05 abril 2006

Au bonheur des Dames nº 22

Louvor e simplificação da editora Centelha
que não incendiou a pradaria
mas aqueceu o espírito e o coração de uma geração generosa

Em 1970 e em mês que não posso precisar saiu para as livrarias uma edição (a 2ª, de facto) de “O Canto e as Armas” de Manuel Alegre. Como emblema da editora, uma árvore com forte raiz. Era o primeiro número da colecção “poesia nosso tempo” e custava, julgo, entre quinze e vinte escudos. Pouco tempo depois sairia o primeiro livro “político”: “Greve de massas, partido e sindicatos” de Rosa Luxemburgo. Estava dado o mote e demonstrada a perspectiva dos fundadores da Centelha. À esquerda, sem complexos, pais fundadores (Marx ou Lenine) e heterodoxos, Luxemburgo, Pannekoeck ou Korsch. Logo em 73 sairia o primeiro texto jurídico ( A teoria geral do direito e o marxismo” de Pasukanis e anunciava-se já “Direito e luta de classes” de Stucka). Na mesma altura, sempre antes do 25 de Abril, publicar-se-ia o primeiro texto de ficção “Hon dat” de Anh Duc um guerrilheiro do Vietname.

Eravamo cosi negli anni sèttanta!

Como fundadores da Centelha, uma boa parte dos quadros aparecidos durante as lutas académicas na Universidade de Coimbra, incluindo veteranos da greve de 62 até à geração de 69. Por brincadeira chamavam ao seu grupo o “conge” de congeminação. Gente que se reunia em repúblicas estudantis e que tentava esforçadamente sair do quadro dos partidos tradicionais (?!) isto é do PC, das dissidências esquerdistas e, depois, do recentemente refundado PS. O conge reuniu-se clandestinamente até 74, data em que na sua grande maioria entrou no MES. Mesmo aí não se diluiu totalmente, claro. Ou pelo menos as suas duas principais secções Coimbra e Porto. Como vinculo de união a editora, coordenada primeiro por João Bilhau e depois por Alfredo Soveral Martins, ambos já desaparecidos. De todo o modo, convém insistir no termo “coordenação”. Os conges eram bravios e pouco dados a ser dirigidos. Vinham curtidos por muitas lutas, pela cadeia, pelas greves e pela resistência. E pelo idealismo, convém acrescentar. Os sócios da Centelha eram sócios de uma cooperativa iluminista que pretendia muito simplesmente dar aos camaradas (permitam-me este termo de tão grande conotação pescadora: os tripulantes duma embarcação de pesca são “camaradas” dirigidos por um mestre, um contramestre e às vezes um xalandreiro) de percurso político e geracional, instrumentos para a compreensão do mundo em que viviam e respondiam a algo que não resisto a contar.
Depois da greve de 69, estava eu na biblioteca da associação académica quando entrou um estudante de ciências que eu conhecia. Andaria aí pelo 2º ou 3º ano, não recordo e tinha um vozeirão. Aproximou-se e disparou à queima roupa: “eu queria ler qualquer coisa dum tal Carlos Marx. Parece que assim compreenderei melhor a greve que fizemos.” Garanto a total veracidade desta história. Que será feito dele? Espero que tudo lhe vá correndo bem que para desilusões bem bastam as que a vida nos tem dado.
Ao longo dos anos a Centelha terá publicado mais de duzentos títulos, a preços que desafiavam qualquer concorrência e que a levaram ao naufrágio. Publicou um grande numero de livros de poesia e tenho por mim que a lista destes títulos é das melhores que qualquer editora se pode orgulhar. Publicou além deste um inumerável quantidade de textos políticos (o momento mais alto terá sido a publicação do 1º volume do “Capital” na tradução de Vital Moreira) que foram sistematicamente postos “fora do mercado” piedoso termo para proibição. Claro que, como sabíamos isso, tínhamos montado redes de distribuição militante que salvavam a quase totalidade da edição. Era uma aventura exaltante, empolgante e solidária.
Durante anos, o Alfredo Soveral Martins bombardeou amigos e associados para a compra de acções de modo a manter a editora de pé. Mas os tempos tinham mudado. Apesar de se ter inflectido a linha editorial (colecções novas como a de títulos de música) continuava a faltar o capital mínimo que nos permitiria pagar dívidas antigas e recomeçar num patamar financeiro mais são. A sua morte, já nos anos noventa, pôs um doloroso ponto final numa aventura editorial que reuniu mais de duzentas pessoas que ofereceram trabalho, traduções ou textos próprios. Como de costume nesse lote estavam o Anto, com o livro de poemas “País Esquecido” e o Manel Simas tradutor do “ABC do Comunismo” de Bukarine e Préobajensky.

Num momento em que o mercado é inundado por um sem número de novas editoras, quis relembrar esta aventura não para dissuadir quem quer que seja dessa tarefa de editar mas tão só para, recordando velhos camaradas, dar as boas vindas aos novos que chegam à aventura de ajudar a nascer um novo texto.

Obviamente vai para a Kami.

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