Por muitas e boas razões que não vêm ao caso, o José parecia o homem certo a contratar pela empresa.
Brasileiro oriundo do Piaui (um dos estados mais pobres do Brasil, se não o mais pobre) e residente no país da sua nacionalidade, aquela oferta de emprego em Portugal pareceu-lhe uma oportunidade a não perder: eram-lhe oferecidas, por pessoas que conhecia e nas quais tinha razões para depositar confiança, condições de estabilidade no trabalho, alojamento digno, benesses para a sua família e um bom salário, mesmo para os parâmetros portugueses.
Sabia-se de antemão que havia muita burocracia a vencer, mas parecia haver tempo de sobra até meados de Setembro, data em que começariam, em Portugal, as aulas da filhota de 11 anos que, naturalmente, tal como a mãe, viajaria com o José - obtidos que fossem os vistos, os delas ao abrigo da "lei de reunião familiar" .
Depois de pesquisas várias junto de organismos oficiais e nos respectivos sites na net, concluiu-se que, para o José iniciar, no Brasil, os procedimentos para obtenção do(s) Visto(s) - tipo IV, a empresa tinha que obter, previamente, em Portugal, dois pareceres positivos à sua contratação:
– um primeiro do Instituto do Emprego e Formação Profissional-IEFP/Centro de Emprego da zona onde seriam exercidas as funções, através do qual seria confirmado o registo fiscal da empresa (CAE) em actividade compatível com as susceptíveis de contratação de emigrantes (aliás, poucas), bem como a inclusão das funções a desempenhar pelo trabalhador nas previstas para contratação dos mesmos;
- um segundo da Inspecção Geral do Trabalho (IGT), através do qual seria confirmada, para além da regularidade de um sem fim de documentação garantística para o trabalhador, a conformidade do contrato de trabalho com as normas específicas exigidas para a contratação de emigrantes.
Procurando mais fácil orientação por entre os inúmeros instrumentos legislativos/regulamentos aplicáveis, a empresa confiou, sem mais, em informação dada pela pessoa responsável pelo despacho deste tipo de processos no Centro de Emprego, quanto ao tipo de funções admissíveis para contratação de emigrantes. Acabou, assim, por ver recusado o pedido de parecer do IEFP porquanto, muito embora a actividade por ela desenvolvida admitisse, em abstracto, a contratação, não era a mesma autorizada para as específicas funções referidas para o trabalhador (ao contrário do que, como se referiu, fora informado). Chamemos a estas funções inicialmente propostas, para aligeirar e facilitar melhor compreensão futura desta saga, as de “caça aos gambuzinos”.
Passara, entretanto, mais de um mês.
Após diligências várias para obtenção de novo CAE, correspondente a actividade secundária constante do pacto social da empresa, no âmbito da qual as funções a desempenhar pelo trabalhador também se inseriam, não se colocando, neste caso, restrições à contratação de emigrantes para o seu desempenho, juntou a empresa, ao processo já iniciado no Centro de Emprego, requerimento solicitando a emissão de novo parecer, agora favorável atenta a documentação com este junta e as diversas funções a desempenhar pelo trabalhador. Chamemos a estas, pelas razões já acima referidas, as de “pau para toda a obra”.
Entretanto, porque o tipo de actividade no âmbito da qual a empresa manifestara agora, junto do IEFP, pretender a contratação obrigava a juntar ao parecer a pedir à IGT, mais um sem fim de documentos, tratou de os obter.
Tornava-se necessário para tanto e para além de muito, muito mais, adquirir impressos. Alguns estavam esgotados naquela cidade de província e não se sabia quando viriam mais, pelo que o melhor era adquiri-los em Lisboa. Enfim, compraram-se... na capital.
Quando tudo parecia em ordem para obter os almejados documentos que haviam de acompanhar o pedido de parecer à IGT, eis que surge esta insólita situação: para os conseguir a empresa necessitava comprovar a existência de um seguro de acidentes de trabalho em nome do trabalhador, apesar de este ainda não o ser… e poder nunca vir a sê-lo! Tendo em vão tentado obviar a este absurdo, acabou a empresa por se propor fazer tal seguro, naturalmente com eficácia imediata no que a pagamentos do prémio respeita…
Foi então que a compreensão por parte do responsável local da seguradora – ainda que conseguida à custa de não poucas manifestações de determinação (ou seria já de desespero?) por parte da empresa -, relativamente ao absurdo da situação que se desenhava, obviou a que esta se visse forçada a desistir da contratação do José, naquele preciso momento em que se propunha fazer o dito seguro! É que, ao menos aparentemente, sem tal compreensão, ao efectuar este novo contrato com a seguradora a empresa teria a taxa do já existente para os seus trabalhadores (todos no âmbito da actividade principal da firma) aumentada para mais do triplo, por ser esta a taxa aplicável à actividade secundária ao abrigo da qual fazia o seguro do seu putativo novo trabalhador, automaticamente extensível a todos os demais, ainda que comprovadamente não trabalhassem na mesma actividade!
O José não o sabe, mas foi graças a esse momento de sensibilidade anti-burocrática, de alguém cuja intervenção em todo este processo não se cogitava, que pôde continuar a ter esperança no seu futuro em Portugal…!
De insistência pessoal em insistência telefónica e vice-versa, junto do Centro de Emprego, e depois de constantes promessas nunca cumpridas de “assim que estiver pronto telefonamos” e ”é já amanhã”, mais outro mês decorrera quando o novo parecer veio finalmente. Era positivo, hélas!
O passo seguinte era o pedido de parecer à IGT, para o que era necessário madrugar à porta das instalações, pois o atendimento é feito só de manhã e são distribuídas, diariamente, às 09h00, apenas 10 a 15 senhas, salvo-conduto indispensável para se chegar à fala com o funcionário de serviço e fazer entrega da documentação.
Como ali ainda não chegara a moda de “comprar o lugar na bicha” (falta de mercado, por razões óbvias...), o melhor era estar à porta pelas 8H00.
A 1ª tentativa gorou-se: volte amanhã…
A empresa voltou. Mais cedo, claro. Mas, ainda assim, já estavam 21 pessoas à porta da IGT... as hipóteses de conseguir senha eram improváveis. Porque de um processo de determinação já há muito (também) se tratava e o tempo começava a urgir, aguardou. Pacientemente, como o faziam os 21 brasileiros, ucranianos e (até) paquistaneses que pareciam já conhecer bem o empedrado daquele passeio à porta da (des)esperança: sem bicha organizada, assim que o porteiro/segurança apareceu, às 9h00, com as almejadas senhas, todos sabiam quem estava à frente de quem.
Ditou a sorte que algumas dessas 21 pessoas pretendessem apenas informações, ou seja, que lhes fosse distribuída uma senha cor-de-rosa, conseguindo a empresa, num sufoco crescente à medida que a bicha decrescia, obter a 13ª senha amarela em... 15.
O atendimento só se iniciou pelas 10h00. Na pequena sala de espera, atulhada, apenas se ouvia a voz do porteiro/segurança quando, uma vez por outra, na sequência de algum telefonema, soprava "isto hoje está um caos, isto está um caos!" Ao que os expectantes, silenciosos, se limitavam a apertar ainda mais, com as mãos àsperas, as pastas de plástico baratuchas com mais aquele papel que faltava da última vez.
Pelas 11h00 chegou da rua uma mulher (que penara para conseguir subir as escadas com o carrinho de bébé que empurrava, sem que os ali presentes lhe dessem uma mão), visivelmente "a leste", a quem o "assoberbado" porteiro/segurança acabou por, condescendente, informar que só poderia ser atendida no dia seguinte. Vendo-a ficar hirta, desorientada, no meio do exíguo espaço, agarrada ao carrinho de bébé, a empresa interpelou o porteiro/segurança: não pode ao menos informar a senhora que tem de vir cedo, antes das 8H00, para conseguir senha?! Ah não, isso não posso fazer, eu sei lá se no próximo dia vai haver muita ou pouca gente para ser atendida! Mas à nossa empresa informou isso mesmo pelo telefone! Bem, isso depende, enfim, eu não posso assumir essa responsabilidade, isto está um caos, bem, olhe, a senhora é melhor vir antes das 8H00...
Enquanto isto, nem uma agulha bulia no silêncio do caminho: os pares daquela mulher há muito haviam aprendido as vantagens de não levantar cabelo...
Aproveitando a embalagem, a empresa, alto e bom som, protestou ir fazer reclamação escrita (a caixinha em frente estava mesmo a pedi-las: "ajude-nos a servi-lo melhor, deixe aqui as suas sugestões!") pelo facto de o atendimennto só ter começado às 10H00, quando os serviços abriam às 9H00 e havia ali gente à espera pelo menos desde as 7H00!
Pelas 12H00 chegou a vez de a empresa ser atendida.
É claro que a saga estava longe do fim. Pelo que, devido ao adiantado do post, noutro se seguirão as cenas dos próximos capítulos.
29 agosto 2005
Burocracia, desleixo, incompetência - "a never ending story", cap. I
Marcadores: kamikaze (L.P.)
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2 comentários:
...Apesar de o post ainda não ter chegado ao fim...por este tempo, ali ao lado, na vizinha Espanha, devem ter desenvolvido não sei quantas centenas de postos de trabalho.
Este post faz-me lembrar a saga por que passei quando pretendi um obter um novo BI, por via de um divórcio.
Entre a sentença homologatória e a emissão do BI decorreram vários meses...
Enfim, tenho para mim que este País se vai tornando cada vez mais ingovernável, digamos que vai mergulhando num evidente processo de africanização, no pior sentido do termo...
Merecemos este destino??
Caro Rui do Carmo
Em relação à Telepac e restantes empresas do Grupo PT é melhor nem falar porque, estou certo, os servidores do Google nem sequer teriam capacidade para alojar tanta reclamação...
À pala dessa incompetência e desprezo pelos mais elementares direitos dos consumidores, o Grupo PT apresenta as mais elevadas taxas de rentabilidade de TODAS as Telecom's da Europa.
Um bom dia.
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