A verdade, a áspera verdade*
Eu gostaria de poder imitar o meu caro camarada destas andanças, dr. Coutinho Ribeiro, o Carteiro. Até já lhe escrevi uma vez intitulando-me “recoveiro”. Cousa mais antiga, estão a ver?
Mas como também já disse, aqui, “não peçam ao pilriteiro que dê mais do que pilritos”, pelo que o aqui vai não tem nem a qualidade nem o tom dos textos do Carteiro.
Dois bloggers (blagueurs, esta é para José...) agarraram num texto do Expresso onde sou amavelmente citado e, pimba!, puseram-no aqui. Ora, para começar, convém esclarecer que lhes estou muito grato pois foi a amizade que lhes moveu a mão escrevente. Também estou grato ao Francisco Bélard, conspícuo cavalheiro que conheço vai para uma boa trintena de anos, mais precisamente desde o Festival de Cinema da Figueira da Foz. Somos amigos, claro. E cúmplices dessa estranha causa da cultura, coisa de pouco “abasto” num mundo que confunde Thomas Mann com Tomaz Moro. Trocamos, nomes de revistas, de autores, de livros, este ano surpreendi-o (e surpreendi-me) com o anúncio de um número especial de “Poesia” sobre o Quixote. O Francisco ficou em pulgas e agora tenho de ver se numa próxima ida à Michelena em Pontevedra lha compro.
E agora vamos às nossas encomendas: o Manuel Rui Monteiro é um velho compincha de Coimbra. Fomos colegas de curso, num dos anos em que me atrasei. Depois fomo-nos encontrando e desde sempre eu o acho mais velho (olha que novidade) mais gordo (menos do que eu) e mais feio. Até já lhe quis dar o prémio do mais feio nas “correntes” mas aparece sempre um par de camafeus que me destroça estes bons sentimentos. Convenhamos, a malta lá nas “correntes” por vezes não tem pachorra para algumas das sessões de poesia recitada. Vai daí ficamos à mesa com uma garrafa para esvaziar e batemos um daqueles papos infindáveis sobre o mundo, nós e a nossa circunstância. Aquilo é, digamos, uma conversa entre um “cabide” da “República dos Milionários” (1000 y onarius),eu e um permanente do solar “Kimbo dos Sobas”. Há sempre uma meia dúzia de náufragos que se agarram à nossa jangada para ouvir e parlapiar. O Belard então é mais certo do que ninguém, logo ele que também gosta de uma conversa de bica aberta!
Há todavia uma diferença: o Manuel Rui, escreve, publica e tem, além dum imenso humor, êxito literário e fartos leitores.
E o bissexto, perguntarão? Pois o bissexto mcr é isso mesmo. Bissexto até dizer basta! Um livrinho, outro de que não há rasto, publicado numas fantasmáticas “editions du nouveau étudiant noir” nos idos de 71, num Paris revolucionário e que se chamava “Uhuru” e compendiava dois textos: um sobre o problema negro nos Estados Unidos e outro sobre questões ligadas à economia africana e seus reflexos na cultura. Em boa verdade eram dois textos premiados nos jogos florais da queima das fitas em 68 e 69. De facto, para a categoria “ensaio” havia poucos concorrentes e daí os prémios e sobretudo o cacauzinho (dez contos, que naquele tempo eram uma fortuna). Deste livreco não há novas nem mandados. Aquilo também foi obra de editor de vão de escada. Paris naquele tempo era uma festa e o meu editor dava-se ares de revolucionário a outrance. Quando fui por ele estava desaparecido em parte incerta. Que esteja vivo e de saúde é o que lhe desejo.
De resto a minha “obra” foi sempre esta, crónicas, contarelos e similares. Há uns anos, graças ao Manuel Simas, saiu um outro livrinho de que ainda restam umas centenas de exemplares no editor.
Aceita-se, sem demasiada modéstia, o apodo de tradutor escrupulosíssimo. De todo o modo só traduzo das línguas em que a) sei fazer palavras cruzadas; b) sei insultar de modo a fazer corar um polícia.
E o terceiro ponto era: quando escreverei coisa que se veja, coisa séria, memórias, uns romances, sei lá que mais?
Eu podia dizer que sou preguiçoso. É verdade mas não chega. Poderia dizer que escrever me interessa pouco, o que é ao mesmo tempo verdade e mentira. Poderia dizer que para escrever uns romancinhos como os que por aí andam, não muito obrigado. E aí diria uma verdade como um punho. Tenho as mais sérias reservas ao que se vem escrevendo nos últimos dez anos. Nunca apareceu tanto livro e nunca me custou tanto a lê-los (ou melhor ler as primeiras 20 páginas porque se um livro não é bom nessas também o não será depois). Belo argumento, verdadeiro mas insuficiente.
A verdade verdadeira é infelizmente outra: não tenho fôlego romanceador. Nem talento. É pena, claro, mas é assim mesmo. Há anos que ando com um projecto desses in mente: um romance que se chamaria “A prisão é uma chatice e ainda por cima come-se mal”, onde se relatariam duas histórias em paralelo: uma investigação da antiga polícia política só documentada por peças processuais comentadas por dois agentes cultos e conhecedores da galáxia esquerdista e a verdadeira vida do objecto das suas investigações pouco coincidente com o que o processo investigativo documenta. Tudo sem vociferações nem mundo pintado a preto e branco. Obviamente com bastantes tiques autobiográficos. A ideia é sedutora, o perigoso Manuel Simas achou muito bem e por pouco que não me fechava numa cela monástica a pão e água só me fornecendo manteiga se eu aviasse dez páginas por dia. Alguém lhe terá sussurrado que aquilo poderia considerar-se cárcere privado e ele, muito juiz conselheiro desistiu de me acorrentar. Mas de vez em quando olha para mim com um ar de algoz medieval e, mesmo sem me dizer nada, põe-me nervoso. Remato para canto a fingir que não é nada comigo mas a verdade é que durante um par de horas fico envergonhado e prometo emendar-me e lançar a primeira pedra dessa obra imortal. Felizmente essas coisas passam mais depressa do que os remorsos por estar gordo e não me atrever a perder os dez ou quinze quilos a mais que me avolumam a cintura e me diminuem o pescoço.
Entretanto aponto num moleskine umas notas brevíssimas sobre coisas a escrever. Isto quando me lembro e o tenho à mão. Neste exacto momento estou a tentar lembrar-me de umas coisas que seriam engraçadíssimas mas que estão perdidas numa das gavetas do meu pobre cérebro.
Memorias, dizia o Bélard. Memorias, não se conteve o nosso Delfim agora Cabral Mendes. Memorias tonitruou o meu caríssimo José há uns meses num comentário a um texto meu ou do Compadre Esteves. Ora pratiquemos sobre esse difícil tema: primeiro é preciso que se tenha algo para dizer que ultrapasse o umbigo do autor. Para isso deverá este ter bom senso e bom gosto como recomendava o mestre Antero. Ou, por outras palavras, nem tudo o que se viveu merece sequer duas linhas de prosa. Claro que, remexido, como fui, alguma historieta há-de dar quanto mais não seja duas laudas de papel que mereçam um sorriso de uma leitora desprevenida mas gentil. Isso ainda eu talvez possa fazer tanto mais que o Manuel Simas (“sempre esse homem fatal*”) costuma dizer que uma viagem feita por nós dois mas descrita por mim é sempre uma novidade para ele. Mas por aí me fico. Não tenho vida para uma autobiografia e muito menos a minha proverbial imodéstia é assim tão notória. Portanto, irei continuando a escrever estas pequenas balivérnias, enquanto me isso me der algum gozo e julgar que há três leitores distraídos e prontos a perder tempo com um escriba de segunda divisão distrital. A menos que saibam jogar bridge! Se esse fosse o caso melhor fariam em aparecer cá por casa e sempre se jogavam uns rubbers amáveis. Ele há tanta falta de bridgeurs hoje em dia. Valeu?
O título desta (?) croniqueta é de Danton. Há também por aí perdida uma citação de Eça. O seu a seu dono que não quereria enfeitar-me com penas alheias.
14 comentários:
Ora cá vai então o segundo comentário que aqui fica como primeiro:
Um livro de memórias sob a forma de romance...com que então caiu na asneira, de fazer o gosto ao ego e de espraiar na sua eira, umas letras joeiradas para recolher em livro!
Faz muito bem! Mesmo que não sinta o génio, lembre-se que é a transpirar que se apanha o fugitivo!
O Lobo Antunes, coitado, esmifra-se a compor letras, em livros de grande porte. Mas ainda assim, conta-se desontente do resultado previsto. Disse-o na semana passada na Visão.
Assim, para mim que já pensei nisso, o objectivo é pegar-lhe. Torcer as letras e as frases e ter um conceito em vista.
Escrever é dizer coisas. Primeiro para nós; depois, para os outos.
A pergunta que costumo fazer quando pego num livro costuma ser esta: para que serve ler isto?!
Às vezes, a resposta é uma surpresa, mas já foi mais.
Os motivos de interesse podem, variar de pessoa para pessoa.
O que gosto de ler aqui, escrito por si, são as experiências vividas, contadas de modo literário e em certo estilo que não sei bem definir.
E não sou um bom leitor. Nesse aspecto, sou infiel, caprichoso, cruel, impiedoso, mas atento ao milagre do génio.
Às vezes encontro. Pego numa crónica do Lobo Antunes- o nosso melhor cronista de longe e a deixar outros a milhas!- e começo a leitura em voz alta se puder e a entoar declamações teatrais. Gosto de o fazer para outrém. Às vezes- raríssimas vezes!- sai uma crónica memorável que recorto e guardo.
Vale o dia em que a leio.
Um livro´, mais denso, vale pela profundidade da sabedoria expressa, às vezes de modo cândido ou então pela ratoeira que autor monta.
Os policiais valem pela intriga e acção. AS novelas pela descrição factual e dos acontecimentos singulares. Os Romances, pela riqueza dos verbos e variações da história que nos ensina o que já sabemos: "viver é saber da vida,o mesmo que sabe o mar: vai-se uma onda perdida; outra onda a enrolar"...
Tenho que, para mim, o "perigoso" Manuel Simas é que tem razão: é fechá-lo bem fechado; não sei se no forte de Peniche ainda o aceitam mas desta feita era por uma boa causa...(ahahah...
7/3/06
Quando leres algumas das crónicas do M.C.R. em que eu entro, e virem os papeis que me atribuiu, então é que verão quem é «perigoso»...
Caro MCR, como eu o compreendo! Ando há anos a arrastar um romance, com as personagens ali dependuradas à minha espera para eu desatar os nós e eu socorrendo-as aos soluços. Questionei-me muitas vezes sobre o valor daquilo que escrevia. Alguém me disse uma vez: quando passares de “gostava de acabar” para “quero acabar”, então será o momento.
Bom, mas este é o meu problema. Quanto ao seu, não posso deixar de lhe dizer que é um desperdício não avançar. Ainda por cima o enredo é de abrir o apetite! Acho que essa produção não tem nada a ver com modéstia ou imodéstia, tem com o querer partilhar as suas vivências e também a sua imaginação. Ainda por cima estando certa a qualidade dos escritos, porque espera?
Ó, MCR, até corei de vergonha! V. tem mais sabedoria num dos seus postais mais curtos do que eu em tudo quanto escrevi por aqui. Eu sou apenas um tipo que fala dos sentidos.
Escreva um livro, escreva, que cá estarei para o ler.
Ainda ninguém reparou que foi MCR quem traduziu o livro do super Baltazar Garzón?
Caramba! Tenho de ver isso!
Concordo inteiramente com o meu olhar e com o carteiro!
Queremos ir à apresentação dos livros do MCR! JÁ!!! ALUTA CONTINUA!!
Carteiro
além de bissexto, e tradutor rscrupuloso sou o que se chama um leitor educado e exigente. Não deprecie o que faz. Porque o faz bem, com uma desarmante naturalidade e uma enorme sensibilidade. Para além de afloramentos de humor que me tem feito rir com vontade.Melhor: sorrir abertamente e com vontade. Não são piadas, é um modo oblícuo de ver as coisas e, sem que o leitor dê por isso, cria-se essa subtil atmosfera de irónica bonomia. se não acreditra pergunte à Sílvia.
MCR: há horas, falei com o JCP. Sublinhei a ideia de organizarmos um jantar, coisa de que V. já falou por aqui. Ele acha bem. Ele que o conhece e eu não. Só nós três? Não necessariamente. Mas, nestas coisas não se pode ter a tentação de organizar grandes eventos. Falha sempre. Por isso, a minha ideia é esta: nós vamos jantar. Escolhemos o dia. E dizemos aqui. Quem quiser vem também. Desde que avise com algumas horas de antecedência. Parece-lhe bem? A mim parece (convém ser num fim de semana em que não esteja com a minha malta). Por isso, JCP, controla isso, que és um tipo organizado...
Meu caro Carteiro
Eu sou, por natureza, convivial e jantarante. Desde que as coisas não ocorram antes de 15 de Março (os famosos idos : e eu tenho de ir a Lisboa...) estou por tudo. O JCP é de certeza um rapaz organizado: logo que o vi pendurado num imenso charuto dei-me conta que ele sabe o que faz. Os escritos confirmam, claro. Mas para fumar um artefacto daquele tamanho só mesmo um tipo organizadíssimo.Eu que nunca passei do cigarrinho (dos muitos cigarrinhos, diga-se) sempre admirei os bofes e a paciência de quem "charuta" a todo o vapor. Bem haja pela sua ideia que eu já estou de babete posto.
Um abraço
DE um livro do MCR ? Sou a favr, sempre a favor. : )
Abraços,
Silvia
sílvia eu já lho mandei, não?
MCR,
Perdoe os erros no comentário anterior, foi a pressa.
Sim, vc me enviou um livro seu ( o que foi um prazer), mas eu já me referia ao outro, este de memórias. Ou de memórias na forma de crônicas. POrque as memórias são autobiográficas mas não são necessariamente uma autobiografia.
E sim, o carteiro deve saber que vc tem razão e eu concordo. Também eu sorrio com a "desarmante naturalidade" e a coragem.
Carteiro, gosto de ler os seus textos.
Abraços aos dois,
Silvia
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