30 janeiro 2006

Histórias da minha vida

Houve um tempo em que fugi das pessoas. Fobia social, dizia-me quem sabe de fobias sociais mas pouco das pessoas. Era o tempo em que eu, quando via alguém conhecido na rua, mudava rapidamente de passeio, para que não houvesse um encontro. E menos um confronto. Era o tempo em que eu sabia - menos do que sei hoje e ainda bem - que estava a ser absolutamente demolido, numa campanha de contornos impensáveis, abominável, de quem queria justificar o injustificável à custa dos defeitos que tinha e que tenho e - ó, dor imensa! - daqueles que eu sei que não tenho, nunca tive e provavelmente nunca terei. Era o tempo em que fui ameaçado de todas as coisas improváveis, mesmo quando estava envolvido numa luta política desigual contra bandidos, e me agitavam essas ameaças em pretensos conluios de bandidos que nunca soube se foram consumados ou não. Era o tempo em que vi os meus pais envelhecer por causa das coisas desse tempo, numa absurda violência entre acreditar ou não acreditar, os olhos baços ou com lampejos de lágrimas, parados sobre o menino bom que eles conheciam e o bandido que lhe atiravam aos olhos, diariamente, de forma enviezada, coisa cirúrgica, que os mataram mais depressa e também a mim, que estas coisas não matam logo mas matam. Era o tempo em que cheguei a ver a minha vida profissional destroçada, que nesta vida as coisas correm depressa, sobretudo a mentira, e olhava para trás e pensava que afinal não tinham valido a pena as noites corridas a estudar processos, colectâneas e livros, à procura da perfeição possível, porque tudo estava a desmoronar-se à custa da manipulação cirúrgica em que tantos embarcaram, olhando-me de soslaio, bandido! eu, bandido, o amigo que não falha, o pai amigo, o parvo que ficou sitiado nas coisas em que acreditava e acredita e vai continuar a acreditar porque é um crédulo compulsivo.

Foi assim que construí a minha circunferência de que há tempos falei, aqui, num desabafo como este é um desabafo, aquelas coisas que as pessoas da história do tempo entendem que é uma exposição excessiva e mais ainda desnecessária, sim, por que raio há-de o homem de falar destas coisas em público? E eu respondo: é porque me apetece! Inimputável, já se viu. E depois? Depois, eu agora continuo na minha circunferência, alvo fácil de todas as bandidagens e dos acasos. Surpresas inopinadas: eu sou o mesmo que há alguns anos foi ostracizado, bandido cirurgicamente banido, o rei da festa que passou a homem do lixo. Mas, pouco a pouco, volto a ser o amigo, o que se procura porque dá bons conselhos e, afinal, porque nos afastámos? E eu, que não sou um matador, nem vivo de rancores, limito-me a explicar o que é óbvio. Sem sobranceria. Sem rancores. Num sussurro calmo, num afago que se transmite aos meninos. Sem esperar penitências. Livre. Sem ser condescendente.

Não mudei nada, afinal. Por que será? Porque não fui capaz? Porque não havia nada de essencial a mudar? Ou porque senti que se algum dia mudasse era para ser o bandido?

7 comentários:

C.M. disse...

Não cheguei a ir ao Porto este fim de semana, a fim de estar presente no lançamento do livro do “Anto”. De qualquer forma, teria sido complicadíssimo regressar a Lisboa, pois no Domingo quase todas as estradas para o Sul estavam cortadas devido à neve e ao gelo. A A1 foi a primeira a ser interditada, ali na zona de Santarém...Ficará para uma oportunidade, com mais dias para revisitar o Porto, que já não vejo há um bom par de anos...

Abri, nesta manhã de sol, o “Incursões” e deparo com este texto do Coutinho Ribeiro.

É necessária coragem para elaborar um texto deste teor, profundamente intimista e publicá-lo numa página deste blog ( onde aliás a qualidade dos textos abunda...).

Curioso que não nos conhecemos todos (pelo menos eu não conheço ainda ninguém aqui deste blog – fisicamente quero eu dizer - o compadre esteves até já o conheço da foto que tem aposta nos seus artigos do “JN” de Domingo...mas, efectivamente, conhecemo-nos apenas através daquilo que cada um aqui escreve, o que não é pouco, pois creio que, pela escrita, revelamos a Alma...

Não sei por que dramas concretos passou o nosso carteiro. Mas também já sofri na pele algo daquilo que ele descreve com aqueles contornos.

Realmente também houve um tempo em que fugi das pessoas, para que elas não me agredissem, apanhando-me na minha fragilidade. Também eu construí a minha circunferência...para não ser “demolido”...passei alguns anos no “limbo” sem aliás disso me aperceber com clareza...

Para mim, creio firmemente que foi Deus que olhou para este seu (indigno) servo e lhe estendeu as suas mãos e o ergueu do vale escuro em que se encontrava...

Tal como uma doce imagem de Jesus, que se encontra no Convento de São José das Carmelitas Descalças, em Ávila, que tem as mãos estendidas e que podemos agarrar, tocar, tão perto estão do fiel que ali se desloca...



Não sei porque há tanta crueldade por aí à solta... creio que há gente que se julga eterna, que age na vida como verdadeiros predadores, olhando os outros como alvos a abater...No fundo são uns tristes, sem horizontes maiores que o próprio umbigo...

Mas o importante é darmos a “volta por cima” e ultrapassarmos esses tempos de escuridão, não é verdade?

Um abraço,

dlmendes

o sibilo da serpente disse...

Caro Delfim:
Não vejo que postar uma coisa destas seja um acto de coragem. Longe vai o tempo em que temia coisas destas... Coragem, foi isso sim, ter aguentado sem ceder ao que era mais fácil. Foi não ter cedido às vinganças fáceis. Foi ter conseguido criar a minha circunferência. Não tenho medo desta exposição: o que tinham a matar de mim, já mataram. Ainda sobrou muito. E, a partir daqui...

(Acho que tudo teve a ver também com a compaixão que um dia vi nos olhos limpos de Nossa Senhora de Assucena, ao fundo, à direita, da Catedral de Santiago)

C.M. disse...

Caro CR, as suas palavras estão impregnadas de uma beleza inefável!!!

o sibilo da serpente disse...

Caro DLM: a beleza está sempre nos olhos que vêem, como nos olhos de Nossa Senhora de Assucena. Vá lá e veja o que ela vê. Eu tenciono ver, brevemente, numa viagem à Corunha para tratar de problemas.

Um abraço

o sibilo da serpente disse...

Alguém faz a reportagem do lançamento do livro do Anto?

Silvia Chueire disse...

Caro carteiro,

Eu me arriscaria a dizer que você certamente não é mais o mesmo. Porque na vida por mais que aparentemente repitamos as mesmas coisas ( erros e acertos ) e consigamos manter nossa essência, as coisas não acontecem em círculos,são mais uma espécie de helicoidais.
Porque o tempo passa novos eventos se somam e o pequenas mudanças alteram o traçado antes circular.E nós, ao menos um grande número de nós, aprendemos, crescemos, tornamo-nos melhores.
Felizmente. : )

Abraços,

Silvia

o sibilo da serpente disse...

Pois, terá razão, caríssima. E sabe do que fala, por razões várias. :-)