A minha luta é esta:
sagrado de saudade
divagar pelos dias.
Rilke, Poemas
Anda uma criatura de Deus, passado que foi o mezzo camin della mia vita, a relembrar amigos, deslumbramentos, assombrações, carinhos, guerras perdidas e é apanhado pelo tempo. Então não é que este ano se celebra o centenário de Paulo Quintela? E eu para aqui calado, como se isso me fosse indiferente, eu que Lhe sou devedor de tanto, tanto, incobráveis dívidas que só poderei pagar com três pobres e reles linhas?
Conheci Paulo Quintela, antes mesmo de pisar Coimbra: a minha mãe fora sua aluna no colégio de S. Pedro, era ele jovem assistente e assim arredondaria os fins de mês. Falava dele como de um professor brilhante e interessado. Ainda nesses tempos de menino, terá vindo à Figueira, alguma vez, o TEUC, com o Auto da Barca do Inferno (à barca, à barca que temos gentil maré) e ter-me-ei entusiasmado a pontos, conta-se, de ter decorado muitas falas de Todo o Mundo e Ninguém. Mal sabia que a ressurreição de Mestre Gil (nos palcos) se devia quase por inteiro a Quintela.
Mal pisei as íngremes calçadas coimbrãs e descobri a Faculdade de Letras ali mesmo à beirinha do forno crematório de Direito, para lá me transferi nos intervalos e mesmo durante as inúmeras e saborosas gazetas às aulas nos Gerais. E vi o Homem pela primeira vez: tonitruante, cachimbante, mordente, um rosto arredondado dominado por uns olhos asiáticos (não seria assim mas é como o vejo tantos anos passados), fato completo com colete, a beber uma bica ao balcão do bar. Não era Quintela que ali me trazia mas apenas a pletora de raparigas que, ao contrario de Direito, enchiam aquela faculdade. Mas Quintela conseguia o prodígio de nos surpreender e a vontade de o conhecer.
Então eu, que tinha copiado à mão os dois inteiros volumes de poemas de Rilke e o de Nietzsche traduzidos por ele, ardia por lhe chegar à fala. O diabo era a imponência do homem e o respeitinho que impunha. Ficou para mais tarde, para as tertúlias da “Brasileira”, café sito ao “canal” mesmo perto da Atlântida e da Almedina livrarias que durante uma década me sorveram os parcos maravedis que a família mandava.
Faça-se aqui um parêntesis, porque a gratidão assim o reclama. A Almedina era o glorioso resultado do trabalho do Joaquim Machado que de sebenteiro passou a livreiro e a editor de livros jurídicos. Este Machado, que já descansa à mão direita de Deus Pai, era um homem das arábias. Sabia-a toda (como ele em livreiros só me ocorrem o saudoso Hipólito da Opinião, o Fernando Fernandes da Leitura, o Domingos Lima da Lello e a minha querida Maria Helena Alves da figueirense Havanesa. Esta gente vendia livros mas amava-os, destinava-lhes donos de confiança, falava deles como filhas casadoiras, em suma se vivessem num pais civilizado seriam tão célebres quanto o François Maspero da Joie de Lire) e logo que me tirou a bissectriz, pimba, entrava na Brasileira à sorrelfa com três pacotões de livros endereçados respectivamente ao Américo Caseiro, ao António da Cunha Pinto (que sob o nome de Leonel Brim assina “Magistério e desgosto” e “Talvez Pinóquio”, imperdíveis mesmo se de leitura esforçadíssima) e a mim. Cada pacote era um tiro de canhão ao nosso orçamento. E nós reclamávamos: “Machado, isto é pior do que o terramoto, já lhe devo um balúrdio sei lá se alguma vez lhe consigo pagar...” E ele: “Paga, claro que paga, eu espero”
Paguei, evidentemente, mas se não fosse o gesto generoso do Joaquim nunca teria tido a coragem de me atirar ao gigantesco “traité des maniéres de table” de Lévi Strauss ou sequer ao primeiro Marcuse cá entrado nos idos de 68 e que dava ao “Homem unidimensional” o título de “ideologia da sociedade industrial” na edição brasileira da Zahar(?).
O Joaquim Machado morreu deixando uma rede de livrarias, jurídicas e não só, e ao que sei, raros foram os jornais a falar dele. Eppure ali estava um homem que prestou à cultura portuguesa relevantíssimos serviços... Assim vai o mundo ou, pelo menos, este nosso mundo.
Voltemos a Quintela: logo que me fiz mais crescidinho na faculdade, comecei a partilhar os meus longos tempos de café entre a praça da república e a baixa assentando arraiais na Brasileira.
A Brasileira era um café sui generis: frequentavam-na não só malta de esquerda mas também a de direita mais ou menos radical. Ao entrar logo se via quem puxava pelo reviralho ou quem apoiava a situação. E era simples: à esquerda os nossos (ou melhor os meus) e à direita a peonagem do jovem Portugal, da Causa Monárquica & similares. Com uma gloriosa excepção: a mesa junto à montra do lado direito (dita “o aquário”) tinha donos indiscutíveis pelo menos entre as 11 da manhã e as 2 ou três da tarde. E eles eram Paulo Quintela, Joaquim Namorado, os manos Vilaça, Luis de Albuquerque, Rui Clímaco e Fred Fernandes Martins: ou seja um cacharolete de comunistas confessos e com várias estadias na cadeia, um anarquista brilhante (Fernandes Martins) e Quintela e Albuquerque que representavam (com FFM) desde sempre a honra e a resistência universitárias. Ser admitido naquela távola era prémio que poucos conseguiam e que, graças ao facto de ser membro da redacção da Vértice, por vezes me coube. É impossível dar conta do que ali se ouvia e aprendia: aqueles mafarricos eram intelectuais da melhor cepa: da que ensina divertindo, da que discute sorrindo, da que ouve um galispo estilo mcr aos vinte anos com afectuosa atenção e depois lhe malhavam com firmeza e amizade. Se alguma coisa sou e sei dali o retirei (e doutra tertúlias em Lisboa e Porto que para isso sempre tive atrevimento e, sobretudo oportunidade).
Na nossa mesinha, à esquerda, claro , o mais possível, eu o Cunha Pinto e o Caseiro de vez em quando cortávamos na casaca daqueles “jarretas” do “aquário” pois eles não se coibiam de discutir alto e bom som.
Cem anos! Há cem anos nascia o doutor, por extenso, Paulo Quintela. Hoje o JL traz e muito bem uma comovida homenagem ao Mestre.
Amigos e companheiros, juntem-se a essa celebrativa romaria e corram à Gulbenkian a comprar pelo menos os três enormes volumes de traduções de Quintela. Ofereçam-se a Vocês próprios um presente digno dos três Reis Magnos. E depois de começarem a ler os Rilke, os Goethe os Schiller e os Brecht ...
Conheci Paulo Quintela, antes mesmo de pisar Coimbra: a minha mãe fora sua aluna no colégio de S. Pedro, era ele jovem assistente e assim arredondaria os fins de mês. Falava dele como de um professor brilhante e interessado. Ainda nesses tempos de menino, terá vindo à Figueira, alguma vez, o TEUC, com o Auto da Barca do Inferno (à barca, à barca que temos gentil maré) e ter-me-ei entusiasmado a pontos, conta-se, de ter decorado muitas falas de Todo o Mundo e Ninguém. Mal sabia que a ressurreição de Mestre Gil (nos palcos) se devia quase por inteiro a Quintela.
Mal pisei as íngremes calçadas coimbrãs e descobri a Faculdade de Letras ali mesmo à beirinha do forno crematório de Direito, para lá me transferi nos intervalos e mesmo durante as inúmeras e saborosas gazetas às aulas nos Gerais. E vi o Homem pela primeira vez: tonitruante, cachimbante, mordente, um rosto arredondado dominado por uns olhos asiáticos (não seria assim mas é como o vejo tantos anos passados), fato completo com colete, a beber uma bica ao balcão do bar. Não era Quintela que ali me trazia mas apenas a pletora de raparigas que, ao contrario de Direito, enchiam aquela faculdade. Mas Quintela conseguia o prodígio de nos surpreender e a vontade de o conhecer.
Então eu, que tinha copiado à mão os dois inteiros volumes de poemas de Rilke e o de Nietzsche traduzidos por ele, ardia por lhe chegar à fala. O diabo era a imponência do homem e o respeitinho que impunha. Ficou para mais tarde, para as tertúlias da “Brasileira”, café sito ao “canal” mesmo perto da Atlântida e da Almedina livrarias que durante uma década me sorveram os parcos maravedis que a família mandava.
Faça-se aqui um parêntesis, porque a gratidão assim o reclama. A Almedina era o glorioso resultado do trabalho do Joaquim Machado que de sebenteiro passou a livreiro e a editor de livros jurídicos. Este Machado, que já descansa à mão direita de Deus Pai, era um homem das arábias. Sabia-a toda (como ele em livreiros só me ocorrem o saudoso Hipólito da Opinião, o Fernando Fernandes da Leitura, o Domingos Lima da Lello e a minha querida Maria Helena Alves da figueirense Havanesa. Esta gente vendia livros mas amava-os, destinava-lhes donos de confiança, falava deles como filhas casadoiras, em suma se vivessem num pais civilizado seriam tão célebres quanto o François Maspero da Joie de Lire) e logo que me tirou a bissectriz, pimba, entrava na Brasileira à sorrelfa com três pacotões de livros endereçados respectivamente ao Américo Caseiro, ao António da Cunha Pinto (que sob o nome de Leonel Brim assina “Magistério e desgosto” e “Talvez Pinóquio”, imperdíveis mesmo se de leitura esforçadíssima) e a mim. Cada pacote era um tiro de canhão ao nosso orçamento. E nós reclamávamos: “Machado, isto é pior do que o terramoto, já lhe devo um balúrdio sei lá se alguma vez lhe consigo pagar...” E ele: “Paga, claro que paga, eu espero”
Paguei, evidentemente, mas se não fosse o gesto generoso do Joaquim nunca teria tido a coragem de me atirar ao gigantesco “traité des maniéres de table” de Lévi Strauss ou sequer ao primeiro Marcuse cá entrado nos idos de 68 e que dava ao “Homem unidimensional” o título de “ideologia da sociedade industrial” na edição brasileira da Zahar(?).
O Joaquim Machado morreu deixando uma rede de livrarias, jurídicas e não só, e ao que sei, raros foram os jornais a falar dele. Eppure ali estava um homem que prestou à cultura portuguesa relevantíssimos serviços... Assim vai o mundo ou, pelo menos, este nosso mundo.
Voltemos a Quintela: logo que me fiz mais crescidinho na faculdade, comecei a partilhar os meus longos tempos de café entre a praça da república e a baixa assentando arraiais na Brasileira.
A Brasileira era um café sui generis: frequentavam-na não só malta de esquerda mas também a de direita mais ou menos radical. Ao entrar logo se via quem puxava pelo reviralho ou quem apoiava a situação. E era simples: à esquerda os nossos (ou melhor os meus) e à direita a peonagem do jovem Portugal, da Causa Monárquica & similares. Com uma gloriosa excepção: a mesa junto à montra do lado direito (dita “o aquário”) tinha donos indiscutíveis pelo menos entre as 11 da manhã e as 2 ou três da tarde. E eles eram Paulo Quintela, Joaquim Namorado, os manos Vilaça, Luis de Albuquerque, Rui Clímaco e Fred Fernandes Martins: ou seja um cacharolete de comunistas confessos e com várias estadias na cadeia, um anarquista brilhante (Fernandes Martins) e Quintela e Albuquerque que representavam (com FFM) desde sempre a honra e a resistência universitárias. Ser admitido naquela távola era prémio que poucos conseguiam e que, graças ao facto de ser membro da redacção da Vértice, por vezes me coube. É impossível dar conta do que ali se ouvia e aprendia: aqueles mafarricos eram intelectuais da melhor cepa: da que ensina divertindo, da que discute sorrindo, da que ouve um galispo estilo mcr aos vinte anos com afectuosa atenção e depois lhe malhavam com firmeza e amizade. Se alguma coisa sou e sei dali o retirei (e doutra tertúlias em Lisboa e Porto que para isso sempre tive atrevimento e, sobretudo oportunidade).
Na nossa mesinha, à esquerda, claro , o mais possível, eu o Cunha Pinto e o Caseiro de vez em quando cortávamos na casaca daqueles “jarretas” do “aquário” pois eles não se coibiam de discutir alto e bom som.
Cem anos! Há cem anos nascia o doutor, por extenso, Paulo Quintela. Hoje o JL traz e muito bem uma comovida homenagem ao Mestre.
Amigos e companheiros, juntem-se a essa celebrativa romaria e corram à Gulbenkian a comprar pelo menos os três enormes volumes de traduções de Quintela. Ofereçam-se a Vocês próprios um presente digno dos três Reis Magnos. E depois de começarem a ler os Rilke, os Goethe os Schiller e os Brecht ...
Vós que haveis de surgir das
Cheias
Em que nos afundámos
.............................
pensai em nós
com indulgência.
Nota: o texto acima termina com um fragmento dos poemas de Svendborg de Brecht e vai em memória de Paulo Quintela, Joaquim Namorado, Fred Fernandes Martins, Luis de Albuquerque, Orlando de Carvalho e Marcos Viana. Em todos se combinaram a defesa da democracia, a pedagogia lúcida, o amor pelas artes e letras e uma genial verticalidade. Bem hajam!
No Porto, aos 21 de Dezembro por mcr
2 comentários:
SOu bem capaz de aceitar o desafio.
Paulo Quintela é um dos nomes que ando a catar há anos.
Passa sempre para trás de outras prioridades, mas ainda assim pode ser que seja.
E voltei a ler o JL. Devo andar mal de estímulos... espirituais.Ahahahah!
Aceite, homem de Deus, aceite. Aqueles tr~es volumes são pepitas, que digo?, são diamantes maiores que o Ko-hi-noor ou a Estrela do Sul.
E nem, lhe referi metade dos traduzidos. Também lá há a Nelly Sachs ou o Georg Trakl e mais uns tantos, Novalis, o grnial, por exemplo.
Quanto ao JL está como eu. Leio-o, tenho todos os números desde o 1º que já prometi dar a quem o estimar...
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