08 fevereiro 2006

digressão



nunca mais disse as mesmas palavras.
e me ocorre o fato simples
que nunca mais as direi.

o dia foi nublado
mas não choveu.

é tarde,
é noite.
e penso nas semelhanças
entre os dias e a vida.

de quando a vida é nublada,
nuvens baixas e escuras,
mas não chove.

como se houvesse um obscuro,
por vezes irritante propósito,
de manter a tensão .
mas não há deuses,
portanto não há propósito.

o fato é que não chove,
apenas estão lá as nuvens.
o cão dorme a meus pés
seu amor incondicional.

o tempo é estranho nas suas manifestações,
sinto um prazer na vida
que me empurra a viver intensamente
e simultaneamente esses instantes
parados nos anéis de fumaça.

e sou a mesma que aos dez anos
se perguntava se deus existe,
a mesma que ontem ria um riso alto
num restaurante à beira do tejo.
a mesma grávida descendo nas ondas em ipanema,
a mesma em braços inequívocos
ou equívocos,
que todos temos o direito supremo do erro.
a mesma desfilando alegremente no salgueiro,
a mesma a digitar um poema vago
em frente à tela branca.
a mesma a amamentar os filhos com um amor
que transcende todos os poemas.
e que pretende amar
não importa a idade que tenha.
e a mesma que senta-se aqui
num pedaço perdido do tempo
sabendo que nunca mais
dirá as mesmas palavras.
mas que recosta a cabeça
sem temores:
as palavras são muitas e várias.

sou a mesma e não sou mais nenhuma.
o tempo tem truques que desconhecemos;
só a vida tem o definitivo.


silvia chueire

4 comentários:

O meu olhar disse...

Gostei muito do seu poema Sílvia. Mesmo muito. Fez-me parar e pensar.
Obrigada.

C.M. disse...

Estava eu a escrevinhar aqui umas coisas quando deparo no poema da Sílvia.

Como explicar a súbita calmaria que se fêz no meu espírito?

Vieram-me à memória tempos em que eu era criança...

Quantas vezes parei, junto ao Rio Tejo ( haverá aí um rio assim denominado, Sílvia?) o qual sempre oferece o seu cheiro inconfundível, e que me transporta a mágicas manhãs da minha infância.

Não resisto a passar as mãos pelo velho barco, atracado na relva, ali em Alvega, uma terra pequenina perdida no imenso Ribatejo, terra de minha mãe que Deus tenha.

Talvez ele tenha pertencido ao velho barqueiro que conheci ainda miúdo.

Na minha memória vejo o seu rosto, pertença de outros tempos, outras memórias, os olhos muito azuis, reflectindo o brilho do rio, o qual ligava dois mundos, duas margens com a força dos seus braços e do seu varapau a bater nas rochas do fundo do Tejo.

Esta imagem do velho barco, cansado de tantas travessias no Tejo, repousando na areia, é uma fonte de nostalgia para mim, verdadeiramente uma marca de forte poesia, de um profundo bucolismo que faz a ponte entre um mundo hostil, agreste, como é aquele da grande urbe, para um outro, que mergulha na verdade da terra, mais consentâneo com o respeito que devemos a nós próprios e aos outros. Um universo, pequenino, mas porventura detentor das nossas mais profundas recônditas e queridas memórias.

São essas memórias que este belo poema me suscitou.

E assim fiquei aqui parado, no meu trabalho, com o pensamento à deriva, um pouco triste até...


Eu creio bem que, de todos, este será o mais belo poema que li da Sílvia.

Esta passagem é “demolidora”:

todos temos o direito supremo do erro.
a mesma desfilando alegremente no salgueiro,
a mesma a digitar um poema vago
em frente à tela branca
a mesma a amamentar os filhos com um amor
que transcende todos os poemas
e que pretende amar
não importa a idade que tenha.
e a mesma que senta-se aqui
num pedaço perdido do tempo
sabendo que nunca mais
dirá as mesmas palavras.

Vou ter de beber um “gin-tonic” ao almoço, para animar...

dlmendes

Silvia Chueire disse...

À o meu olhar e ao Delfim agradeço as palavras, tocaram-me.Mesmo.
Espero que o Delfim tenha , depois do gin-tônica, ficado animado.

Abraço grande,
Silvia
PS: não, Delfim, o rio era mesmo o vosso Tejo. : )

C.M. disse...

Fantástico!!!

Sabe que eu tenho a certeza de que o Rio Tejo é o único em Portugal que é mais azul, tem um cheiro único! Que...que...que...

Enfim...