entre outras razões o autor desta coluna esteve ausente do blogue para poder assistir (e conviver com amigos na Póvoa do Varzim onde decorreu) a sétima edição de "correntes d'Escritas. Nesse festival literária apresentou o romance "A dupla vida de Maria João de Maria Manuel Viana.
Aqui vai o texto:
Por razões que me pareceram ponderosas entendi dever escrever o texto desta apresentação em vez de me fiar apenas num par de notas esparsas. Perde-se em espontaneidade mesmo quando, e é o caso, se trate de um texto corrido que não irá sofrer alterações. Vai aparecer tal qual foi escrito, de jacto, sob o peso da amizade, da cumplicidade familiar e da memória de muitas e longas conversas sobre livros, sonhos, vida, sei lá que mais.
É que a Maria Manuel, aqui presente em pessoa e livro, é minha prima carnal, assim diziam os antigos, filha de uma tia que, mal eu fiz oito anos, me levou pela mão à Biblioteca Municipal da Figueira da Foz e, depois de me apresentar o bibliotecário senhor Santos, me deixou fascinado e perdido entre estantes e mesas carregadas de livros. Não foi ela que me suscitou o gosto pela leitura que, para vícios solitários sempre tive muita propensão, mas foi ela de certeza que me mostrou quão fácil era, afinal, ceder às tentações da leitura a esmo, sem rei nem roque, à volúpia de ler o que me apetecesse com a curiosidade despertada apenas por um título, uma capa ou, eventualmente, uma palavra de amigo, que só aos amigos se confessam estes cada vez mais antiquados gostos.
A segunda e mais grave razão da minha presença é o pedido da Manuel: que achava que eu conheço a Póvoa, o ambiente da Póvoa, os habitués e mais do que isso, sublinhava, que me considerava suficientemente honesto intelectualmente para levar esta carta a Garcia sem lhe fazer mais favores do que ser um mero mensageiro destas “novas da alegria”. Convenhamos: o truque é baixo ou, pelo menos, traiçoeiro. De facto, uma vez sem exemplo, falando da primeira versão deste romance eu dissera-lhe que me tinha agradado o tema, a história, e o tom para já não falar numas piscadelas de olho “inter-textuais” (raio de termo...) que me iam direitas a leituras antigas, a manias, a uma vida bem mais arriscada, solidária e solitária (em todos os sentidos possíveis da palavra) que agora me aparece nimbada do calor da aventura e da juventude.
É que este livro também remete para uma memória colectiva duma Europa convalescente de conflitos e disputas e para a difícil viajem de uma geração perdida entre a ilusão de uma esquerda pura e dura e realidade desagradável de amanhãs que afinal não cantavam. E se isso ainda se pode dizer apanágio de uma geração, a minha, que se formou e tomou consciência de si própria entre 1962 e 1969 já não deixa de ser curioso que deixe tantos traços e cicatrizes numa autora dela separada por uma boa dúzia anos.
E eis que me dou conta que levanto um dos eventuais véus de se que se tece a roupagem destas vidas de Maria João. Ora aqui está uma mulher habitada por remorsos e lembranças de um tempo que não sendo o dela (mas será que ela tem algum tempo que de facto lhe pertença?) acaba por se impor frente a um outro tempo em que positivamente ela se não reconhece.
Começo a pensar que a prometida espontaneidade que há pouco reivindiquei está a produzir efeitos dramáticos no que poderia e deveria ser uma apresentação em boa e decente forma de um segundo romance de uma autora que, para a imensa maioria dos presentes, é uma desconhecida.
No início desse extraordinário romance que é o Tom Jones dizia Fielding que um autor deverá ser como o honrado proprietário de uma casa de pasto que não querendo enganar os fregueses afixa à porta a ementa e o preço do que vai servir. E se a memória ainda me não falha, Fielding anuncia modestamente que o seu Tom Jones trata da natureza humana. Belo programa! E simples! E modesto! E, acrescento eu, a duzentos e cinquenta anos de distancia, tão bem conseguido!
Vejamos se a proprietária desta casa de pasto que ora me ocupa segue o programa e as boas intenções de Fielding. À primeira vista dir-se-ia que sim. E não me parece difícil porque de que se há de alimentar um romance senão da natureza humana?
Neste momento em que escrevo (sete da tarde de terça feira) julgo adivinhar entre os meus futuros ouvintes um que outro murmúrio escandalizado. Terão de me perdoar: com a idade que levo e as más leituras que me conformaram eu creio forte e feio nesta lapalissada: o romance há de falar na natureza humana. E a meus olhos a Maria Manuel meteu-se na mesma alhada.
Não me parecendo de bom tom contar a história (coisa que o editor decerto me agradecerá pois que poderia haver quem tendo ouvido o resumo não comprasse depois o livro ou por achar a história desenxabida – mas não o é – ou por achar que já não valia a pena ler por lhe conhecer o fim (como se o fim de uma história contada fosse de facto o fim e não como obviamente acontece o começo de uma outra aventura e que é recontarmos essa história à nossa maneira, introduzimo-nos clandestinamente na trama ou na pele de um personagem e partirmos para uma outra aventura uma outra leitura e uma outra vida). Quantas vezes não fui Fabrice em Waterloo ou mais simplesmente mas com igual prazer o companheiro e amigo português de Sandokan...
Portanto estamos a falar desse temível tema aproveitando a boleia de uma mulher, Maria João, culta, educada, média-alta burguesia, numa cidade vulgar e não demasiadamente grande, numa família que independentemente da sua intrínseca realidade lhe aparece umas vezes como algo de fantasmático, uma realidade oblíqua e pouco verosímil, figuras, sombras, meras figuras numa paisagem, e outras como uma sucessiva série de paredes de um inextricável labirinto de que a heroína não consegue sair. Pior: nesse labirinto não há minotauro, ou seja, não há razoabilidade, nem se entrevê um fim.
Uma mulher, e é tão difícil para nós homens, aceitar essa inteira realidade contida no termo uma mulher, uma mulher a contas com um passado que vamos descobrindo, sem presente, e arriscando-se a não ter futuro que valha. Uma mulher só (e se me desse para a intertextualidade que jogos não faria com outras referências mormente un jeune homme seul, sobretudo porque estaríamos, pese a tudo, perante duas realidades tão próximas...), uma mulher absolutamente só que tendo aparentemente muito não tem nada. Nem a juventude, pese embora uma melopeia encantatória “querida, querida” duma tia que já só diz isto maquinalmente, como um farol a avisar que ali não há porto de abrigo nem bom mar para quem se arrisca em tão deserta paisagem.
E mais não digo senão perde-se uma história contada com as tripas, com brio, com elegância e com inteligência. Ou seja numa linguagem cuidada, original, sincera. De vez em quando deparamo-nos com um livro bem escrito. Ainda não se pode chamar a isto um milagre mas que a boa escrita vai rareando ai disso não me restam dúvidas. Este livro atrasa um pouco essa onda de mau gosto e de falta de bom senso a que vimos assistindo.
Tudo isto me faz sentir bem ao fim desta minha descosida viajem ainda que considere imperdoável um jantar animado a Puligny Montrachet les Combettes pelos brancos e um australiano animoso e tinto um Henschske Hill of Grace demasiado caro para o que vale.
E, aqui para nós, os convivas que passaram ao estreito estes álcoois não os mereciam. O montrachet, vinho muito cá de casa, há de beber-se em boa companhia (e vejo aqui alguns bons candidatos) e, se possível, acompanhando petiscos dignos desse vinho de terras calcárias e semeadas de calhau. Pode mesmo beber-se sem comida. Ou, como dizem os alemães, é um vinho de beber.
Vem tudo isto a propósito para vos dizer, recorrendo de novo a Fielding ou à sua lembrança: A dupla vida de Maria João não é nem pretende ser um montrachet mas é seguramente um vinho temporão, tinto de boa cor, bom toque e bom corpo e que deixa uma impressão de final prolongado. Pode beber-se já, mas suporta sem dificuldade algum tempo de cave. E a relação qualidade preço é toda a nosso (dos leitores) favor.
Porto, 14 de Fevereiro (7-8 da tarde) 2006
Acrescentaram-se as vírgulas em falta, eliminaram-se dois a a mais, meteu-se um parêntesis curvo e um chapelinho em referência.
E vai todo para a Néné (por razões que ela conhece) para a Mª Manuel porque o pediu e para o primo Manuel Abrunhosa , porque sim.
A dupla vida de Maria João de Maria Manuel Viana é editado pela Teorema
É que a Maria Manuel, aqui presente em pessoa e livro, é minha prima carnal, assim diziam os antigos, filha de uma tia que, mal eu fiz oito anos, me levou pela mão à Biblioteca Municipal da Figueira da Foz e, depois de me apresentar o bibliotecário senhor Santos, me deixou fascinado e perdido entre estantes e mesas carregadas de livros. Não foi ela que me suscitou o gosto pela leitura que, para vícios solitários sempre tive muita propensão, mas foi ela de certeza que me mostrou quão fácil era, afinal, ceder às tentações da leitura a esmo, sem rei nem roque, à volúpia de ler o que me apetecesse com a curiosidade despertada apenas por um título, uma capa ou, eventualmente, uma palavra de amigo, que só aos amigos se confessam estes cada vez mais antiquados gostos.
A segunda e mais grave razão da minha presença é o pedido da Manuel: que achava que eu conheço a Póvoa, o ambiente da Póvoa, os habitués e mais do que isso, sublinhava, que me considerava suficientemente honesto intelectualmente para levar esta carta a Garcia sem lhe fazer mais favores do que ser um mero mensageiro destas “novas da alegria”. Convenhamos: o truque é baixo ou, pelo menos, traiçoeiro. De facto, uma vez sem exemplo, falando da primeira versão deste romance eu dissera-lhe que me tinha agradado o tema, a história, e o tom para já não falar numas piscadelas de olho “inter-textuais” (raio de termo...) que me iam direitas a leituras antigas, a manias, a uma vida bem mais arriscada, solidária e solitária (em todos os sentidos possíveis da palavra) que agora me aparece nimbada do calor da aventura e da juventude.
É que este livro também remete para uma memória colectiva duma Europa convalescente de conflitos e disputas e para a difícil viajem de uma geração perdida entre a ilusão de uma esquerda pura e dura e realidade desagradável de amanhãs que afinal não cantavam. E se isso ainda se pode dizer apanágio de uma geração, a minha, que se formou e tomou consciência de si própria entre 1962 e 1969 já não deixa de ser curioso que deixe tantos traços e cicatrizes numa autora dela separada por uma boa dúzia anos.
E eis que me dou conta que levanto um dos eventuais véus de se que se tece a roupagem destas vidas de Maria João. Ora aqui está uma mulher habitada por remorsos e lembranças de um tempo que não sendo o dela (mas será que ela tem algum tempo que de facto lhe pertença?) acaba por se impor frente a um outro tempo em que positivamente ela se não reconhece.
Começo a pensar que a prometida espontaneidade que há pouco reivindiquei está a produzir efeitos dramáticos no que poderia e deveria ser uma apresentação em boa e decente forma de um segundo romance de uma autora que, para a imensa maioria dos presentes, é uma desconhecida.
No início desse extraordinário romance que é o Tom Jones dizia Fielding que um autor deverá ser como o honrado proprietário de uma casa de pasto que não querendo enganar os fregueses afixa à porta a ementa e o preço do que vai servir. E se a memória ainda me não falha, Fielding anuncia modestamente que o seu Tom Jones trata da natureza humana. Belo programa! E simples! E modesto! E, acrescento eu, a duzentos e cinquenta anos de distancia, tão bem conseguido!
Vejamos se a proprietária desta casa de pasto que ora me ocupa segue o programa e as boas intenções de Fielding. À primeira vista dir-se-ia que sim. E não me parece difícil porque de que se há de alimentar um romance senão da natureza humana?
Neste momento em que escrevo (sete da tarde de terça feira) julgo adivinhar entre os meus futuros ouvintes um que outro murmúrio escandalizado. Terão de me perdoar: com a idade que levo e as más leituras que me conformaram eu creio forte e feio nesta lapalissada: o romance há de falar na natureza humana. E a meus olhos a Maria Manuel meteu-se na mesma alhada.
Não me parecendo de bom tom contar a história (coisa que o editor decerto me agradecerá pois que poderia haver quem tendo ouvido o resumo não comprasse depois o livro ou por achar a história desenxabida – mas não o é – ou por achar que já não valia a pena ler por lhe conhecer o fim (como se o fim de uma história contada fosse de facto o fim e não como obviamente acontece o começo de uma outra aventura e que é recontarmos essa história à nossa maneira, introduzimo-nos clandestinamente na trama ou na pele de um personagem e partirmos para uma outra aventura uma outra leitura e uma outra vida). Quantas vezes não fui Fabrice em Waterloo ou mais simplesmente mas com igual prazer o companheiro e amigo português de Sandokan...
Portanto estamos a falar desse temível tema aproveitando a boleia de uma mulher, Maria João, culta, educada, média-alta burguesia, numa cidade vulgar e não demasiadamente grande, numa família que independentemente da sua intrínseca realidade lhe aparece umas vezes como algo de fantasmático, uma realidade oblíqua e pouco verosímil, figuras, sombras, meras figuras numa paisagem, e outras como uma sucessiva série de paredes de um inextricável labirinto de que a heroína não consegue sair. Pior: nesse labirinto não há minotauro, ou seja, não há razoabilidade, nem se entrevê um fim.
Uma mulher, e é tão difícil para nós homens, aceitar essa inteira realidade contida no termo uma mulher, uma mulher a contas com um passado que vamos descobrindo, sem presente, e arriscando-se a não ter futuro que valha. Uma mulher só (e se me desse para a intertextualidade que jogos não faria com outras referências mormente un jeune homme seul, sobretudo porque estaríamos, pese a tudo, perante duas realidades tão próximas...), uma mulher absolutamente só que tendo aparentemente muito não tem nada. Nem a juventude, pese embora uma melopeia encantatória “querida, querida” duma tia que já só diz isto maquinalmente, como um farol a avisar que ali não há porto de abrigo nem bom mar para quem se arrisca em tão deserta paisagem.
E mais não digo senão perde-se uma história contada com as tripas, com brio, com elegância e com inteligência. Ou seja numa linguagem cuidada, original, sincera. De vez em quando deparamo-nos com um livro bem escrito. Ainda não se pode chamar a isto um milagre mas que a boa escrita vai rareando ai disso não me restam dúvidas. Este livro atrasa um pouco essa onda de mau gosto e de falta de bom senso a que vimos assistindo.
Tudo isto me faz sentir bem ao fim desta minha descosida viajem ainda que considere imperdoável um jantar animado a Puligny Montrachet les Combettes pelos brancos e um australiano animoso e tinto um Henschske Hill of Grace demasiado caro para o que vale.
E, aqui para nós, os convivas que passaram ao estreito estes álcoois não os mereciam. O montrachet, vinho muito cá de casa, há de beber-se em boa companhia (e vejo aqui alguns bons candidatos) e, se possível, acompanhando petiscos dignos desse vinho de terras calcárias e semeadas de calhau. Pode mesmo beber-se sem comida. Ou, como dizem os alemães, é um vinho de beber.
Vem tudo isto a propósito para vos dizer, recorrendo de novo a Fielding ou à sua lembrança: A dupla vida de Maria João não é nem pretende ser um montrachet mas é seguramente um vinho temporão, tinto de boa cor, bom toque e bom corpo e que deixa uma impressão de final prolongado. Pode beber-se já, mas suporta sem dificuldade algum tempo de cave. E a relação qualidade preço é toda a nosso (dos leitores) favor.
Porto, 14 de Fevereiro (7-8 da tarde) 2006
Acrescentaram-se as vírgulas em falta, eliminaram-se dois a a mais, meteu-se um parêntesis curvo e um chapelinho em referência.
E vai todo para a Néné (por razões que ela conhece) para a Mª Manuel porque o pediu e para o primo Manuel Abrunhosa , porque sim.
A dupla vida de Maria João de Maria Manuel Viana é editado pela Teorema
15 comentários:
E pronto! A vida volta ao normal, com mais esta "incursão" dos postais "Au bonheur des Dames"...já agora au bonheur des hommes aussi...
Ah! isto é que é vida!!!
Vivas ao Rei...MCR!
DLM!
À uma, sou vagamente republicano; às duas, já sou vaidoso que baste; ás três, V. sofre de miopia generosa.
Um abraço
Adorei essa tirada do "vagamente"...
"De vez em quando deparamo-nos com um livro bem escrito. Ainda não se pode chamar a isto um milagre mas que a boa escrita vai rareando ai disso não me restam dúvidas."
Eppure...nunca se publicou tanto!
Basta passar a vista pelos escaparates cada vez mais apelativos, mas também cada vez mais cheios de códices e codicilos de banalidades.
Caro MCR, vou colocar-lhe aqui um anti-questionário de Proust:
Qual foi o livro que mais o marcou?
Qual a leitura que mais o entusiasmou?
Que romance, novela ou ensaio lhe mexeu com as sinapses de modo marcante?
Dê-nos o prazer de partilha dessas intimidades espirituais que a gente agradece a generosidade- e todos ficaremos mais ricos um pouco...
Ah, como é bom rever os seus textos aqui ! E partilhar a sua ida ao Correntes d'Escritas.
Abraço grande,
Silvia
Meu Caro José
Bons olhos o leiam.
V. tem o fascinante condão de conversar e o não menos imperdoável vício de me põr à rasca. Livros? A mim, um insaciável leitor?
Bem comecemos pelo óbvio: Júlio Verne, Emílio Salgari, Alexandre Dumas, Ponson du Terrail, ou seja a grande aventura consumida entre os oito e os doze anos. Por estranho que pareça, e por muito tópico que possa ser, li na adolescencia os livros das bibliotecas caseiras: Jorge amado, Erico Veríssimo, Somerseth Maugham (nunca esquecerei "O fio da navalha" ou a novela "Chuva"). Depois vieram os americanos menos dificeis: Heminguay e Steinbeck. Paralelamente descobri esse poço sem fundo que é a poesia: Pessoa e Rilke ao mesmo tempo. Jesus!!!
Entrei no Faulkner como quem entra numa missa de corpo presente por um ente querido. Era de arrepiar.
E começaram os franceses: Stendhal, o maior de todos, mas também flaubert (assim assim???) Balzac e os poetas, Eluard, Rimbaud. E chegaram os vinte anos: a partir daqui tudo se confunde: li deliciado o Rabelais e todos os neo-realistas italianos, Pavese, Pratolini, Vitorini. Vailland, um francês põs-me a cabeça á roda. Ainda hoje sou seu devoto. De repente começaram os grandes romances: Proust Romain rolland. "O drama de joão Barois" deliciou-me e atirei-me a todos os russos. Entre todos distingo o Tchekov. E a poesia sempre ao lado. Fui esmagado pelos gregos, Odisseia e Ilíada. Não fiquei cliente de Kafka mas comecei a descobrir os poetas brasileiros: Bandeira, Melo Netto e Drummond: Mais arrepios na espinha. Jurei nunca escrever poesia: por mero respeito!. Subitamente pelos meus vinte e cinco anos apareceram-me O' Neil, Herberto Helder, Cesariny. fiquei perdido. E depois os italianos, os gregos e os espanhois (tudo poetas): Quasimodo, Sabba, Pavese, Elitis, Cavafis Ritsos Lorca Neruda, Cernuda.
A partir dos trinta foi sempre a acelerar... até hoje. Maravilho-me quotidianamente com livros da estante. Pesco-as á rede, sem destino fixo e sem procurar esgotá-los. O D Quixote foi amor mais tardio, estava em Madrid e apareceu-me uma edição velhota. não tinha nada que fazer senão esperar por uma amiga, foi tiro e queda: não percebo como se escreve tão bem. Ainda não falei do Eça polemista, do Camilo epistológrafo, do Garrett das viajens na minha terra, do Nemésio do mau tempo no canal? Pois deveria que sou deles eterno devedor. E o Prevert dos meus dezoito anos? Olhe José: o melhor livro que já li está por aparecer depois de ter aparecido como um cometa centenas de vezes. Foi do borges, do Garcia Marquez, do Juan Rulfo? Ou terá dido do Italo svevo? E onde meto a "História da minha vida" de Casanova? Junto das "1001 noites", claro. E do Hafiz e do Omar Kahayam, evidentemente.
Sou um homem de esquerda e por isso é provavel que tenha sido marcado por uma série de romances, ensaio e história da guerra civil espanhola e da alemanha nazi. Provavelmente portanto não terão sido autores geniais a marcar-me mas gente de bem de todo o modo: Erich Maria Remarque por todos. Ou Les grands cimetiéres sous la lune de... Bernanos! Há um grande livro que me impressionou muito, talvez porque o tivesse lido na cadeia "O homem sem qualidades" de Musil. E nunca esquecerei os tijolões russos; Tolstoi e dostoievsky embora a minha preferência vá para como já disse Tchekov. se calhar , hoje em dia, a sua re-leitura seria decepcionante. Li e gostei deseperadamente de Pasternak, Maiakowsky, akmatova para só citar estes. depois há livros que devoramos duma penada porque simplesmente os não conseguimos fechar antes do fim: sucedeu-me isso com "A noite e o riso" do Nuno de Bragança, com "Mazurka para dos muertos" do C.J. Cela por exemplo. Eu acho que com o avançar da idade, um leitor é, ao mesmo tempo mais exigente mas também mais tolerante: percebe as imensas dificuldades do autor, compadece-se dele, tenta ajudá-lo mesmo que obviamente não consiga. E começamos a relacionar coisas, demasiadas coisas. E a valorizar um período, um parágrafo, duas páginas... Um exemplo: O josé Cardoso Pires, a quem a minha espantosa avó materna sempre chamou Pires Cardoso, tem no volume "Jogos de azar" um curto prefácio chamado "A charrua entre os corvos": eu li aquilo de olhos em bico e por mim o Zé Cardoso Pires tem um lugar á direita de Deus Pai. (não mostre isto ao nosso Delfim que ele vê logo nisto uma conversão deste pecador inocente e pescador de livros. E deveria talvez falar duma novela dele : o anjo ancorado.
Sabe uma coisa? Um dia destes temos que nos juntar cá em casa e dar uma volta às estantes que são muitas e aos livros que são muitos mais. Aí se retrata a traço grosso um história de amor, com seus espinhos (que nas estantes há um par de livros que não merecem grandes contemplações), suas descobertas e esse inefável e vaguíssimo encanto dos perfumes velhos e naturais (alfazemas e outros que tal que as criadas velhas - que já não há - e que eram da muito da família, mais que muitos familiares, direi eu, punham amorosamente entre lençois, fronhas, camisas e peúgas. Não há-de faltar um vinho decente e algo para dar ao dente, claro. Isto deve estar enorme, felizmente é um comentário senão a Kami esfoláva-me vivo, pelo que acabo sem ter respondido. Faltam tantos livros e tantos autores que não sei que dizer-lhe senão, obrigado por me permitir falar de gente de que gosto com gente que aprecio sobremaneira. E um abraço
Caro MCR:
Embora tenha pegado um fogo aí para cima e o tenha condecorado como Mestre em apagá-los, com o sentido de humro qb, tenho a dizer que já copiei o seu comentário, por me merecer atenção impressa.
E reparei que a sua incursão no mundo literário é um pouco a de muita gente que viveu sem a tv com muitos canais banais...eh...banais canais, bacananais...euh...já nem sei.
Os romances e novelas tinham uma função primordial na definição do imaginário do/a futuro jovem adulto/a. As raparigas do meu tempo, comuns e sem pretensões a intelectuais, pelavam-se por historietas com enredos românticos-como hoje, aliás e sempre.
Creio porém que hoje, perdem-se qualidades de espírito na leitura de banalidades e na visão de vulgaridades.
Falando por mim, vou pôr aqui um comentário que coloquei alhures sobre estes roteiros pessoais das coisas escritas:
"Já li Eça, Camilo, Aquilino, João de Deus, até Garret engoli; Dickens; Dostoiewski; Tolstoi;Gorki; Flaubert;Stendhal et al. Até Walter Scott e toda a cavalaria mosqueteira de Dumas devorei.
Tudo enquanto jovem e com um espírito que misturava a aventura com o gosto inefável pelo "eterno feminino", num espírito próximo do suspiro pela amada imaginada. Fodi-me bem com isso, porque passei ao lado da desbunda real, em nome de um imaginário que só mais tarde logrei.
Pensando bem, não estou nada arrependido ( ao que vejo...).
Tinha o sonho de passar a limpo todos os clássicos. Em vão! Quando leccionei Os Lusíadas a uma canalhada que nada percebia de Gil Vicente e de onzeneiros, tentei a escotilha policial: todos os Grisham´s e Crichton´s e mais uns Forsythes enjorquei pelo simples prazer de ler historietas.Limpei os Le Carrés e vibrei com a trilogia TInker Tailor soldier spy.
Farto, enveredei por Borges e Poe, tendo antes merendado todo o Conan Doyle dos Sherlocks e Van Guliks afins, além de uns quantos Maigrets.
Este elenco pode parecer pedântico, mas é nada.E já digo porquê.
De todos os que li, se vou à estante, paro a mirar um Sinclais Lewis ( Babbit); um Eco ( O Nome da Rosa) um Conan Doyle; um Hemingway( O Velho e o Mar, um poema em prosa) e um ou outro que já nem lembro, mas que me marcaram a sensibilidade.
Estou certo que há muito mais que nunca lerei.
Mas há um que li no início dos 90 e que nem é de prosa: O Conhecimento Inútil de Jean-François Revel, diz-me que não adianta elencar leituras para mostrar sabedoria.
A sabedoria não se aprende nos livros de literatura.
Nem sequer na Ode Marítima!
A ler, uma pessoa diverte-se. Se isso faz parte da sabedoria, é porque foi adquirida noutro lado. Na vida de todos os dias; na reflexão diária; nas experiências e no convívio com os outros.
No entanto, tenho para mim, que tudo isso junto só tem alguma expressão válida se a sensibilidade,a inteligênca e o feitio de cada um ajudarem.
Senão, podemos bem dar num qualquer Eduardo...safa!
josé | 02.14.06 - 2:41 pm"
Espero sinceramente que isto não soe muito pretensioso e passe apenas como uma troca de galhardetes, no bom sentido.
Vejo aliás, no seu que há autores que nunca li e que se calhar deveria:
Pavese, Rilke e POnson du Terrail, por exemplo.
Confesso a minha incultura e não estou a ironizar, pois sempre me considerei um diletante.
Estava para escrever: "nem mais !" mas podia parecer que era graçola sobre o final do seu texto. Sem prazer não há leitura que nos salve. Ler - para ser um verdadeiro vício solitário - tem de dar prazer. tinha-me esquecido dos policiais, da BD, da ficção científica, e de mais alguns sub-géneros literários. sou vomo o finado almirante Tomaz numa célebre visita de Estado: "só tenho um adjectivo: gostei."
O Almirante, antes Contra-Almirante, Thomaz de seu nome, era pessoa pouco respeitada mesmo pelo vulgo- ou até principalmente pelo vulgo- ao contrário do Marcelo, um senhor com todas as letras da dignidade pessoal,ao que julgo saber.
O tal Thomaz, um dia em Manteigas, ter-se-á saído com esta ( versão da Vértice, salvo erro que não fui confirmar):
"Gosto muito de estar em Manteigas, porque apesar de estar numa cova, é a vila mais alta de Portugal"!
Que tal?!
Temos de provar por aí um certo ciclóstomo que aparece por estas alturas...
Ciclósstomo !? V. falou em ciclóstomo? ai...
Exactamente! Choveu. O mar aqueceu e elas vêm por aí acima para desovar em barda!
Ficam mais em conta e por isso, vai ser preciso contar com uma incursão de pesca no prato.
Fica a ideia.
Ai José eu ia chamar-lhe S. José mas por causa das coisas derivei para José Stalin (Yosssip Vissarovitch Djugatchivilli). Mas depois retirei o stalin não vá o diabo tecê-las e ele reencanar-se em V. que se vivesse na URSS daqueles tempos teria sido condenado ao gulag crismado de cosmopolita, víbora lúbrica e tudo o mais. Deixe lá que eu ia consigo se antes não me fusilassem provisoriamente. Tem graça isto ser dito por um gajo que entre 63 e 65 esteve no CMLP e na FAP. Nem sequer posso dizer a meu favor que era novo. nNovo uma gaita, tinha já vinte e dois anos...
Um abraço (de diletante para diletante, claro). Mande-me a sua direcção, Homem duma cana, que tenho aqui uma surpresa para si, carago!
Meu caro MCR:
"Stalin wasn´t stallin´"!
Em 43, um certo Roosevelt, preiteou vivamente um certo Estaline, por causa do grande esforço do dito, na condução dos sovietes numa guerra inaudita. E então, o povo das stars and stripes, até fez a canção- stalin qans´t stallin´" a apoiar o preiteamento do então aliado na Europa.
Roosevelt terá declarado em discurso público de 1943 que o mundo nunca vira antes tamanha devoção, determinação e espírito de sacrifício como o demonstrado pelo povo russo e os seus batalhões sob o comando e liderança do marechal Estaline!
Menos de meia dúzia de anos depois, havia um muro em Berlim que só caiu em 1989!
O tal Stalin, ex-seminarista, uma vez perguntou publicamente quantas divisões havia no Vaticano...
Segundo reza a História é responsável directo pela morte de milhões de pessoas e quem o denunciou foi um herói dos tempos modernos chamado Soljhenitsyn.
E tem razão. Se vivesse entre os sovietes desse tempo, seria sacrificado pelos pachecos desse tempo...sem apelo nem agravo, como agitador e contra-revolucionário.
É bem verdade que Soljhenitsin foi um heroi. ainda por cima esteve preso não por escritor mas por cientista... Mas não esqueçamos a Akhmatova e mais um bom par deles.
pwermita-me uma anedota (no sentido de histrieta histórica): quando começaram as depurações, os expurgos e os processos um fdos mais antigos membros do Comité Central foi, como se devia, acusado e processado-. Garantiram-lhe a vida se confessasse. ele então disse: Tenho sessenta anos e quarenta e cinco de revolucionário. Não me parece ser este o bom momento para estragar a minha biografia.
Foi fusilado, claro,
Durante anos, no antigamente, esta frase de um homem cujo nome esqueci, lida num livro sobre os bolcheviques, de que perdi rasto, foi o meu leit-motif. Suponho que nunca caí em prestar declarações á Pide graças a esta frase ( e à vergonha).
Amigos, íamos todos parar ao GULAG: uns porque são crentes, outros porque são da esquerda heterodoxa, outros...porque sim!
UF!
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