23 março 2006

O gesto longo de um beijo

Não, não vale a pena olhares-me nos olhos, que os olhos estão baços, inexpressivos, como os gestos, comedidos, e nem o sorriso me trai, aprendi a torná-lo inútil, que ele era traiçoeiro e tantas vezes me traíu. Talvez só as mãos me denunciem, porque ficam a mais no teatro e os bolsos são curtos e estão sempre cheios de papéis e eu tenho de colocar as mãos sobre a mesa, para que não vejas que tremem. E tu pensas que tremem por causa daquilo que exorbito, mas não é, não, não é, é por ti. É por ti.
Claro que ando preocupado. Tu sabes que sim, que eu digo as coisas, com um mimo de menino que não esconde o mimo. Preocupado, cansado e farto. Sobretudo pensativo. Sobretudo cansado. E farto. Já mostrei tantas vezes a ideia de que me apetece mudar de vida, mas sei que já não tenho vida para mudar, que o tempo é outro e eu já não tenho coragem e a minha vida é esta, esta, de aguentar os que querem que eu faça milagres que eu não faço. Nem sei (será que ainda quero?) fazer milagres.
Não. Nenhum desses milagres poderá salvar-me. O que poderia salvar-me era o gesto longo de um beijo, assim, como se fosse acaso o que nunca é acaso, e a tua voz calma a dizer-me que eu tenho lábios de bébé - quem me disse isto, que já não sei?
Vejo-te. De costas voltadas, no teu teclar silencioso. Como se fosse aqui, enquanto escrevo.

3 comentários:

Silvia Chueire disse...

Novamente, carteiro ! Parabéns...

Abraços,
Silvia

M.C.R. disse...

Carteiro d'uma cana!...
Deixei-lhe uma longa resposta no postal do Rui do Carmo. acho que, sem querer, ele fala consigo, sobre isto que escreve. De todo o modo voltarei aqui.

M.C.R. disse...

Afinal é no post do Delfim com o infante D Henrique...Eu ando tontinho de todo.