Admirável mundo novo!
Eu era um miúdo que andava na escola de Buarcos ou talvez já tivesse ido para o liceu. Não tenho a certeza pois, de todo o modo, já passaram 54 ou 55 anos. Sei, isso sim, que se tinham instalado perto de nós, entre Figueira e Buarcos, numa casa encostada ao Parque Sotto Mayor, os meus tios Néné e Marcos. A casa tinha vários atractivos e o menor não seria de certeza uma enorme ginjeira que crescia numa casa desabitada ao lado e que, na época própria, se carregava de ginjas. O nosso sentido jurídico indicava-nos que ao ser a casa desabitada, as ginjas poderiam ser consideradas res nullius e portanto estariam ao alcance do imenso apetite dos meninos que soubessem trepara á árvore. O que comemos de ginjas, meu Deus!
A segunda atração da casa eram os livros. O Tio Marcos tinha livros surpreendentes mesmo para quem sempre lidara com livralhada. Tinha livros de História! E não quaisquer uns mas uma série de volumes de uma História Universal de um senhor chamado Macedo Mendes. Aquilo para mim foi tiro e queda.
Agarrei no primeiro volume, sentei-me numa cadeirinha e aí vai disto: a pré-história passou como uma mão cheia de ginjas. E por aí fora. Certos volumes falavam de coisas extraordinárias: da Índia, da China, civilizações absolutamente excêntricas para quem mais tarde só ouviria falar de Roma e Grécia.
Ao escrever estas linhas tenho diante de mim vinte um metros de livros de história, filhos seguros daquele amor extremamente juvenil. Isto significa que já me passou pelas mãos uma parte do melhor que se escreveu em termos de História nacional e internacional. Todavia durante todos estes anos, era perseguido pela lembrança daquela história universal do Macedo Mendes. Corri Ceca e Meca por um exemplar mas nada. Provavelmente outros meninos antes de mim teriam lido o mesmo, sentido o mesmo absoluto embevecimento e com mais rapidez do que eu tinham esgotado o mercado alfarrabista.
Ora acontece que há dois ou três dias, a prima Maria Manuel, a tal que escreve romances, me manda um mail curtinho mas lindíssimo: que os volumes do Macedo Mendes, parte da sua futura “parca herança” aguardavam a minha ida a Lisboa para os recolher. A prenda era obviamente dela e da tia Néné, uma old lady romântica, aventureira e estravagante que leu tudo o que apanhou à mão na Biblioteca da Figueira a pontos de uma vez à entrada ouvir do senhor Santos, bibliotecário, uma apóstrofe deste tipo: A menina escusa de entrar que não há livros novos”. Ou seja que no capítulo ficção não havia mais nada para ela meter o dente. E a biblioteca da Figueira é uma das maiores do país...
2 O presidente Bush anda em passeio: No Afeganistão elogiou a democracia e a paz que ali se vive. Ora aqui está quem se não preocupa desse pequeno pormenor geográfico e que é o seguinte: fora de Cabul só de escolta e mesmo assim... Depois do Afeganistão visitou esse exemplo de democracia e de poder instituído em eleições livres que é o Paquistão. A população entretanto manifesta com especial mas violento carinho a sua afeição por Bush e pela América. E nas escolas corânicas (que são mais do que muitas) continua a ensinar-se um Corão vingativo, primitivo e a favor da guerra santa contra os infiéis. A culpa deve dos dinamarqueses, não acha dr Freitas?
3 A propósito de Bush ocorre perguntar porque é que consente à Índia o que nega ao Irão. Ou será porque esta já tem o suficiente número de bombas que lhe permite retaliar qualquer devaneio? E já que falamos de bombas atómicas, alguém me explica porque é que podendo Israel possuir cerca de duzentas ogivas nucleares os vizinhos não podem? Não que eu goste da bomba , mas enfim...
4 Ainda e sempre Bush: parece que finalmente já se sabem os nomes (ainda que incompletos de trezentos e tal prisioneiros “combatentes” de Guantánamo. Os noticiários dizem-me que estão ali há quatro anos, sem outra acusação, sem advogados nem julgamento.
5 Sempre nesta onda anti-ocidental oiço agora que um casal israelita e de confissão judaica entrou numa igreja cristã nos territórios ocupados da Cisjordânia e fez detonar uma bombita. A população local injustamente indignada cercou o templo onde eles estavam barricados mas a tropa israelita impediu mansamente os manifestantes tendo havido um número razoável de criaturas árabes feridas decerto por militantes do Hamas ou do Fatah.
Entretanto, de Israel e de outros sítios assegura-se que o casal bombista sofria de depressão. Ora aqui está uma boa desculpa para os futuros “mártires” palestinianos: sofrem de depressão e matam, coitados...
6 Na Alemanha a direita pede a imediata proibição de exibição de um filme turco onde os maus são americanos no Iraque e o bom é um agente secreto turco. Entre outras coisas afirma-se que o filme é anti-semita. Pena que não exija o mesmo em relação aos filmes anti-árabes, anti-negros africanos.
Para não lhe ficarem atrás, uma série de organizações judaicas exige a Hollywood, ou mais propriamente à Academia, que se retire das nomeações ao Óscar o filme “Paradise Now” que relata a odisseia de dois bombistas suicidas falhados. Tudo em nome da democracia...
7 E a propósito de democracia, países europeus há (e entre eles a Áustria, inocentinha de fascismo) que punem com penas pesadas o “crime de negacionismo”. Isto sob a desculpa bacoca de que o negacionismo não é uma opinião mas uma violência contra as vitimas (Didier Daeninckx, dixit). Depois espantam-se com as acusações de parcialidade que os muçulmanos lhes dirigem. Oh admirável mundo novo!
8 Neste momento o canal Arte dá um espantoso documentário sobre a Sagração da Primavera dançada por duzentos jovens que nada sabiam de dança. Que milagre! Só por isso o coreógrafo Royston Maldoon e sir Simon Rattle, maestro titular da Berliner Philarmonie mereciam um lugar à direita de Deus pai. Vamos lá a ver se com uma cunha do nosso Delfim se consegue essa graça...
Deixo-vos com esse testemunho de esperança dançado por jovens de vinte nacionalidades, raças diversas e diferentes religiões. Em Berlim que foi capital do mal...
este texto ficou pronto sábado mas a imperícia do cronista, o sono, e uma valente constipação, conjugaram-se para adiar a sua apresentação aos bondosos e resignados leitores. Daí o tom fanée da redacçãozinha.
4 comentários:
É tudo um non-sense ( para ser suave na palavra) onde a arte se eleva como esperança.
Abraços, MCR,
Silvia
MCR, esta sua escrita é sempre um encanto!
Já agora, as melhoras da sua saúde.
Quanto ao Bush, também tenho essas interrogações, todas elas direccionadas para a liberdade. Está visto que a liberdade é para aqueles que são mais iguais que os outros.
Há dias ouvi num telejornal um porta-voz da presidência americana a queixar-se dos jornais, a nível mundial, por publicarem fotos relativas à violência, sexual e não só, existente numa prisão no Iraque, que está sob o comando dos americanos. Que incitavam à violência, que serviam atiçar ódios, para piorar as coisas, etc. Por momentos até pensei que ele estava a falar das caricaturas….
"A menina escusa de entrar que não há livros novos”.
Fantástico!
Quem é que pode, nos dias de hoje, gabar-se de tal feito?
Qual o jovem dos nossos dias que seria capaz de realizar essa “liturgia” a tal ponto de esgotar a leitura de uma biblioteca?
Realmente, “ele” era a Pide, “ele” era a censura, era…era…era…mas as pessoas cultivavam-se…está bem que havia analfabetismo, mas …hoje continua a existir!!! As pessoas até estão mais embrutecidas!
É caso para dizer que estamos perante um paradoxo!
MCR: aproveitando o seu jeito tão peculiar, direi:
Homem! Ponha-me estes “contos” em forma de livro!
É um imperativo!
(gosto tanto de ler estas coisas, MCR…)
Rectius: para "caricaturar" um pouco a perplexidade, falei na "Pide"...mau exemplo...se não fosse esta, (também diga-se, em abono da verdade, que era formada por ignaros - sim, eu vi muitas fichas dos elementos da dita...) o regime não teria sido tão execrado...ou talvez fosse, pois o que muitos não perdoaram ao Regime do Estado Novo foi a cobertura que este deu à Igreja Católica, que vinha sendo perseguida pelos republicanos da I República…e que não descansaram enquanto não abateram o EN…Mas, dizia eu, a época era favorável a estas polícias...o comunismo era o grande "terror" do Ocidente, e o Estado precavia-se contra aqueles que professavam esta ideologia...ai onde me fui meter! Que fique claro que não gosto de energúmenos, seja de que cor for!...
"Ele" há aí muitos, nos dias que correm. Dizem-se democratas, sim senhor, mas só vêm numa direcção: a deles!
Pronto, fica feita a precisão.
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