OS DONOS DE 68
Era inevitável. Ao aproximar-se o 20º aniversário do joli Mai desencadeou-se uma corrida celebrativa que, entre o patético e o ridiculo, ainda vai dar muito que falar. O 68, tão desmentido na prática de muitos que ora dele se reclamaram, serve para tudo numa perversa tradução portuguesa do il est interdit d'interdire.
Gauchistes saudosos que ainda usam cartucheira a tiracolo, balzaquianas avançadas que sofrem os horrores da menopausa que aí vem, novos políticos ambiciosos e desmemoriados, todos, mas todos, tomam de assalto as páginas centrais de jornais e revistas para contar como foi. Não deixa de ser curiosa esta frenética berraria pontuada de eu estava lá, vi e fiz tudo.
As mais das vezes de facto estavam. Com alguma desatenção como aquele meu amigo, Fernando R.C. que passeou por um Paris fantasmático entre 10 e 13 de Maio e que, à chegada, interrogado ansiosamente, dizia, lacónico e definitivo - "Havia muitas fogueiras".
Que fique para a pequena história -o Fernando R.C. era dirigente de um organismo estudantil, malhou com os ossos na tropa em fins de 69 por ter feito a greve de Coimbra e mantem-se, hoje, com quarenta e tais, igual em generosidade e desprendimento -faz de João Semana numa pequena aldeia do litoral.
Do que até há data tenho lido (tirante as citações de "Genération" ou "La révolution nous l'avons tant aimé") para além da corridinha arteira e auto-celebrativa pouco fica.
Vejamos, porém: Foi o 68 (mesmo só o francês) algo que saiu inteiro e repentino da perna do Júpiter-De Gaule ou já havia aviso público e notícias anteriores?
Acaso Rudi Dutschke (Rudi o Vermelho) e os seus amigos berlinenses não tinham anteriormente dado sinais de vida?
Acaso os estudantes americanos (SDS, Berkeley, Kent, etc...) não se manifestavam desde 65/66 com mortos e tudo?
E na Itália ou na Espanha porventura não se passou nada?
E a Checoslováquia, a Polónia, a Inglaterra (onde parará agora Tarik-Ali?), a Holanda, o México (há quem se lembre das três centenas de mortos da Praça das Três Culturas?) o Brasil? Eram de outro planeta?
Ainda há quem recorde que Marcuse chegou primeiro a Portugal via Brasil ("O Homem Unidimensional" baptisado de "A ideologia da sociedade industrial" ) do que a França?
Haverá alguém que possa, como já se leu, dizer, impudentemente, que 68 é a resposta descomplexada aos engravatados de 62? Então as fotografias (já não digo de Coimbra ou Lisboa mas de Paris) não nos mostram multidões de jovens mais engravatados e domingueiros do que muito actual deputado à AR?
Em 68, dizem-nos os seus mais conhecidos dirigentes franceses (média de idades 43/44 anos), não começou nada. Em contrapartida acabou muita coisa. Ou começou a acabar que as utopias têm sete fôlegos como os gatos. Os anni di piombo posteriores (Rote Armee Fraktion na Alemanha, Grapo em Espanha. Prima Linea e BR na Itália e os suicidios -por todos Recanati ) são efeitos perversos da revolução que não houve. Ironicamente o 25 de Abril português reforçou por momentos a movimentação autista e sectária de uma franja da extrema esquerda europeia nascida no rescaldo de Maio de 68.
Ou, dito de outra maneira: 68 foi uma explosão justamente porque, de 61/62 até esse momento, se tinham acumulado tensões violentíssimas que alimentaram toda uma geração que, educada, ou, simplesmente, influenciada pelos poderosos pc da Europa ocidental, pouco a pouco, se apercebeu da falência destes, entrou em ruptura com o que então se apelidou de revisionismo moderno e redescobriu o maximalismo, o trotskismo, Rosa Luxemburgo ou Pannekoeck e as virtudes míticas da geração de 17. Ocasionalmente deu origem à revitalização do socialismo democrático dando outra vez razão a Cohn-Bendit que em plenas jornadas revolucionárias afirmava que afinal o movimento "rolava a favor de Mitterrand".
Maio 68 marca o fim do reinado dos grandes líderes históricos (De Gaule, Franco, Salazar, cuja legitimidade e base de apoio são abertamente postas em causa) e, mais do que isso, a inexorável perda de hegemonia política, intelectual e social dos partidos comunistas na esquerda.
Mas marca também o fim de uma certa concepção da universidade e do seu campus como zonas dotadas de extra-territorialidade: por um lado porque pela primeira vez há uma intervenção maciça do corpus estudantil no movimento social e porque, por outro, o poder (político e económico) retira à universidade o estatuto de santuário. Não se trata aqui de significar que a polícia entra agora, à vontade, nas escolas e faculdades -já tinha entrado antes - mas sim de sublinhar que as empresas e o exército reforçam os seus laços com a universidade, influenciam programas de estudos, modificam curricula, numa palavra integram-na no sistema. Ou melhor: integram-na mais claramente.
Não se estranhe portanto ver por aí perpassar muito rapazola que, vinte anos depois, assevera que esteve em todas, foi a todas, crente que vinte anos é tempo demais para se lhe verificar o currículo.
Mais e pior: anda por aí muito celebrativo a justificar o actual passadio à mesa do orçamento com um inventado passado à sombra das bastonadas que então floresciam nos lombos discordantes.
Em 68, diziamos, e não éramos assim tantos: inventar o futuro. Em 88 não dizem mas pensam, com a vaga esperança de só encontrar esquerdistas loucos, contestatários poucos e ouvidos moucos: inventar o passado!
Abril de 1988
O companheiro Forte veio com um notável texto obrigar-me a publicar este. Jazia no arquivo inerte, para não dizer morto e enterrado, e pretendia ser uma resposta a algum rapazio que em 88 aproveitava a boleia das comemorações para se "armar ao pingarelho". Não é pois, uma resposta nem mesmo um comentário mas tão só uma apostilha a um texto que me comoveu mais do que eu quereria. Obrigado camarada Forte e...parabéns.
D'Oliveira
Gauchistes saudosos que ainda usam cartucheira a tiracolo, balzaquianas avançadas que sofrem os horrores da menopausa que aí vem, novos políticos ambiciosos e desmemoriados, todos, mas todos, tomam de assalto as páginas centrais de jornais e revistas para contar como foi. Não deixa de ser curiosa esta frenética berraria pontuada de eu estava lá, vi e fiz tudo.
As mais das vezes de facto estavam. Com alguma desatenção como aquele meu amigo, Fernando R.C. que passeou por um Paris fantasmático entre 10 e 13 de Maio e que, à chegada, interrogado ansiosamente, dizia, lacónico e definitivo - "Havia muitas fogueiras".
Que fique para a pequena história -o Fernando R.C. era dirigente de um organismo estudantil, malhou com os ossos na tropa em fins de 69 por ter feito a greve de Coimbra e mantem-se, hoje, com quarenta e tais, igual em generosidade e desprendimento -faz de João Semana numa pequena aldeia do litoral.
Do que até há data tenho lido (tirante as citações de "Genération" ou "La révolution nous l'avons tant aimé") para além da corridinha arteira e auto-celebrativa pouco fica.
Vejamos, porém: Foi o 68 (mesmo só o francês) algo que saiu inteiro e repentino da perna do Júpiter-De Gaule ou já havia aviso público e notícias anteriores?
Acaso Rudi Dutschke (Rudi o Vermelho) e os seus amigos berlinenses não tinham anteriormente dado sinais de vida?
Acaso os estudantes americanos (SDS, Berkeley, Kent, etc...) não se manifestavam desde 65/66 com mortos e tudo?
E na Itália ou na Espanha porventura não se passou nada?
E a Checoslováquia, a Polónia, a Inglaterra (onde parará agora Tarik-Ali?), a Holanda, o México (há quem se lembre das três centenas de mortos da Praça das Três Culturas?) o Brasil? Eram de outro planeta?
Ainda há quem recorde que Marcuse chegou primeiro a Portugal via Brasil ("O Homem Unidimensional" baptisado de "A ideologia da sociedade industrial" ) do que a França?
Haverá alguém que possa, como já se leu, dizer, impudentemente, que 68 é a resposta descomplexada aos engravatados de 62? Então as fotografias (já não digo de Coimbra ou Lisboa mas de Paris) não nos mostram multidões de jovens mais engravatados e domingueiros do que muito actual deputado à AR?
Em 68, dizem-nos os seus mais conhecidos dirigentes franceses (média de idades 43/44 anos), não começou nada. Em contrapartida acabou muita coisa. Ou começou a acabar que as utopias têm sete fôlegos como os gatos. Os anni di piombo posteriores (Rote Armee Fraktion na Alemanha, Grapo em Espanha. Prima Linea e BR na Itália e os suicidios -por todos Recanati ) são efeitos perversos da revolução que não houve. Ironicamente o 25 de Abril português reforçou por momentos a movimentação autista e sectária de uma franja da extrema esquerda europeia nascida no rescaldo de Maio de 68.
Ou, dito de outra maneira: 68 foi uma explosão justamente porque, de 61/62 até esse momento, se tinham acumulado tensões violentíssimas que alimentaram toda uma geração que, educada, ou, simplesmente, influenciada pelos poderosos pc da Europa ocidental, pouco a pouco, se apercebeu da falência destes, entrou em ruptura com o que então se apelidou de revisionismo moderno e redescobriu o maximalismo, o trotskismo, Rosa Luxemburgo ou Pannekoeck e as virtudes míticas da geração de 17. Ocasionalmente deu origem à revitalização do socialismo democrático dando outra vez razão a Cohn-Bendit que em plenas jornadas revolucionárias afirmava que afinal o movimento "rolava a favor de Mitterrand".
Maio 68 marca o fim do reinado dos grandes líderes históricos (De Gaule, Franco, Salazar, cuja legitimidade e base de apoio são abertamente postas em causa) e, mais do que isso, a inexorável perda de hegemonia política, intelectual e social dos partidos comunistas na esquerda.
Mas marca também o fim de uma certa concepção da universidade e do seu campus como zonas dotadas de extra-territorialidade: por um lado porque pela primeira vez há uma intervenção maciça do corpus estudantil no movimento social e porque, por outro, o poder (político e económico) retira à universidade o estatuto de santuário. Não se trata aqui de significar que a polícia entra agora, à vontade, nas escolas e faculdades -já tinha entrado antes - mas sim de sublinhar que as empresas e o exército reforçam os seus laços com a universidade, influenciam programas de estudos, modificam curricula, numa palavra integram-na no sistema. Ou melhor: integram-na mais claramente.
Não se estranhe portanto ver por aí perpassar muito rapazola que, vinte anos depois, assevera que esteve em todas, foi a todas, crente que vinte anos é tempo demais para se lhe verificar o currículo.
Mais e pior: anda por aí muito celebrativo a justificar o actual passadio à mesa do orçamento com um inventado passado à sombra das bastonadas que então floresciam nos lombos discordantes.
Em 68, diziamos, e não éramos assim tantos: inventar o futuro. Em 88 não dizem mas pensam, com a vaga esperança de só encontrar esquerdistas loucos, contestatários poucos e ouvidos moucos: inventar o passado!
Abril de 1988
O companheiro Forte veio com um notável texto obrigar-me a publicar este. Jazia no arquivo inerte, para não dizer morto e enterrado, e pretendia ser uma resposta a algum rapazio que em 88 aproveitava a boleia das comemorações para se "armar ao pingarelho". Não é pois, uma resposta nem mesmo um comentário mas tão só uma apostilha a um texto que me comoveu mais do que eu quereria. Obrigado camarada Forte e...parabéns.
D'Oliveira
2 comentários:
Peço desculpa pelo lapso: aqui vai de novo o comentário:
"Gauchistes saudosos que ainda usam cartucheira a tiracolo, balzaquianas avançadas que sofrem os horrores da menopausa que aí vem" - esta imagens só do...d'Oliveira! Simplesmente delicioso!
Aliás como todo o texto.
Temos de fazer uma colecta para o d'Oliveira colocar em forma de livro estes textos dispersos...
uma espécie de "diário
de uma vida"..que tal?
( depois tem de fazer outro a contar as "aventuras" mais recentes...as políticas e as amorosas...ahahaha!)
Grato por esse comentário, obviamente. Mas não ao ponto de contar tudo.
A colectazinha aceito-a claro. Como dizia o meu saudoso amigo "Cabeça de Vaca": tens aí "vintinhos". Olha que é para cervejas, hem? Não é para sopa. Olhe que é para escrever umas tolices, hem? Nada de sério nem nada que salve o mundo...
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