18 outubro 2005

Diário Político 5

A pp. 14 da edição de terça feira, 18, o Público traz a 3 colunas um texto de Isabel Arriaga e Cunha sobre a visita de Estado de Sampaio à Bélgica. Com destaque e em caixa vem : custos da visita de Estado são... segredos de Estado e em resumo apenas diz que o MNE não revela os custos da viagem. E que o assessor de Sampaio, João Gabriel, também se não descose.
Isto recordou-me um texto de 89 e que se reproduz tal e qual:

Modesta contribuição para o saneamento das contas públicas pelo recurso ao expediente da contenção forçada das despesas sumptuárias do estado e em homenagem a Sua Majestade El Rei D. João V de saudosa memória, R.I.P.

Oferecido pelo autor aos exmos senhores Drª
A M M, Drª. Amélia Campos, Drª.
Regina Valente, Doutor (por extenso)José
Valente e Engº José Portocarrero e ainda ao
menino John Mikter e extremosos pais.


Noticiam os jornais que o actual presidente da república tem gasto demasiado dinheiro dos cofres do Estado nas deslocações que faz ao estrangeiro. A crer nas fontes geralmente bem informadas, que o redactor anónimo cita, as três últimas viagens (a França, à URSS, e a Espanha) custaram práticamente tanto quanto a campanha de publicidade do novo hospital do Restelo inaugurado, se não nos falha a memória, pela senhora Ministra da Saúde, dias antes das últimas legislativas.

Compreende-se a apreensão dos defensores do erário público - o dinheiro esbanjado na estranja é dinheiro fugido ao circuito económico interno, não se reproduz, não minora o angustioso deficit da agricultura portuguesa, não é reinvestido nas OPV que fazem a glória da nossa bolsa e o espanto das congéneres mundiais.

Pior ainda: na URSS muito bom e valioso escudo foi aplicado a salvar a debilitada economia de guerra soviética podendo mesmo dizer-se - foram feitas contas minuciosas! - que a comitiva do dr. Mário Soares pagou 43 obuses de 155, o mesmo é dizer, 227 paraquedas de seda artificial ou ainda o pré mensal de 1382 soldados afegãos, fieis ao governo de Kabul (fieis, pelo menos, até ao momento de receber o pré).

Isto para não falar no que significou a deslocação a Espanha: à saída do avião de regresso a comitiva vinha ajoujada com o peso de garrafas de Carlos III, pandeiretas, navalhas de ponta e mola, caramelos, baralhos de cartas, números antigos da "Penthouse" espanhola, queijo manchego e chouriços "Revilla"!!!

"É um escândalo", comentou uma anónima fonte do Ministério dos Negócios Estrangeiros. E acrescentava "Pedi ao marechal Spínola que me trouxesse uma embalagem de "Maderas de Oriente" e ele diz-me, com desfaçatez, que aproveitou os últimos trocos para comprar uma garrafa de "Marquês de Riscal" na free shop de Barajas!!!"

Aturdido retorqui-lhe: "Mas os jornais espanhóis, do El Pais ao ABC, vieram cheios de notícias, de fotografias do Dr. Soares e da mulher ..."

"Ora, ora," repontou-me, "A Isabel Preysler sai mais vezes num só dia na "Hola" que o Dr. Soares toda a semana. Nas Necessidades somos pragmáticos - sair na "Hola" ou, pelo menos, na "Interviu" junto à página das raparigas nuas, claro, vale dez editoriais do Juan Luis Cebrian!"

E concluiu: "Além do mais este foguetório à volta do Chefe de Estado e dos seus mínimos passos está a criar no país um indescritível culto da personalidade, princípio condenável aos olhos do governo e da opinião pública esclarecida sobretudo quando, como se sabe, e graças aos esforços do Dr. Durão Barroso, se assiste, pela primeira vez na nossa história, ao espectáculo de uma direcção colectiva, coesa, forte, sem prima dona visível nem tenor destemperado".

Temos assim que, por ocasião da próxima visita de estado a França, se poderá ler no "Le Monde" a seguinte notícia: "O presidente da República portuguesa e comitiva chegaram a Paris com quatro horas e meia de atraso em relação ao calendário previsto. Falta de trocos nas portagens da auto-estrada demoraram, desnecessariamente, os dois autocarros em que viajavam os ilustres visitantes. Aliás, e durante o percurso de dois dias por terras de Espanha e França, registaram-se outros atrasos dada a indisciplina de vários membros da comitiva nos self-services em que se restauravam.

O presidente português está instalado no "Saint Pierre", hotelzinho de duas estrelas na Rue de l´École de Médicine. Fontes da embaixada lusitana garantiram-nos que o quarto presidencial tem casa de banho completa com banheira e tudo –asseveram - Nunca nos passaria pela cabeça dar ao mais alto magistrado da nação um quarto só com chuveiro. Aliás o local é óptimo fica a dois passos da librairie Gibert onde se compram livros a preço de saldo e o metro Odéon está a cinco minutos no máximo. Por outro lado a nossa ilustre delegação pode, sem fadiga, amesendar-se em qualquer dos restaurantes tunisinos ou gregos do quartier de St Séverin que o senhor presidente bem conhece por ter sido frequentador assíduo da antiga livraria de François Maspero, "La joie de lire". E, para cortar cerce qualquer boato de menos estima ou consideração pelo Dr. Mário Soares, estou autorizado a revelar que, se acaso S.ª Ex.ª quiser almoçar na "pizzeria Pino", poderá encomendar queijo Gorgonzola pese embora o facto de cada dose custar quatro francos! E não nos ficamos por aqui. Se por acaso o senhor presidente não quiser queijo nem por isso fica a perder e poderá trocá-lo por meia garrafa de vin du pays.

A embaixada está igualmente autorizada a pagar o café do senhor presidente na esplanada do "Deux Magots" o que só por si representa uma despesa de 13,20 francos. Caso S.ª Ex.ª queira gratificar o garçon o pourboire sairá das verbas consignadas à Casa Civil da Presidência. Quanto à comitiva recomenda-se a bica no "Mabillon" que tem preços mais em conta.

Igualmente se previu a aquisição de uma carte orange válida para 1ª classe, fazemos notar, para o casal presidencial. Os membros da comitiva receberão, cada um, um carnet de 10 bilhetes de 2ª classe.

O banquete que o presidente da república oferecerá ao seu homólogo francês terá lugar no "chez Fernand", nos Halles, que foi a casa que se comprometeu a fornecer um menu turístico de qualidade ao preço mais vantajoso: 49 francos por pessoa, service compris, com direito a sopa de cebola ou terrine, steack garni ou coq au vin, doce ou queijo.

Cremos assim que S.ª Ex.ª se sentirá mais próximo da laboriosa comunidade emigrante" - rematou o nosso informador. E finalizando: "Está previsto um espectáculo nocturno no "Caveau de la Huchette". O porteiro é português e, bem conversado, fará um desconto de 10 francos aos cavalheiros enquanto as senhoras só pagarão meio bilhete."

1989 ?

Os meus escassos (mas fieis!...) leitores desculparão a referencia aos francos mas estes textos têm a idade que têm o que à falta de outras qualidades mais interessantes lhes confere alguma respeitabilidade.

8 comentários:

josé disse...

Estes textos são lidos atentamente. Falam em coisas e loisas e mencionam até a Penthouse espanhola! Juntando-a ao revilla, agora um bocado desapimentado ( ao contrário daquela- será que ainda existe?)e ao manchego, está feita uma merenda em que até os olhos comem.

O meu olhar disse...

Uma delicia a sua crónica caro d’Oliveira!
Já agora, porque não num apartamento em St. Dennis, junto à Igreja de Saint Pierre? É uma boa zona para políticos endinheirados. Fiquei lá alojada estas férias, num apartamento de um realizador que o alugou para arranjar dinheiro. Quando soube onde eu estava instalada um francês perguntou-me: Foi o seu marido que escolheu o apartamento?...

M.C.R. disse...

Muito obrigado "o meu olhar": serão os seus olhos que fazem o milagre de trasformar estas pobres ervas do monte em rosas.
Os franceses, mesmo os melhores, tem um "penchant" machista dos diabos.
A sua intervenção fez-me vir à memória uma excelente comédia (com a Marina Vlady?) "sois belle et tais toi: que programa!
A propos: tem a direcção do apartamento?
É que: on ne sait jamais...
Prezado José
1 suponho que ainda existe a penthouse espanhola.
2. tem razão: o revilla já não é o que era...
3. se juntar á merenda duas fatias de pata negra (o que só a melhora) e um copo de rioja, pode ser mesmo o Marqués de Riscal, então sim a festa era completa
4 muito grato pela sua leitura atenta. Já sabia que era assim.
d'Oliveira

O meu olhar disse...

Aqui vai o endereço do site, com a indicação do apartamento:
http://www.nyhabitat.com/paris-apartment/vacation/2468
Boa sorte…

M.C.R. disse...

Consultando o estimável "dictinnaire du cinema" de Jean Tulard acabo de descobrir que o filme é com Mylene Demongeot e o realizador é Marc Allegret, um sobrinho de André Gide que filmou o velho mestre na sua viagem famosa ao Congo.

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Caro dOliveira, os seus textos doutros (?) tempos são deliciosos.

M.C.R. disse...

Oss textos deste diário têm exactamene a data que trazem. Algum dia contarei como nasceram mas, para já, posso adiantar que eram uma espécie de carta circular que mandava aos meus amigos e, sobretudo, a José (Alberto) Valente, meu compadre , quase meu irmão e doutor em economia. Morreu cedo e mal e gostava de pensar que de onde está vai relendo estes textos com o seu sorriso triste e belo. infelizmente o meu total agnosticismo não me permite tal esperança.
de todo o modo, agradeço-lhe muito as suas palavras sobre a minha produção.
cordialmente seu,
d'Oliveira

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Caro dOliveira, não questionei a data dos seus escritos, antes pretendia salientar as semelhanças com os tempos que correm.
Apenas conheci José Valente pelas suas magníficas crónicas no "Público", mas amigos meus que o conheciam sempre se desfizeram em referências elogiosas. Desgraçadamente, passou a constar da toponímia portuense ao mesmo tempo que um grande amigo meu, Henrique David, também ele levado cedo demais.