09 outubro 2005

Diário político 3

Para acabar de uma vez por todas com a limpeza das estrebarias de Augias
nestes "samizdats" epistolares

Existe, de facto, uma opinião bem
enraizada, perigosa para o Estado
e danosa para Vós e que corre
entre nós em conversas e até entre
estrangeiros. Pretende-se (com ela)
que, nas instâncias judiciárias,
se o acusado é rico, é impossível
condená-lo seja qual for a sua culpa.
"

Cícero "Iª Acção contra Verres", Ex.I, 1

Comece-se por essa coisinha de somenos que é uma nota prévia e que se segue: vai fazer-se uma citação do estimável Professor Freitas do Amaral que, a 11 de Abril, se produziu no imparcial estúdio da RTP cascando, forte e feio, em Cavaco e na sua comitiva. Não se trata contudo, de exaltar a figura, imponente mas pesada, do ex-candidato às presidenciais só porque, conjunturalmente, traz água ao meu moinho, mas, tão somente, de obter boleia de uma sua afirmação. Vai, em troca, para o ilustre jurista a citação sacada das Verrinas para ele, se me ler, a aproveitar. Devolvido o galhardete vamos à frase biliosa mas certeira:

"Duvido que os membros do governo tenham alguma vez lido Cícero."

Comentemos: a cicuta, servida em onze simples palavrinhas do senhor professor, é, como verdade, imparável mas não desdoura, afecta ou, meramente, belisca o prestígio do Ministério. É flecha de pouca velocidade e penetração para quem tem um lombo mais defendido do que um rinoceronte... Para caça grossa deste jaez só bala dum-dum e, mesmo assim, não é de pôr a mão no lume ...

Ora vejamos: o senhor doutor Cavaco foi eleito, quer dentro do seu partido, quer, mais tarde, pelo país, por razões que nada têm a ver com os seus eventuais méritos de leitor insaciável, de coleccionador de arte ou de angustiado pesquisador das últimas e terríveis verdades. Pelo contrário! O Dr. Cavaco foi eleito porque prometeu fazer contas certas, com prova dos nove e tudo, desenvolver Portugal construindo força de estradas, ferrovias, escolas e fontanários e, ainda, enriquecer a lusitanagem graças a uma política de rendimentos que não só reduziria o preço do bacalhau mas, sobretudo, acabaria com o fantasma recorrente da inflação maila horrenda espiral dos impostos. Em estritos termos de campanha, o mundo da leitura (para só falar deste) estava limitado à "Nova Gente", ao "Tio Patinhas" e, a la rigueur, à consulta trémula e ofegante das cotações da bolsa.

Os portugueses, na generalidade, e os adeptos de Aníbal, em especial, não se mostraram desanimados perante este parco entusiasmo pelas letras (excepto as de câmbio). Boa parte da oposição, esquecida que foi a bizarria teimosamente cultural do Dr. Soares, também não se revelou particularmente agastada. Estou, aliás, lembrado de um spot eleitoral do PS (cuja figura tutelar e gigantesca é Antero de Quental) em que o secretário-geral da altura se mostrava, em todo o seu baço esplendor, num canto de sala, dedilhando um computador caseiro e tendo por fundo uma pilha ameaçadora de manuais de economia.

O hapening eleitoral trouxe, assim, à luz pungente da ribalta, essa memória desgarrada de "Farenheit 451" substituindo, todavia, como convém aos nossos brandos costumes, os encarregados do auto de fé pelo desprezo mediático pelos livros.

Aliás, e sempre nesta onda mansa mas persistente, vale a pena recordar uma reportagem sobre uma responsável pela cultura em que esta se expunha, angélica e enigmática, na sua sala. Avultava naquele gineceu, subitamente revelado à curiosidade dos leitores, uma estante onde, para além de raros livros (aparent rari nantes in gurgite vasto...) se acumulava, numa sábia, se bem que desenfastiada, ordem, uma série de objectos que, além de decorativos, preenchiam aquele uivante vazio. Simples mas chic!

Diga-se (ai estas digressões ...), aqui, e muito à puridade, que tal fotografia deu azo a um texto cáustico de Américo Guerreiro de Sousa (JL 13/6/88) ao qual (subitamente arvorado em defensor das donzelas, das viúvas e dos órfãos) responderia Eduardo Prado Coelho adido cultural em Paris.

Voltemos, porém, à vaca fria, isto é, à livralhada que o Governo lê, sopesa, desfolha e, eventualmente, manda encadernar em percalina vermelha.

O Professor Amaral, com a ânsia e o desvario que caracterizam os chefes das pequenas formações partidárias, comete o pecado venial de apontar à execração pública o ramalhudo naipe de personalidades que paternalmente guia o rebanho lusíada para as pastagens de verão europeias. Sentencia o ilustre catedrático que o Governo não lê Cícero (Marco Túlio de seu nome).

Acrescento: também não lê Salústio, Petrónio, Virgílio, Horácio ou, sequer, César. Da Roma antiga e virtuosa nada sabe além do que os filmes de Cecil B. de Mille lhe mostraram em tecnicolor. Saberão de Nero e da sua lira, da meiga Lígia e do fiel Ursus e das desditas dos centuriões em missão na Gália frente a Asterix e Obelix. E já tiraram uma fotografia junto às ruínas do Coliseu.

Dir-se-á que é pouco. Retorquirei, todavia: como é que, numa equipa formada por engenheiros e economistas, há-de haver quem tenha pachorra para ler latim, língua inçada de tanta declinação que já nem sequer se usa na missa? Não será estulto ou, pelo menos, exagerado exigir que, para além do inglês comercial e do castelhano de Badajoz e dos "Preciados", o Governo domine uma língua morta? Baixaria a taxa de inflação se o Dr. Cadilhe soubesse enunciar fero, fers, ferre, tuli latum? Teria o Dr. Carlos Macedo outra sorte se o Dr. Cavaco, em vez de se zangar, lhe murmurasse ao ouvido, severo mas paternal quousque tandem Catilina... ou mesmo (e arroubado) tu quoque...? Amaciar-se-ia a Dra. Beleza se o bastonário da Ordem dos Médicos lhe entrasse de rompante pelo gabinete e trovejasse O regina novam cui condere Jupiter ..., tomando-a a ela por Dido e a si e aos seus colegas pelos prófugos troianos?

Por favor senhor Professor! O País quer res, non verba o mesmo é dizer actos e não paleio, treta, chinfrim, blá-blá!

O povo (que é soberano) votou em homens e mulheres deste final de século e não em clercs! Quer o orçamento geral do estado a tempo e horas e não uma alocução sonolenta e patrioticamente reivindicativa sobre as virtudes comparadas da écloga "Crisfal" e do "Amadiz de Gaula".

O diligente empreiteiro que pretende os terrenos do hospital Júlio de Matos ficaria alarmado se o senhor ministro das obras públicas o convidasse a discutir a influência de Zola na obra de Eça de Queiroz.

Se, acaso, o senhor ministro da agricultura se dispusesse a receber os dirigentes do proletariado agrícola do distrito de Beja (que, como ele, se queixam da falta de caroço) não seria tomado a sério se desatasse a recitar-lhes Florbela Espanca ou o senhor Conde de Monsaraz. Não cai bem a um ministro aventurar-se pelo terreno sempre difícil do soneto.

O Dr. Oliveira Salazar, que era um intelectual, tinha quanto a isto uma posição clara e definitiva: ao povo bastava saber ler um edital e assinar laboriosamente o nome. Tudo o resto revelava má formação moral e um incontrolado e subversivo gosto pela balivérnia. E as elites também não lhe suscitavam arroubos culturais. Aos ministros não só não admitia vestuário displicente como também empenhamento cultural. E tinha carradas de razão.

Imagine-se o absurdo que seria se a Dra. Beleza (sempre esta mulher fatal) se tomasse por Madame de Bovary! E se o Dr. Deus Pinheiro se entusiasmasse, mais do que a razão aconselha e o decoro permite, pelas "Ligações Perigosas" de Laclos? Alguém de bom senso e de bom gosto se disporia a ouvir o ministro Mira Amaral (que sobre o eucalipto nos brindou com a densa metáfora de petróleo verde) recitar, dionisíaco, Ay flores, ay flores do verde pino ? Crê alguém que aquele secretário de estado dos impostos, cujo nome nunca me ocorre, será capaz de declamar outra coisa que não seja a tabuada dos nove?

Seja-me porém, permitido, já quase no fim desta jornada, um distinguo. E ele tem por substância o senhor engenheiro Eurico de Melo que cumpre, no actual elenco governativo, com raro aprumo e muito zelo, brio e diligência o cargo de ministro da defesa. Não é de todo em todo impensável imaginar o venerando ancião presidir a um desfile e debitando no seu saboroso português de Santo Tirso:

O soldado vai da terra para galucho
e vai gorducho
que até faz luxo
Mas passadas três semanas de serviço
está magriço
como um chouriço

Objectar-me-ão que ao Eng.º Melo e ao senhor Bispo de Bragança tudo é permitido: são autênticos, mais genuínos que o queijo da serra ou as alheiras de Mirandela. São, numa palavra, telúricos e vem sufragados não só por Torga mas sobretudo pela memória piedosa de Maria da Fonte, poética figura que, muito antes do cantor Vitorino, já era, por interposto hino, estimada em meios castrenses e nos círculos eclesiásticos mais dados à vera ideia da cruzada redentora.

Já se arrasta a parlenga mais do que é devido e necessário para provar a inanidade da doentia acusação do Professor Freitas. Ao governo não compete ler mais do que os pareceres e as circulares preparados com esmero pelos senhores directores gerais. Outras leituras podem não só distraí-lo do duro fardo da administração da res publica mas ainda (e isso é pior) fazê-lo sombriamente pensar, depois de soletrar os textos de escribas contumazes como os senhores Pulido Valente ou Brederode dos Santos, que o País, a sociedade civil, a inteligentsia e a comunicação social estão contra eles.

Ler é um feio vício solitário. Ler latim é, além disso, um perigoso exercício passadista a que não é alheio um sulfuroso cheiro de heresia lefebvriana e integrista que não convém ao governo eleito de uma república laica que a Fátima apenas concede um apeadeiro da CP sem passagem superior para peões.

( finais de 80 ou início de 90)

PS: o autor atreve-se a pensar que este texto ainda tem actualidade, ressalvando (claro!, Credo! Abrenúncio!!!) qualquer intenção maldosa quando ao actual e conspícuo grupo de estadistas que nos governam.

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