14 outubro 2005

Diário político 4

A revolução de Outubro foi em Novembro

Há setenta e um anos, mais dia menos dia, ocorreu a revolução de Outubro assim chamada porque, com a característica desconfiança pelo Ocidente, que sempre animou os povos daquela região, o calendário registava um atraso de dias. Deixemos a outrem o dilucidar deste mistério na contagem do tempo registando, apenas, o facto objectivo de, para o leitor menos versado nestas miudezas, usando a mesma terminologia haver este gap entre os calendários em uso a leste e a oeste. Atribuamos tal diferença ao indefensável progressismo de um qualquer papa ou ao respeito que os russos nutrem pela tradição o facto é que, em termos práticos, o proletário ocidental (espécie em vias de extinção) tem a incómoda sensação de o tempo se escoar mais lentamente na pátria dos trabalhadores. Será um pouco como andar de avião de leste para oeste: se formos suficientemente depressa chegamos ontem a S. Francisco da Califórnia e, com sorte, poderemos encontrar Jim Morrison em Haigh Ashbury.

Vem tudo isto a propósito do "pretenso atraso" com que o Dr. Álvaro Cunhal reconheceu que na URSS tinha havido uns atropelos à legalidade socialista. O Dr. Cunhal, secretário geral do PCP, reconheceu frente às câmaras da RTP que o falecido camarada Jossip Vissaronovicht Djugatchivilli (mais conhecido por pai dos povos, Zé dos bigodes ou Stalin) tinha abusado da receita salazarista dos safanões dados a tempo, que tinham sido abusivamente perseguidos um par de kulaks, os tatars da Crimeia, os mencheviques mais teimosos e irredutíveis, os socialistas revolucionários e, mesmo, alguns dos companheiros do pai fundador do estado soviético Vladimir llicht Ulianov a quem a posteridade reconhece sob o nome de Lenin (o homem do Lena). Estarão entre eles Bukarine, Kamenev e Zinoviev já que parece manter-se a tese de o assassinato de Trotsky (Bronstein no civil) se dever ao acto tresloucado de um amador de picaretas supostamente chamado Ramon Mercader. A desgraça, aliás, ocorreu no México, país violento e de terramotos onde a vida humana tem escasso valor haja em vista o que fizeram ao imperador Maximiliano homem de bem que só queria a felicidade dos indígenas a quem fizera dom da sua augusta pessoa.

Parece pois assim confirmado, e oficialmente, o que, até há bem pouco tempo, era apodado de ataque ao socialismo, grosseiro erro histórico, manobra da propaganda capitalista, anti-comunismo primário, etc...etc... O Dr. Álvaro Cunhal, último abencerragem do Kominform, insuspeito de qualquer pacto com a burguesia garantiu-o alto e bom som.

Mas disse mais. Ficamos todos a saber que os atropelos à legalidade socialista estiveram, durante cinquenta anos, escondidos ao PCP e aos seus dirigentes numa nova versão científica e dialéctica do segredo de Fátima.

O partido, ou melhor os seus dirigentes, submetido à longa noite fascista portuguesa não sabia, sequer suspeitava, que na pátria dos trabalhadores se tivesse cortado o pio e a garganta a quem quer que fosse.

Imagino o Dr. Cunhal numa das suas numerosas viagens a Moscovo, numa roda de amigos, preguiçosamente, à hora da vodka "E fulano de tal?" E a resposta pronta de um qualquer secretário do comité central do PCUS: "Está a banhos em Novossibirsk ou em Arkhangel" -"!Pois então quando regressar dê-lhe um abraço cá do Álvaro. E que, quando passar por Praga, me bata ao ferrolho para um bacalhau com todos! É a Cândida Ventura que o faz com azeite vindo de Beja. Um regalo!"

Ou então um nosso célebre intelectual entre duas palestras na sede da União dos Escritores. -"E aquele rapaz que escreveu "Um dia na vida de Ivan Denissovitch?" Ao que o senhor Cholokov responderia: "O Soljenitsine? Ganhou uma bolsa de estudos para Irkutsk e ninguém o tira de lá. Adora a Sibéria e diz que não consegue escrever sem neve. E depois pode fazer ski todo o ano..."

Foi assim seguramente durante todos estes anos. A inteligentsia mais radicalmente progressista ia à URSS como os peregrinos vão a Roma. Via o Papa de lá, aviava quilos de caviar preto, litros de Stolichkaya e comprava matrioshkas na rua Arbat. À noite assistia à enésima apresentação do Lago dos Cisnes no Bolshoi e regressava maravilhada da terra onde corria o leite e o mel.

Durante todos estes anos os esquerdelhos desviantes, as víboras lúbricas e restantes provocadores não passavam de crápulas destinados ao caixote do lixo da história. Os inocentes úteis quando, pour la forme, se atreviam a balbuciar, sotto voce, que, enfim, talvez Brejnev não fosse um escritor tão brilhante como o prémio Lenin da literatura pressupunha, eram acusados de fazer o jogo da reacção, de desestabilizar Billancourt ou o Barreiro de não distinguir o essencial do ocidental, enfim de não serem capazes de superar os seus complexos pequeno-burgueses.

Recomendava-se-lhes muita autocrítica e muita ginástica sueca para que desta nova teorização do mens sana in corpore sano saísse resplandecente e virtuoso o novo homem socialista.

Agora porém tudo é diferente: agora os erros são clamorosos, agora a verdade já não é aquela a que temos direito mas a sempre revolucionária.

Os enganozitos históricos dos últimos 70/80 anos não passaram disso mesmo - o povo que é sereno, agora, tem não só a possibilidade de saber mas, sobretudo, de verificar que o partido e o seu líder também erram, também são humanos e boa gente e que só pequenas disfunções resultantes de calendários diferentes travaram o acesso geral, universal e gratuito à verdade verdadeira modelo 1988.

1988

feito por d'Oliveira, antiga víbora lúbrica e desviante hoje em dia apenas vagamente desviante que os anos passam e a filha-da-putice circundante não dá para mais...

1 comentário:

M.C.R. disse...

Faz sentido desde que corresponda a uma opção vital, filosófica, ética e estética.
A palavra ideologia tem sido desvalorizada porque a confundem com uma simples e temporal opção partidária. Mas não é só isso, nem principalmente isso.
De todo o modo, agora palavras como verdade, justiça, povo, esquerda, direita etc..., sofrem o mesmo desgaste e as mesmas zombarias. Mas como dizia Galileu: eppure si muove..
E move-se!