21 outubro 2005

Au Bonheur des Dames nº11

Dois presuntos abatidos
desaparecido um terceiro

Na cidade em que passei a infância não há segredo que se mantenha por muito tempo. São assim as terras pequenas que preguiçosamente se aninham entre mar e serra à espera de um verão tumultuoso que ressuscite o Casino e a praia. As pessoas conhecem-se quase todas de tanto se cruzarem pelas mesmas ruas, lojas e cafés pelo que qualquer novidade por pequena que seja é alvoroçadamente acolhida, analisada e ecoada para quantos estejam ao alcance de voz.

Nada tenho contra este costume que alíás obedece a dois princípios que o meu querido amigo Márinho Santos sintetizou brilhantemente ha já muitos anos:
1º Dizer bem é supérfluo.
2º Os amigos não têm defeitos.
Como se vê o genial Mário explica em nove palavrinhas o enraízado hábito da má língua, do soalheiro que é o principal garante da coesão comunitária de uma pequena sociedade. Não só o define na primeira proposição como lhe estabalece os precisos limites na segunda. Os amigos, parentes e aliados, também têm a vida devassada mas com discrição. À volúpia do prazer de saber acresce esse modesto mas forte gozo do segredo.

Eu sei que, dentre os poucos leitores que me são fieis, haverá algum que torça o nariz a tanta tolerância mas convirá preveni-lo que ela se funda numa sólida experiência de vida. Mais: temo o dia em que a curiosidade de vizinhos e conhecidos esmoreça pois isso apenas significará o advento de uma cultura de ensimesmamento e solidão.

A história de hoje foi já contada um bom par de vezes e, como de costume, distraído que sou, esquecida quase outras tantas. Fixo-a agora nesta folhinha breve diluindo em pseudónimos farfalhudos as personagens envolvidas cujos nomes de resto mal recordo.

Ora então é assim: em princípios de sessenta aportou à nossa cidade um senhor doutor e respectiva mulher. Além da licenciatura que ostentava, o cavalheiro (que de um gentleman se tratava) fazia gala de ilustres antepassados e maneiras impecáveis. Isto e uma mulher bastante mais nova, elegante e muito bonita já daria, como calcularão, pano para mangas. Todavia, porventura por descender de vinte gerações de ociosa fidalgaria, o dr Smythe-Vasconcellos entendia ser o trabalho algo que lhe não quadrava: à uma isso fatigava-o, depois obrigava-o a privar com clientes pouco educados e, finalmente, gostava de dormir até tarde.

Convenhamos que o programa de vida de Vasconcellos com dois LL era sedutor e, apesar de elaborado por alguém convenientemente conservador, tinha um ligeiro ressaibo revolucionário, mais propriamente, lafarguiano. Só que o mal chamado direito à preguiça presssupõe a existência de uma qualquer fonte de rendimentos que nos permita barrar de manteiga o pãozinho quotidiano. Ora vinte gerações de Smythe-Vasconcellos tinham, pouco a pouco exaurido, o cofre familiar. O dinheiro, ao contrário dos bons modos, gasta-se com certa rapidez e não se reproduz sem esforço.

Ou reproduz-se, mediante certas condições. E é aqui que entra em cena um segundo actor: nas pequenas cidades há sempre um oligarca local empreendedor forrado a dinheiro e com fome de carne fresca. O dono desse dois sólidos atributos chama-se neste vaudeville provincial Nogueira Simão, já não está na primeira juventude, tem mulher, filhos e uma longa lista de amantes no passivo.

À vista da Vasconcellos é tiro e queda: ataque picado ao solo como um Mig 21. Femme du monde e sem frio nos olhos, Mafalda está pelos ajustes desde que Vasconcellos também esteja. E este está, obviamente. O trio organiza-se em boa paz que é tudo boa gente. N.S. paga as contas, Mafalda paga com o abençoado corpinho que Deus lhe deu e Smythe apara os cornos com a displicente elegância herdada de vinte gerações de Vasconcellos.

A cidade tomou conhecimento como lhe competia e, habituada e tolerante, aprovou o negócio, comentando-o abundantemente e comparando-o com os anteriores amancebamentos de Nogueira. Tratava-se de gente bem educada, discreta e com meios pelo que a boa sociedade local avalizou a situação fazendo de conta.

Porém, nestas comédias de boulevard nada é tão simples como parece. E a complicação surge num segundo acto com a aparição, aliás esperada, de um catalisador a quem vamos chamar Francisco ou melhor Xico. Xico tout court como convém a homem novo e do povo, bem parecido e sem meios de fortuna. Assalariado ainda por cima, ou trabalhador por conta alheia como, modernamente, se diz. Xico é chefe de mesa num restaurante médio, famoso pelos petiscos que serve e onde, volta que não volta, se acaba a noite depois da canasta no Club ou do pé de dança no Casino que só assim se poderiam conhecer Mafalda e Xico.

Nesta cidade de prodígios costuma dizer-se que quem não rema já remou e quem não tanoa já tanoou. Desconhece-se a propensão dos dois pombinhos para as artes náuticas mas em contrapartida sabe-se, de ciência certa, que Mafalda entendeu conceder a Xico os mesmos favores que por casamento e conveniência concedia ao marido e ao amante. Para a juventude universitária local, impecuniosa e anticapitalista, isto tinha o sabor do temps des cerises vindouro e era uma clara confirmação do processo histórico na sua feição mais radical: o proletariado tomava de armas e bagagens o último reduto da velha ordem e atirava para os cafundós da história a aristocracia decadente e a burguesia conquistadora.

Infelizmente nem o marido complacente nem o amante generoso comungavam deste ponto de vista: entendiam a intrusão de Xico como gravosa para os seus interesses tanto mais que a este sobrava em ímpeto juvenil o que neles, já muito rodados, ia começando a fenecer. E deram em ter ciúmes do terceiro homem.

Vasconcellos entendeu que o segundo par de chavelhos exigia resposta viril e decidida pelo que desancou a adúltera. Nogueira igualmente enxovalhado e vendo o seu investimento também transformado em chifres muniu-se de um pistolão e foi por Xico.

É, porém, por demais sabido que às cidades de pequena e média dimensão não estão concedidos dramas mas tão somente uma que outra tragicomédia.
E foi assim que entrando Nogueira Simão aos tiros no plácido restaurante em que Xico oficiava conseguiu este escafeder-se por milagrosa e oportuna porta das traseiras. O tiroteio se bem que nutrido teve parcos efeitos que o medo e a mão trémula do atirador diminuiam a eficácia vingadora da pontaria.

Testemunhas deste OK corral português afirmam que as balas atingiram e fizeram tombar alguns presuntos pendurados no tecto. E é aquí que ocorre a maior divergência na história que venho debitando. O proprietário do estanco declarou que além dos dois presuntos danificados desaparecera um terceiro.

Talvez se possa esclarecer o mistério deste desaparecimento se conseguirem interrogar algum dos bem dispostos esquerdistas já referidos que nesse dia prodigioso lanchavam no estaminé. Consta que não só se retiraram sem pagar para (como terão alegado mais tarde...) não ser alvo da artilharia do senhor da terra mas que, sob casacos, levariam um volume suspeito com a forma de viola. E como nenhum era músico...
Este texto da série "Heimat" vai oferecido a António Manso Pinheiro, ao seu irmão Alberto, aos manos Cardoso e ao Rodrigo Santiago. E em memória de Alfredo Soveral Martins, adoptivo filho da terra, meu amigo e D. Juan perigossímo

2 comentários:

Silvia Chueire disse...

Divertiu-me este tambem MCR, como as outras crônicas. Grata por elas.

Abraços,
Silvia

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Fantástica terra, que proporciona estórias assim!