15 novembro 2005

Cortar os cabelos


Hoje corto os cabelos. A cabeça no travesseiro, os cabelos espalhados sobre ele. Hoje mesmo pego a tesoura maior e toso esta cabeleira.

Olho através da porta da varanda, entreaberta, o dia amanhecendo lá fora. Deitada, o travesseiro forma um horizonte azulado contra a luz do dia e o vermelho das flores.

Sou uma ponte, pênsil, suspensa entre o dia do meu nascimento e o da minha morte. Um conjunto brevíssimo, tantas vezes cego, de palavras, pele, impulsos, músculos, canções, sangue, oceano. Sou esta coleção de pensamentos atados a um corpo. Pensamentos que estão sempre a querer escapar do corpo , corpo sempre querendo fugir dos pensamentos.
Tudo frágil como a passagem de segundos nos quais em meio a dizermos uma desimportância qualquer, o coração para.

A cama vazia é o sem-sentido de tudo. A casa a procurar o amor. O quarto vazio. O mundo vazio. A voz da ausência impregnando o mundo. O corpo a buscar incessantemente.

Cortar os cabelos, esta marca, é uma resposta e uma afirmação. Levanto-me, levantarme-ei, e andarei pela casa. E ela há de estar cheia de vida quando eu sacudir os meus cabelos ao sol. A minha vida.


Silvia Chueire

2 comentários:

Primo de Amarante disse...

Talvez possa ser paradoxal, mas o seu texto fez-me lembrar um outro: "Serenidade" de Martin Heidegger. Fui procurá-lo e encontrei-o. O estilo é de conversa.
O que me fez lembrar Heidegger tem a ver com a perda de enraizamento que a metáfore do corte de cabelos sugere. Se puder leia esse texto. Está entre nós traduzido pelo Instituto Piaget. Tem cerca de 60 págs., mas não é para ler a correr: é preciso mastigá-lo. O conteúdo é diferente, mas há certas aproximações.

Um abraço

Silvia Chueire disse...

Caro compadre,

Agora que encontrei o texto cá estou para dizer-lhe. Hei de lê-lo todo, com vagar para que possa entender quais as aproximações que você disse existirem.
Obrigada.

Um abraço,

Silvia