Estava de pé no meio do mundo. No meio da cidade. No meio da casa. No meio da vida. Hirto, sem dizer palavra, estava de pé no meio da balbúrdia do universo.
Tinha 27 anos e estava ali, de pé , os olhos azuis, fixos, atravessando as paredes, voltados para o rumor que escutava, um rumor, um murmúrio de vozes, uma delas elevada sobre todas as outras.
Estava de pé há muitas horas no meio do mundo. Os cabelos louros chegando aos ombros, o tronco nu, as pernas inchadas do tempo que permanecia parado no meio da sala.
À sua volta andavam a mãe, a irmã, o pai, atarantados, a falar com ele palavras que ele ignorava, que se misturavam, insignificantes, ao rumor que ouvia, por trás da outra voz, nítida . Eram palavras de absoluta incompreensão sobre ele, sobre o que estava acontecendo, sobre o seu destino, o seu dever, sua importância nos acontecimentos .
A família chamava-o para fora disto, para coisas pequenas da vida mínima de todos os dias, que não interessavam. Queriam-no para eles. E insistiam, insistiam. Ele não prestava atenção. A vida não era nada daquilo. Era maior que eles. Que ele, que a cidade, que o café da manhã, o jantar, ou ir ao banheiro. Maior do que a sua idade, as diversões, ou o prazer. A vida era grande e podia ser aguda. Uma faca, um passo além da borda da janela até o corpo estatelar-se no chão. Os micro intervalos entre os tiros de uma metralhadora e o cravar das balas na carne, definitivamente.
A vida, ele sabia, ali de pé, era um emaranhado de coisas e homens, pensamentos e inutilidades, desorganização e pessoas perdidas, cidades perdidas, nações perdidas. O tempo a pressionar o pensamento dos homens. As mortes, a miséria, as guerras. Isto era a vida! Não as palavras dos livros, ou as especulações dos filósofos. A vida era o sangue a correr sem parar e o mundo, a terra, a desfazer-se. O desejo que o mundo se recuperasse e ninguém a fazer nada. A esperança vazia, porque os homens sempre esperam e a vida os morde cada vez com maior fome, com maior crueldade. E ele ali, sua responsabilidade olhando-o, à espera de que ele cumprisse a sua parte. Os pensamentos partidos feito trens com suas linhas ferroviárias a entrecruzarem-se, interrompidas as trajetórias. Difícil pensar. A emoção mordendo-lhe o peito.
Doiam-lhe as costas, os músculos. As pernas e pés já não se lembrava de senti-los. Tivera sede e a ignorara. A cabeça, sentia-a zonza. Fazia certo calor e a luz fora mantida acesa, anoitecia. Ele transpirava.
As pessoas em torno faziam-lhe perguntas que já não respondia há horas. Se estava com fome, se não queria sentar-se, descansar.
Por favor, meu filho, dormir, comer, tomar um banho morno, por favor, meu filho. Trivialidades.
Tivera fome e sono e cansaço nas primeiras horas. Agora vagava, mas não vacilava um segundo sequer. Dali não podia afastar-se.
Súbito pressentiu a entrada na sala de alguém que lá não estava antes. Talvez porque seus pais se afastaram de si, talvez porque uma campainha tocara. Minutos depois, não soube, nem se interessou em precisar quantos, aproxima-se dele uma mulher jovem, de rosto sério, porém pacífico. Pareceu-lhe ouvir a mãe dizer : esta é a doutora que veio lhe ajudar. Não teve sobressaltos, sabia qual o seu destino, sua tarefa. Uma doutora nada tinha a ver com tudo aquilo. A Voz, o rumor e a Voz .
Compreendera como seriam importantes as coisas ao sair do banheiro dias antes e deparar-se com a visão de um cavalo alado. Um susto ! Foi rápida e impressionante. Sabia que algo estava para acontecer.E depois os vizinhos a falarem dele. Sempre a falarem mal dele, um dia iam pegá-lo. Os ignorantes... A angústia em que vivia mergulhado sacudia-lhe às vezes as entranhas, a dor, a incompreensão.
A mulher aproximou-se muito calma, chamou-o pelo nome:
- João ? ele imóvel, os olhos semi-cerrados.
- João, preciso conversar com você, ela disse.
- Diga, por que você está no meio do quarto há tantas horas parado? Converse comigo, à vontade, diga o que há. E pensou, nada me removerá daqui.
- ...
- Que tal nos sentarmos mais confortáveis ? Você está aí há quase 24 horas, sua mãe me disse. Isso é exaustivo. Eu também estou cansada, era melhor conversarmos sentados, e deu um leve sorriso. Que tal?
- ...
- E você precisa ao menos beber água, ir ao banheiro.
O tom calmo da voz, o rosto dela sem aflição lembraram-no da vontade de urinar que o havia atormentado no início, da sede. Tudo retornando, as dores agudas, a agonia pela qual tinha que passar, estar ali de pé, o mundo nas suas costas. Não percebiam. Eram incapazes de entender que ele não podia sair dali, que se pudesse correria para o banheiro, ou para o sofá. Mas era vigiado, pela Voz e pela sua consciência da importância das coisas.
Seus pais haviam silenciado, confiando à mulher o diálogo. O rumor longínquo de vozes persistia, falavam dele. Manteve a cabeça ereta, o olhar voltara para a parede. Através da parede olhava o mundo, a vida, homens a matarem-se, a morrerem de fome, os gritos de socorro. E tinha certeza absoluta do que devia fazer. Ouvira claramente tantas vezes: depende de você. As notícias na televisão a falarem dele, da fé que tinham nele. Os vizinhos olhando-o, ora desconfiados, ora invejosos, fora ele o escolhido. A confusão das ruas esperando que ele cumprisse seu papel .
- João ? ouviu novamente. Então está bem, conversamos aqui mesmo.
- Diga-me, porque é que você está nesta posição há mais de 24 horas? O que há? Eu não entendo e gostaria de entender.
Nem ela! Eles não tinham a menor idéia do que se passava!
Sentiu-se irritado por entre o sofrimento todo, certa exultação por ter sido escolhido, e os pensamentos partindo-se, as vozes. Sim, farei o que deve ser feito.
Gente imbecil ! Tudo tão claro e eles não vêem.
Olhou para ela, para aqueles mansos olhos castanhos, pronto a dizer um palavrão. mas sentiu-a solidária. Refreou a raiva e rompeu o silêncio, dizendo devagar e firmemente :
- Será que você não vê que não posso !? Estou de pé no centro do mundo! O equilíbrio das coisas depende de mim, só de mim. Deus me incumbiu de manter o equilíbrio da vida na terra, da vida dos homens, tem me repetido isto há dias. Só há horas percebi claramente que era a voz Dele e que tudo depende apenas de mim ! Se eu me mover daqui tudo vem abaixo. O mundo se desfaz ! Não posso me mover. não posso ! A dor atravessando-lhe a coluna, a garganta seca, o abdome contraído. Voltou os olhos para a parede.
E ela baixou o olhar. Baixou-os na percepção agudíssima do sofrimento daquele homem. Manter o equilíbrio do mundo, a tarefa gigantesca. Durante algum tempo tentou conversar com ele. Depois ofereceu-lhe água e uns comprimidos. Tinha que tentar, embora soubesse pela experiência, ser tão pequena a probabilidade de que ele os aceitasse.
Nada. Ele conhecia os comprimidos, pensava que o que se estava passando não seria resolvido por remédio algum. Não queria comprimidos, água, nada. Nem respondia mais, imóvel.
Saiu da sala com a clareza do que estava acontecendo e dirigiu-se aos pais. Vamos chamar uma ambulância, ele está sem tomar medicação há muito tempo e a situação tem-se agravado. A recusa de tratamento só piora tudo, e não creio que ele vá sair dali a não ser num desmaio de exuastão, aí tudo será mais difícil ainda. Vai ser necessário interná-lo. Ele não vai mesmo arredar o pé. Seus motivos são demasiado importantes, o mundo depende dele ! Se esperarmos mais, a situação se complica do ponto de vista físico também.
Voltou à sala.
João, ficarei aqui com você algum tempo, mesmo que você não queira falar. Ele se manteve calado. Uma companhia, sem exigências, ao menos isso.
A remoção pela força. Ela, que compreendera a importância de tudo para ele, sentia-se dividida, solidária e traidora. Angustiada.
Mas não se pode ser cúmplice da morte de um homem.
Meia hora depois batiam à porta os enfermeiros da ambulância.
Silvia Chueire
14 março 2006
No meio do mundo
Marcadores: Sílvia Chueire, vária
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6 comentários:
O peso do Mundo...sentir que o mundo depende de si, apenas de si...deve ser insuportável...
Apenas um Ser Superior poderia suportar tal fardo...
Sílvia,
Fiquei presa ao seu texto. Impressionante.
Um abraço
Fortissimo testemunho Silvia! Belissima narrativa!
Finalmente vc solta aqui a sua prosa e mais das suas vivencias :)!
(Vou passar a minha filha, claro...)
Passeando peos mitos gregos?
well done, Silvia.
Clap, clap, clap! Uma história tão bem contada!
Me agrada que eu tenha conseguido passar no texto o sentimento dos dois neste tipo de situação.O drama, o impasse.
É raro que as pessoas consigam entender a importância para o sujeito, do que ele vê, sente, ou pensa que vê e sente, o que dá no mesmo. E também as soluções que se tem que tomar, e que nem sempre são as melhores, mas as possíveis.
Sempre passeamos pelos gregos,MCR.
Abraços,
Silvia
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