui um modelo para os outros países".
O Presidente Ciampi considerou, quando decidiu não promulgar a lei, que a dita reforma subtrairia as prerrogativas constitucionais do Conselho Superior da Magistratura na gestão da carreira do magistrados, implicaria uma separação radical entre juízes e procuradores, produziria uma hierarquização insuportável do Ministério Público e não responderia, de facto, a nenhuma das reivindicações e preocupações dos cidadãos quanto à eficácia e garantias do sistema de justiça. Claro que tudo isto se passa na Itália de Berlusconi, que diz querer, deste modo, legitimar a magistratura, mas que muitos alegam pretender, afinal, simplesmente, vingar-se dos seus juízes, devido aos processos de que foi e é alvo.

2. Em Portugal, nada de semelhante se poderia passar!
Em primeiro lugar, porque entre nós governa um partido de esquerda, que, por o ser, nunca pensaria em vingar-se das magistraturas em geral, por causa de concretos processos que tivessem afligido militantes seus.
Em segundo lugar, porque a "inteligência", as "elites intelectuais" portuguesas, que muito têm pensado sobre estes assuntos, não deixariam. Lembremo-nos de artigos recentes e eloquentes intervenções públicas de alguns deles sobre a matéria. Um professor de Direito Constitucional que já antes do 25 de Abril não gostava de greves dos alunos e que agora, coerentemente, continua a não gostar que os mesmos ex-alunos façam greve por serem magistrados; embora se esqueça de referir a jurisprudência do Tribunal Constitucional - o único tribunal maioritariamente não composto por juízes de carreira - que legitimou essa prática. Um "educador da classe operária" que foi (é?) advogado de uma multinacional do petróleo e que também não gosta de greves dos magistrados, porque põem em causa os órgãos de soberania - "do Estado burguês", supõe-se! Um sociólogo que, depois da crítica ao jornalismo português pela forma como, sem pesquisar os factos, noticiou um "arrastão" - que afinal não existiu - afirma, sem hesitação, que o poder político só nomeia, como representantes para o Conselho Superior da Magistratura, outros magistrados de carreira, facto tão evidentemente verdadeiro como o referido "arrastão".
Em terceiro lugar, porque vivemos num país onde a cultura cívica e democrática é exemplar e tanto bastaria para proteger a magistratura. Recordemos, a propósito, as sondagens que atribuem folgadas vantagens a candidatos às autárquicas que foram e são alvo de processos-crime relacionados com o exercício dessa função. Daí que alguns dos referidos intelectuais tenham, até, assisadamente, aventado que era preciso "legitimar" os magistrados pela via eleitoral, no pressuposto, absolutamente comprovado, de que a legitimação maioritária pode tornar verdadeiro um facto falso ou justa uma sentença iníqua.
Por isso, estou certo, em Portugal nada se passará como em Itália. Podemos, assim, justamente, prestar a nossa desinteressada e indignada solidariedade aos juízes italianos, alvos de métodos nunca vistos nem experimentados no nosso democrático país."

por António Cluny, Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, in Público de hoje

12 comentários:

josé disse...

Palmas para o "nosso" abade! E que me desculpe o epíteto mas é irresistível, por causa da ordem.
O CLuny, enquanto sindicalista, está a revelar-se surpreendente- no bom sentido. Um dia destes, ainda retiro as reticências...

assertivo disse...

Acutilante texto! Parabéns ao Dr. António Cluny que, duma penada certeira, "arrasou" a tal inteligentsia tão aplaudida por alguns colaboradores e comentadores do Incursões aqui (http://incursoes.blogspot.com/2005/07/as-corporaes-e-repblica.html) neste postal...

assertivo disse...

Compadre Esteves, adorei este seu argumento de autoridade nos comentários ao postal que referi no meu comentário anterior:
"compadre esteves diz...
Reparo que Vital Moreira transcreve parte do texto de Jorge Miranda no seu blog. Naturalmente, a aceitação do artigo entre personalidades como V.M. deve ter algum significado!"

Só que, autoridade por autoridade, o T. Constitucional deve ter mais do que Vital Moreira, não?
Sempre estou para ver se VM também vai transcrever no Causa Nossa o artigo de A. Cluny, ainda que só em parte (p. ex. aa parte que se refere a J. Miranda...)

E viva o espírito crítico!

Primo de Amarante disse...

Caro assertivo: Repare que disse "deve ter algum significado". Não invoquei a autoridade de V.M. Só pretendi dizer que essa opinião é aceite por mais gente com qualificação.
Olhe, já me cansa este debate. E muito mais os nexos que estabelece ClunY.Os argumentos ad hominem meteram-me sempre muita impressão.
As pessoas não podem criticar a magistratura por terem olhos azuis, serem adovados não sei de quê, terem sido fascistas, etc.?!.. Pensei que argumentos se refutam com argumentos e não com falácias.
Espero não voltar ao assunto. O tempo acabará por dar razão a quem a tiver. E se forem vossas excelências eu tirar-lhes-ei o meu chapéu.A minha preocupação é a da credibilidade da Justiça e mais nada. Sei que o rosto da justiça são os magistrados, como V.Excelência sabe melhor do que eu.

Primo de Amarante disse...

Tive um colega, no Seminário dos Olivais , em Lisboa, que era Bruto da Costa. Entrou logo a seguir ao Grande Encontro de jóvens (196?). Estudava no Instituto Superior Técnico, antes de entrar para o Seminário. Fomos colegas do Fanhais, do Lobo Antunes (hoje, arquitecto)e do Seruya. Já não o vejo há trinta e tal anos. Era um excelente amigo. Se for da sua família, Francisco Bruto da Costa , dê-lhe um grande abraço; diga-lhe que sou o "primo". Eu era assim conhecido por tratar todos os colegas por "primo". Agora, trato-os por camaradas (aqueles com quem gosto de me sentar à mesa). Outros tempos, outras crenças, mas o cimento da amizade ficou.

Primo de Amarante disse...

Quando releio, noto, por vezes, as minhas dislexias. Queria dizer advogados e não "adovados" Nem há nenhum "lapus" com os advogados "adubados"(que ficam muito caros). E já agora só mais esta questão, amigo assertivo: será que tudo o que não é inconstitucional é apropriado?!... Eu não percebo nada de jurisprudência: só faço uma pergunta.

Primo de Amarante disse...

Tudo bem. Também me parecia que, não sendo inconstitucional, um procedimento(como a greve) pode, segundo outros pontos de vista, não ser apropriado. E esta é a única questão problemática. Mas não estou muito motivado para este debate. Gostava de ter noticias do MEU AMIGO, e presumivelmente seu familiar, Bruto da Costa. Estou a vê-lo: alto, elegante e de òculos graduados. Para além disso, olhe que é BOA CEPA! Das melhores que conheci e tenho, felizmente, bons amigos.
Um abraço pelo seu cuidado e pelas considerações que fez ao meu comentário.

Gato_Maltez disse...

Por regra, o Dr. Cluny sabe daquilo que fala. Quando quer e lhe convém, consegue ultrapssar a "cartilha da dialéctica". Felizmente, longe vão os tempos em que o Sindicato metia "Pena", real ou não...

Os meus parabéns Dr. Cluny, desde os tempos em que dirigiu com uma óptima equipa o MP de Cascais.

Primo de Amarante disse...

A ética da comunicação não é uma "cartilha", mas um conjunto de regras que dão credibilidade à argumentação. Argumentar é saber encadear razões pelas quais se possa inferir uma conclusão racional. Para que a argumentação não se traduza numa "arte" de condicionamento falacioso (próprio dos sofistas) e, por isso, num logro, Habermas defende as seguintes regras:
1º Condições lógicas da argumentação:
1.1.Qualquer discussão deve pautar-se por amor à verdade e à sinceridade.
1.2.A nenhum falante é licito contradizer-se
1.3.Todo o falante que aplicar um predicado “F” a um objecto “a” tem que estar disposto a aplicar “F” a qualquer outro objecto que se assemelhe a “a” sob todos os aspectos.
1.4.Não é lícito aos diferentes falantes usar a mesma expressão em sentidos diferentes, nem pretender conclusões por condicionamentos psicológicos ou justificar posições com o recurso a ataques pessoais ou a uma autordade que não pode ser evocada.

2.Condições pragmáticas da comunicação.

2.1.A todo o falante só é licito afirmar aquilo em que ele próprio acredita.
2.2.Quem atacar um enunciado ou norma que não for objecto da discussão tem que indicar uma razão para isso.

3.Regras do discurso argumentativo.

3.1.É lícito a todo o sujeito, capaz de falar e agir, participar no discurso.
3.2.É lícito a qualquer um problematizar qualquer asserção
3.3.É lícito a qualquer um introduzir qualquer asserção no discurso.
3.4.É lícito a qualquer um manifestar suas atitudes, desejos e necessidades.
3.5.Não é lícito impedir algum falante por uma coerção exercida dentro ou fora do discurso, valendo-se dos seus direitos estabelecidos em 3.1. e 3.2.

josé disse...

Compadre:
Ao ler esta passagem -"A todo o falante só é licito afirmar aquilo em que ele próprio acredita"- ocorreu-me imediatamente o discurso político dos líderes, neste caso, o do Sócrates...

Primo de Amarante disse...

Caro José: será que isso invalida o princípio regulador da comunicação?!...
Evidentemente que é difícil ler o que se passa na consciência das pessoas. Por isso, os princípios da lógica não se podem contradizer no sujeito que afirma orientar-se pelos mesmos: Por isso, se implicam os seguintes princípios lógicos reguladores da argumentação: «1.1.Qualquer discussão deve pautar-se por amor à verdade e à sinceridade.1.2.A nenhum falante é licito contradizer-se.1.3.Todo o falante que aplicar um predicado “F” a um objecto “a” tem que estar disposto a aplicar “F” a qualquer outro objecto que se assemelhe a “a” sob todos os aspectos».
Fora de regras universalizáveis, a
comunicação fica entregue às artes da demagogia, mesmo que diga combater a demagogia.

Primo de Amarante disse...

Aliás, o espirito as regras é o espirito das leis. Não é por um "criminoso" jurar que cumpre a lei, que a lei perde a sua força de imperativo universal. O mesmo se passa com as regras da argumentação.