A política cultural
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Por razões que se prendem com o centralismo napoleónico que, desde Mousinho da Silveira informa o sistema político (agravado, como se sabe, durante a 2ª República - 1933-1974) e, com ele, a organização social portuguesa, tem Portugal fama (e o proveito) de ser um país em que a sociedade civil é anémica, amorfa e dependente, enquadrada, arregimentada e limitada por um Estado omnipotente que se arroga de todos os poderes, baliza todas as actividades e arbitra como juiz e como parte todas as situações.
O campo da cultura não é excepção neste panorama bem pelo contrário. Julgo poder afirmar que será aqui que o dirigismo vai mais longe tocando as raias de um stalinismo "soft".
A intervenção dos cidadãos acaba por ser desestimulada pela normal solicitação de fundos, de conselhos, de patrocínios aos poderes públicos. O teatro independente sê-lo-á de tudo excepto de subsídios; as galerias (comerciais) de arte mendigam ajudas de custo para ir a Madrid mostrar e vender os seus artistas exclusivos. Estes queixam-se de que os museus estatais não lhes compram, em número suficiente, as obras que criam. Os músicos aceitam com brio allegro vivace que o Estado seja seu empresário. Os escritores através das suas associações de classe (subsidiadas) ganham prémios (subsidiados) e reclamam para as suas editoras o patrocínio do IPLL. Os cineastas não encontram melhor produtor do que o Estado via IPC. Os exibidores acham natural que seja o Estado um dos comparticipantes no reequipamento das salas enquanto os espectadores se julgam com direito a que, para certos espectáculos, o Estado intervenha, pagando, boa parte dos cachets dos artistas a fim de o bilhete de entrada custar menos uns escudos.
A primeira coisa que um agente cultural entende dever fazer quando se lembra de organizar um seminário sobre a influência dos Vândalos na organização da justiça medieval é pedir ao Estado um subsídio para a investigação, para a realização ou para publicar as actas.
Até o corso carnavalesco de Viana do Castelo tem direito a uma fatia do orçamento.
O Estado todo lo manda. É o anfitrião ao fundo da longa mesa onde se sentam, famintos e respeitosos, nove milhões de súbditos.
Paternalmente aconselha-os a enrolar o guardanapo ao pescoço, a sorver a sopa sem ruído e ensina-lhes as diferenças entre o garfo do peixe e o da carne. Os súbditos atiram bolinhas de pão uns aos outros, queixam-se da má qualidade do bife e sonham com queijo da "Serra" em vez de "Castelões". Esqueceram-se de crescer, montar casa e fazer vida nova. Também se o quisessem não o poderiam fazer sem canseiras e dificuldades de toda a ordem.
Porque o Estado, poderoso e longínquo, habituou-se a mandar sozinho na casa imensa, e criou leis, decretos, portarias, circulares, regulamentos, institutos, inspecções, funcionários e castigos. Tantos e tão diversos que também já não vive ou supõe não poder viver sem eles. Como Urano devora diariamente os filhos, como Júpiter fá-los em qualquer fêmea que lhe passa ao alcance.
Por isso o Estado é forte: come futuros cidadãos. Mas, por isso também, é fraco pois é bem sabido que os súbditos têm menos proteínas e sais minerais que o cidadão adulto e livre.
Só que a vida deu voltas e o Estado viu-se subitamente confrontado com vizinhos notoriamente menos gordos mas claramente mais musculados. A árvore que parecia imensa graças às trepadeiras descobriu que estas lhe impedem o natural crescimento. E pensa em cortá-las. Ou, por outros termos, em descentralizar, em criar à sua volta um rico manto de flores e de sub-bosque que, pela lei natural da vida, nascerá, crescerá e morrerá transformando-se em bom húmus que alimente as raízes e que sirva de viático para as sementes que deita
Confronta-se, pois, agora, o Estado ( e isto não é já uma imagem) com a necessidade de estimular e desenvolver a autonomia local e por isso transformar os súbditos em cidadãos que o ajudem, que, reclamando, o fortaleçam que, trabalhando livremente, o tornem digno dos seus parceiros pela invenção, pela criatividade, pela cultura e pelo saber.
A política cultural "tout court" viu-se nua, pobre e, com as "índias todas descobertas",precisa de estimulos periféricos, de acontecimentos diferentes, de polémica sadia.
Os seus responsaveis apelam para um esforço dos utentes, para a participação destes a fim de "des-academizar", no possível, a criação e a vida culturais.
O pequeno texto que segue tenta responder só às primeiras e tímidas questões. … pouco caminho mas é caminho. A questão não é discuti-lo mas apenas saber se se quer andar ou ficar parado.
Se for entendido como um panfleto que seja, ao menos, subversivo.
O dr. Cabral Mendes exumou um cartaz (fraquinho, fraquinho) de Almada para ilustrar um texto de José Medeiros Ferreira sobre o actual momento por que passa a Administração. Tem toda a razão quando defende que o Estado não se pode demitir de deveres básicos que aliás apenas o justificam. Todavia, convém perguntar: Como é que se chegou aqui?
Este meu texto tem barbas brancas, branquíssimas, mesmo, e tentava em finais de oitenta introduzir (como agora se diz) uma discussão sobre a política cultural e, mais amplamente, sobre o modo como os portugueses viam o Estado. Só que convem prevenir que uma defesa de mais cidadania activa não tem de conduzir ao ultra-liberalismo que se vai adivinhando da errática viagem do actual governo no mundo das propostas de organização da administração central e local.
o texto que "se segue" não consta aqui por razões de economia e porque só se pretendeu usar a introdução. a ver se começando por discutir esta se chega a outras e melhores conclusões. Todavia, em qualquer altura poderá aparecer se assim se entender conveniente. Trata apenas, de resto de um par de propostas feitas em finais de oitenta para guião de uma "política cultural das autarquias locais".
d'Oliveira
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