14 janeiro 2006

Diário Político 11

Em defesa do meritíssimo Joaquim Cangato
juiz por mérito próprio
Um cavalheiro angolano que, segundo consta, se reclama da pouco conspícua profissão de jornalista, entendeu que Angola era um país democrático e publicou um par de artigos acusando o Sr. José Eduardo dos Santos da prática de algumas malfeitorias de carácter económico.

Justamente indignadas pelo despautério delirante do escriba, as autoridades de Luanda começaram por o prender e, posteriormente, moveram-lhe um processo que está agora em fase de julgamento.

Os jornais noticiam que o pleito em curso corre seus termos no tribunal provincial de Luanda e que o julgamento é presidido por Joaquim Cangato, coronel da polícia política. Também já se sabe que, num douto despacho, o juiz já suspendeu - e por seis meses! - da sua actividade o advogado do réu. Este queixa-se que assim Rafael Marques (o escriba) fica sem defesa ao mesmo tempo que contesta a legitimidade do juiz para o suspender, sustentando que tal suspensão só poderia ser decidida pela Ordem dos Advogados.

Entretanto Rafael desdobra-se em entrevistas aos media portugueses e continua, com mais inconsciência do que temeridade, a acusar Dos Santos de malbaratar bens do Estado.

Pratiquemos, pois, sobre este fait-divers (onde é que já ouvi esta?) tropical que tanto excita o dr. Mário Soares e um par de associações de defesa de direitos humanos.

Angola, pese embora a opinião pouco credível que Marques terá do uso das liberdades de crítica e de imprensa, não é, nem disso se gaba, um estado democrático. Em África, segundo um dos seus mais conhecidos intérpretes, a democracia é supérflua e, geralmente, é tida como uma das más consequências do colonialismo. Ora sendo o MPLA um movimento anti colonial consequente não é crível e muito menos sensato que perca o seu tempo a aturar a opinião pública ou os seus fazedores.

Em segundo lugar, o poder nos países africanos (e por todos consultem-se as opiniões de Marcelino dos Santos) tem uma outra latitude daquela a que estamos habituados neste decadente ocidente. O poder para o ser não precisa, antes prescinde, de barreiras sejam elas jurídicas, éticas ou culturais. O senhor Dos Santos não faz menos nem mais do que o senhor Mugabe já fez ou pretende fazer. Ou do que o senhor Mobutu Sese Seko. No limite não difere especialmente do senhor general Amin, de Sª Alteza Imperial Bokassa Iº ou de tantos outros pais de pátrias africanos ou sul americanos. O finado e hoje pouco chorado Ceausescu, conducator da Roménia e “Esplendor do pensamento político do Danúbio” era desta mesma madeira. A diferença comportamental tinha a ver apenas com a famosa e leninista análise concreta da situação concreta. Isso mesmo, de resto, foi, há dias reafirmado pelo parlamento chileno quando entendeu testemunhar e legiferar sobre o exercício do poder presidencial e consequente inocência dos seus titulares.

Carece portanto, mais uma vez, de razão o senhor Marques e os protectores ocidentais dos seus (dele) direitos humanos.

Sendo o poder do presidente da república (que também é presidente do partido e presidente do governo) absoluto parece claro que o erário público se confunda com a sua fortuna privada e que ele use de ambos sem rédea. Se é assim, a que título pode o senhor Marques arrogar-se o direito de criticar o soba actualmente em exercício no Futungo de Belas?

E se não deve, nem pode, criticar, como se espantarão Marques e os defensores de, em resposta a um artigo, o prenderem? E uma vez que se não assustou, como devia e era prudente, o julgarem?

O tribunal é presidido por um cavalheiro que não possui o curso de direito mas que, em contrapartida, tem muita experiência em lidar com subversivos uma vez que fez carreira na policia política onde, aliás, e por mérito próprio ganhou os galões de coronel.

Este facto fez com que alguém tivesse a desfaçatez de questionar a qualidade da justiça a ser rendida pelo tribunal. Convirá salientar que, ao contrário do que criticam, um coronel e ainda por cima com passado na polícia política é honra demasiada para um simples jornalista. Rafael Marques mereceria, quanto muito, um sargento ou até mesmo um cabo de esquadra. Concederem-lhe um coronel só prova a magnanimidade do regime de Luanda.

Eu bem sei, já os estou a ver, os corta-cabelo em quatro, os buscadores de pelo em ovo de galinha, a retorquir que no tribunal comandado pelo valoroso coronel se prepara uma condenação à morte, tanto mais que o juiz já expulsou o advogado de defesa. E depois? Acaso a morte se tornou caso raro em Luanda onde entre o massacre dos “nitistas” e o aniquilamento da Unita se arranjam sem dificuldade cinquenta ou sessenta mil mortos?

Rafael Marques deveria até estar satisfeito: a sua condenação não só o torna conhecido no mundo inteiro como inclusivamente imortalizará o tribunal ao mesmo tempo que fará avançar a ciência jurídica um bom passo. Finalmente o excessivo garantismo que todos actualmente criticamos é posto em causa pela decisão corajosa de um juiz. Mais: o facto deste não ser oriundo de uma faculdade de direito vem fortalecer a sociedade civil a quem sempre se impôs uma regra jurídica que ela não entendia, servida por um calão científico que a tornava ininteligível aos ouvidos dos leigos.

Agora, graças ao meritíssimo Joaquim Cangato, o povo simples ganha os pretórios e a justiça popular abre caminho. A hipocrisia do direito ocidental está em cheque mesmo que a seu favor se relembre a decisão de libertar Pinochet ou de condenar três sérvios e dois croatas deixando por perseguir todos os cavalheiros que napalmisaram o Vietnam, ou que provocaram danos colaterais no Iraque, no Kossovo ou em pequenos países da América Central.

Moral desta crónica? O petróleo lava mais branco e o dr Jaime Gama só chama “bokassa” ao da Madeira.

Porto 28 de Março, dia de S Xisto, papa.
Vai esta para o Pedro Mendes de Abreu que nunca percebeu nada destas políticas nem aferiu direitos consoante a latitude e a cor da pele dos sacripantas que os violam. Ainda por cima faz anos no dia das mentiras. Parabéns, pá e que se repita por muitos e bons.

Nota: este texto ainda é do tempo do senhor Mobutu. Publica-se hoje porque infelizmente o país parece estar a converter-se numa república bananeira sem bananas. Situação desesperada mas não grave. E relata as façanhas de um juiz porque...sim! Entendem os leitores ou precisam que lhes faça um desenho?

d'Oliveira fecit

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