20 abril 2006

Diário político 19

A 24 de Abril de 74 éramos assim

É com algum pudor que venho hoje aqui. Porque isto poderá ser entendido pelo que não é nem quer ser: um auto-elogio, um pôr-se em bicos de pés, a gritar muito, e esganiçadamente, “também eu, também eu!
Todavia calhou ser assim. Não fiz nada por isso, ou, melhor, só fiz o que tinha de fazer. I were in the right place at the right moment.
Portanto, senhoras passageiras, apaguem o cigarro, apertem o cinto que aí vai disto: o comandante d’Oliveira & Amigos desejam-vos uma viajem aprazível por dois meses alucinantes do ano da graça de MCMLXXIV.
Em 74, este vosso criado praticava de advogado na invicta cidade do Porto. Compartilhava a sua triste sorte um grupo de colegas da mesma fornada coimbrã, a saber António Lopes Dias, Maria Fernanda da Bernarda, Isabel Pinto e José Afonso. Todos a dar duro na advocacia sindical, na pequena advocacia que estávamos em começo de carreira e na defesa de presos políticos. Éramos jovens, buliçosos e o sangue, excessivo e vermelho, fervia-nos nas veias. Reuníamo-nos em casa uns dos outros, conspirávamos tanto quanto podíamos, e com uma série de amigos vindos quase todos de Coimbra (professores, médicos e engenheiros) tomávamos a bica no Piolho, fazíamos jantaradas enormes e baratas no Tripeiro e dizíamos mal do governo. Vários dos nossos companheiros estavam na tropa. Muitos em África e alguns por cá a acabar Mafra ou na primeira recruta antes da partida inexorável. Entre eles, o Zé Afonso, colocado no CICAP juntamente com o Manuel Simas Santos, enquanto o Arménio Sotto Maior, servia no quartel General. E havia mais espalhados por diferentes unidades do Norte, à espera de ir para África ou de, chegado o momento, desertar.
O Zé Afonso, logo que a tropa fechava aparecia pelo nosso escritório para trabalhar um pouco e contar as últimas. Até que um dia...
Um dia, princípios de Março ou ainda fins de Fevereiro, o Zé, anafado e risonho, confidenciou à malta que algo se preparava. Que em Lamego “estava tudo sobre rodas” (sic). A Isabel guinchava, a Fernanda saltava e eu nem se fala. Aquelas reuniões fim de tarde prolongavam-se noite fora em casa da Fernanda e do Zé (Ferraz) com a Joana. Ou em minha casa com a João e a Teresa Feijó. Ou no Marco com a Isabel e o Jorge Baldaia. Ou em casa do Manel Strecht Monteiro e da Lionida. Enfim, andávamos a meio metro do chão, levitantes, sorridentes, a rebentar de esperança, de vida, de juventude. “Agora é que é”, dizíamos. E as actividades conspiratórias paralelas redobravam. Era a edição e venda clandestina de livros proibidos. Eram as “passagens de fronteira” com desertores e emigrados políticos, onde se distinguia, corajosa e lindíssima, a Laurinda Alves, na altura namorada do Manuel Simas que, enquanto estivera de delegado do procurador da república em Melgaço organizara uma verdadeira porta de saída com a ajuda do Zé Ataíde e do Zé Teixeira Gomes, cuja mulher, uma brasileira, doida varrida, animava as hostes estudantis nas lutas académicas portuenses. Estávamos vivos, carago!
O dezasseis de Março falhou, como se sabe, mas nós nem por isso desanimámos. O simples facto de haver uma coluna militar em marcha dizia muito do estado das coisas. Ai não foi desta? Fica para a próxima. E salta uma imperial para a mesa do canto! Fresquíssima, que isto está a aquecer!
Entretanto, e disso já não tenho a data precisa, de outros lados, chegavam notícias, propostas, pedidos de ajuda. Uma vez, se calhar ainda em 73, fui do Porto a Évora a pedido do Zé Baldaia, para um encontro com um tropa “porreiro”. À cautela, logo que cheguei, fui almoçar lautamente ao Fialho. Não era por nada mas a coisa cheirava a esturro e, burro velho, achei que se “fosse dentro” era preferível ir bem comido e bem bebido. O oficial “porreiro” era o Dinis de Almeida que me fez um sermão de loucura numa sala lindíssima e vazia da messe de oficiais. Vazia, não, que num canto, esgazeada e encolhida de pavor, uma senhora ouvia tudo com olhos redondos. Terá tido tanto medo, que nem se atreveu a denunciar-nos. Estão a ver o clima?
Passado o 16 de Março, continuou a dança e contradança de boatos, segredos, reuniões, um carnaval! Até que entrou Abril de esperanças mil. O Zé tão gordinho como antes, tão secreto como sempre e tão conspirativo como sabia, veio com nova história: agora é que sim! E zás toma lá um papel de um tal “movimento das forças armadas” a pedir já não sei o quê. Os levitantes passaram a um estádio superior de luta: já andávamos a um metro do solo. A coisa começou a adquirir foros de sério, quando o impagável Zé me convocou sigilosamente e me atribuiu uma tarefa, UMA TAREFA!!!
Reunir tantos carros quantos pudesse, com os respectivos condutores para, em caso de azar, rumarem directos à fronteira com os revolucionários em fuga. Em pouco tempo, estavam mobilizados sete ou oito carros. Outros amigos (e AMIGAS, não as esqueçamos!) organizavam redes idênticas. Redobrámos as reuniões e as precauções. Distribuíamos tarefas, senhas, conselhos e esperança. Havia mesmo um projecto louco de guardar um general preso numa casa de banho interior da casa da Fernanda, que não morreria de sede nem de caganeira, dizia o Zé Ferraz, pronto a hospedar o Alto Comando todo se necessário fosse. Construção boa, de alta qualidade, casa nova e poucos vizinhos, entrada directa pela garagem e por um elevador de serviço. Olá Fernanda! Deus te salve, rosa, pastorinha de Bensafrim , aliás de Alcobaça.
A poucos dias (dois, três) do dia D, o Zé informou-nos das senhas, dos discos a passar na rádio, enfim do que vocês sabem todos. Esqueceu-se porém de nos dizer (ou nós nem nos lembrámos) que a senha a passar nos Emissores Reunidos de Lisboa (acho que era assim que se chamavam) não poderia ser ouvida no Porto.
Na noite de 24 a Teresa foi dormir lá a casa. O meu sogro, que já vira muitas, e que em matéria de conspiração tinha curso superior com mestrado e doutoramento, preveniu, placidamente que ia dormir e que só o deveríamos acordar no caso de ser preciso meter-se no carro para levar gente para a fronteira. A mulher do Rui Feijó declarou que estava farta de falsos alarmes e que não acreditava que fosse desta. Se, por acaso, fosse, que a acordassem. O Rui Feijó, roía-se todo e, se o deixassem, também iria dormir lá para casa. Ficou a velar lendo um livro qualquer de que não recorda uma única palavra. Entretanto a João e a Teresa caíram na cama e foi um ar que lhes deu. Adormeceram, num ápice. Eu deitei-me vestido à espera do primeiro sinal, o tal dos emissores de Lisboa. Nada! Se pensam que desanimei, tirem o cavalo da chuva. Atribuí a falta de notícias radiofónicas a
1 à minha inépcia em manobrar um rádio
2 ao proverbial atraso lusitano
Mas quem se deita vestido, de ouvido colado a um rádio, acaba por adormecer. E assim foi. Ou melhor: foi assim durante pouco tempo pois acordei sobressaltado com um comunicado militar ou com a Grândola já nem me lembro. Já está! – uivei. A Teresa e a João saltaram de vale de lençóis em trajes menos que menores. Num ápice liguei para a Fernanda. Interrompido. Bom sinal. Para mais dois ou três compinchas: interrompido! Para o Rui Feijó que achava que estava tudo perdido. Sem razão, mas o Rui é a pessoa mais pessimista que conheço.
E agora que fazer? Aguentámos uma hora ou duas e aí pelas cinco e meia da madrugada, no valente mini da João aí fomos os quatro. Eu ao volante, o Rui de navegador e as duas criaturas femininas em polvorosa, lá atrás prometendo sangue, suplícios horríveis à pide e fumando que nem duas cossacas. Primeiro passo: rondar os quartéis. Cicap: tudo fechado mas todas as janelas iluminadas. Caçadores, idem. Quartel General, mais do mesmo. As esquadras de polícia sem movimento, a GNR na mesma. As ruas desertas. E nós na ronda. Pelas sete da manhã encontrámos um café aberto. Pouca gente, mas umas caras conhecidas. A mulher de um sindicalista da “ferrugem” que cheirava a comunista à légua, disse-me: Ai se ao menos libertassem os presos políticos... - É para já, respondi-lhe com a segurança dos optimistas. Cafés tomados, ala que se faz tarde para a estrada. Primeira verificação: Miramar, rádio clube. Finalmente uns tropas de arma em riste. A nossa altura de levitação passou para os três metros e meio. O mini parecia um helicóptero... Eu não sei dizer quantos quilómetros fizemos, tanto mais que não podíamos alargar muito a ronda não fosse dar-se o caso de sermos necessários para a eventual fuga. De meia em meia hora, passávamos pelas casas respectivas onde já toda a gente estava acordada e nervosa agarrada a rádios mudos como carpas. Ao meio dia depositei a minha tripulação e fui para baixa. Em Filipa de Lencastre três ou quatro estudantes tentavam lapidar um polícia assustado. Confesso que me regozijei mas movido por uma antiga piedade cristã, interpus-me e salvei o “agente da repressão da justa ira popular”. Com os mesmos estudantes e um par de populares fomos apedrejar o consulado da África do Sul. Cumprida esta patriótica tarefa, despedi-me dos lapidadores e fui até ao escritório do meu antigo patrono Dr. Sá Carneiro Figueiredo a quem forneci detalhada informação sobre a revolução em curso. Doido de alegria, o velho senhor, convidou-me para lanchar mas antes assisti a esta espantosa conversa telefónica com um seu jovem primo que se chamava Francisco Sá Carneiro. E dizia o velho grande advogado: “Oiça bem, Francisco! A partir de agora, o menino é só política. Ouviu? Só política!”
O que de facto veio a suceder. Estão ambos mortos mas recordo-os, mesmo ao Francisco, adversário político e bom companheiro de tantos lanches, com alguma ternura.
Não tive de levar ninguém à fronteira. Nunca mais. Não pude ser herói. Que se lixe a taça! Gozei como um cabinda essas loucas semanas que se seguiram, não perdi pitada, não dormi, recebi em alvoroço todos os exilados que chegavam, o meu irmão incluído. O meu irmão que eu e o Manel tínhamos levado fronteira fora até Santiago.
Foi porreira a festa pá.

Vosso, sempre,
d'Oliveira

Este texto, acabado de sair do Ibook G4 só deveria ver a luz do éter em vésperas de 25. Todavia, sabendo eu , ahimé!, do que a casa gasta, mal o apanhei pronto a servir, ala que se faz tarde. não vá o diabo tecê-las, que eu, nisto de blogues, sou um azelha diplomado. Gostaria de dedicar este textinho aos companheiros deste blog que tão fidalgamente me receberam. É pouco mas vai cheio de boa vontade. Viva o 25 A!

6 comentários:

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Obrigado por este magnífico e emocionante relato. E folgo em saber que tem amizades antigas lá pelo Marco.

o sibilo da serpente disse...

Belo relato, sim senhor! E quando estiver com a nossa colega Isabel Pinto numa das minhas muitas idas ao Marco - o Jorge Baldaia vejo menos - não esquecerei de lhe indicar o texto.

josé disse...

Mas que epopeia! Em 74, tinha 17 anos. Lembro-me bem do dia e da vontade que tive em ser mais crescido e poder andar na tropa, nesse dia, para poder andar na confusão. Só nesse dia!
Em resultado da frustração de estar longe do centro dos acontecimentos e não poder participar "na festa, pá!", ouvi rádio todo o dia ( RCP), pois a tv era um atraso de vida e só à noite havia algum interesse em acompanhar o telejornal "especial". Comprei todos os jornais que podia; todas as revistas que sairam a seguir. Foi um inferno esperar pelo Século Ilustrado e pela Flama, na semana seguinte, mas ainda as tenho. COmo tenho o República, O Século ( julgo) e outros jornais, desses dias incríveis.

Tiro naturalmente o meu chapéu a quem participou directamente, na coisa.
Pena que a festa se estragasse tanto, depois disso.

C.M. disse...

Faço minhas as palavras do José: primeiro parágrafo e último.

M.C.R. disse...

Agradeço penhorado os comentários recomendando ao colega Nicodemos uma urgente publicação do texto prometido.

No que toca ao Dr rii do Carmo devo dizer que sempre me espanatou o modo desenvolto como as organizações políticas anti-establishment adoptam a repressão deste. coneço aliás dois casos de violência: um na OCMLP de cárcere privado, cá no norte. Outro de conqwuistra de um comité central de pistola em punho (julgo que era o grupo PCde P ml (o do castelo de Guimarães).
convenhamos que estas situações configuravam a doença infantil no esquerdismo português muito alimentado a livrinho vermelho e menos a Marx ou Engels.
eu bem sei que os tempos que então se viviam não eram propícios á formação de intelectuais revolucionários mas apenas á agit-prop. Mesmo assim...
O leitor José(secundado por Cabral Mendes) fala de "festa estragada" depois. Ora vejamos: conhece alguma revolução que não tenha devorado os seus melhores filhos?
A mim o que me espanta é que a revolução tenha causado tão poucas vítimas. E convem não esquecer que ao terror revolucionário se opõs um outro com igual cariz violento e com uma boa parte das vítimas por sua conta.
Acho que era Napoleão quem dizia que nas revoluções há dois tipos de pessoas: os que as fazem e os que se aproveitam. Sendo verdade que a história se faz em períodos longos podemos hioje ver quem são os segundos.
Finalmente, vejo com alguma inveja que guardou todos os jornais e revistas desses dias. Temo bem ter perdido alguns desses documentos. Mas o ponto é: V. de algo terá gostado e fortemente para ainda hoje ter esses testemunhos.

josé disse...

Meu caro d´oliveira:

Gostei do dia e da semana a seguir!

Logo que comecei a ver comunicados do MDP-CDE( que ainda tenho) a convocar pessoas para manifestações em apoio ao Movimento Democrático dos Capitães, franzi o sobrolho, mesmo com 17 anos.
Julgo que não penso hoje de modo muito diferente do que pensava então. Politicamente, quero dizer.

Mas como vêm aí dias propícios pode ser que esta discussão pegue...