A tia Néné devoradora de bibliotecas
Já por aqui terei mencionado uma tia aventureira a que em momentos difíceis (e não foram escassos) recorremos, nós os sobrinhos mais velhos. Faz hoje, 17 de Abril, setenta e nove anos mas como ela, ultimamente aboliu os aniversários, vamos fazer de conta que hoje apenas celebramos o 37º aniversário do desencadeamento da crise de 1969 em Coimbra. E boa arruaça foi essa a daquela manhã primaveril em que uns milhares de estudantes disseram ao Governo, às autoridades académicas e ao Presidente da República, um rosário de verdades que terá indispostos Suas Excelências. Justamente desgostadas com a atitude impatriótica inconveniente dos jovens energúmenos, as Ilustres Personalidades entenderam, em seu alto critério, entregá-los ao braço secular ou seja à PIDE e restantes polícias. A partir desse funesto momento, a Academia coimbrã num arroubo de má fé e subversão bolchevista declarou-se em greve. Os exames tiveram fraquíssima assistência, as autoridades policiais distribuíram farta dose de chanfalhada na juventude contestatária sempre que esta saía à rua, houve mais de duzentas prisões, e um número indeterminado mas elevado de estudantes foram prestamente chamados a Mafra para o curso de oficiais milicianos a fim de malharem com o costado prevaricador em África, na guerra colonial. A Academia não esmoreceu. O Governo entendeu então substituir o Ministro da Educação, o Reitor, e reenviar os cadetes de Mafra para as suas faculdades. Concluía-se assim a única greve estudantil vitoriosa durante o Estado Novo. E também aquela que maior adesão registou. Quer de estudantes quer de simpatizantes na cidade. A chamada geração de 69 ainda hoje se ri e se comove com esta luta de um inteiro ano. Para muitos, senão para todos, ficou na memória um aroma persistente de liberdade e fraternidade a que nem sequer as desilusões de tantos anos conseguiram retirar frescura.
De facto a tia Néné tinha de nascer num dia assim. Ela não faz anos, claro, que já se deixou disso, mas a verdade é que no dia de não anos, a rapaziada (e nesta havia este sobrinho, a respectiva mulher, filhos de vários amigos) que a conhece vê-a num piquete de greve, magra, olhos imensos, e uma vontade de ferro, a arengar às massas. Ela não estava lá fisicamente mas, tenho por certo, que in imo pectore terá feita muitas e frescas durante aqueles meses de paixão e rosas.
Mas, as leitoras, e um certo leitor Ferreira que quer notícias literárias do Lobo Antunes, não se espantem: esta “tia prodigiosa” está aqui muito bem. Nas duas vertentes: leitora e libertária.
De facto, contam as sagas familiares que era ela mínima, ainda em S.Tomé onde o avô Manuel, oficial do exército, cumpria uma comissão militar, distinguiu-se como o único elemento feminino de um bando de pequeníssimos malfeitores em idade pré escolar que não contentes de fugirem numa piroga podre para o mar infestado de tubarões (pobres tubarões, terá dito o capitão do Porto, pai de dois cúmplices da tia) entenderam despojar um comboio de todos os seus belos reposteiros vermelhos para com estes adornarem uma caverna ou uma cabana não sei bem que era, o “covil dos piratas”. As autoridades andaram e andaram atrás do audacioso grupo, terão prendido os soli ignoti mas só ao fim de um par de dias deram com o gang juvenil. Em boa hora o fizeram porque é convicção minha que a Tia Néné sonharia nesses anos longínquos com um futuro á Al Capone ou à Capitão Morgan, o que era, para a época, um grande avanço nas teses feministas de que a filha única muito se orgulha. Mas não é a esta história gloriosa de um falhado destino presidiário que venho.
É que esta Tia, anos mais tarde, em plena adolescência foi com a restante família para a Figueira da Foz. A casa onde se instalaram, à rua das Parreiras era a poucos metros da Biblioteca Municipal. Ao cheiro irresistível dos livros a Tia Néné tornou-se frequentadora diária da Biblioteca e possuída de uma insaciável paixão literária foi lendo, estante a estante a existência ficcional da aliás excelente Biblioteca Municipal Manuel Fernandes Tomás. Estou a vê-la, ou imaginá-la, magrinha, tranças pretas e olho vivo a escavar aquela mina de aventuras, de romance, de violência e de paixão. Mas não há bem que sempre dure sobretudo se alguém está possuído pelo espírito temível da leitura.
A Biblioteca era abastecida de novidades de longe em longe mas a tia Néné tinha a persistência da formiga vermelha. E a mesma velocidade. E o mesmo apetite. Chegou assim o dia terrível em que o bibliotecário Senhor Santos lhe disse branda mas definitivamente que ela já tinha lido tudo o que havia para ler, á excepção de tratados de horticultura, dicionários e enciclopédias.
A tia Néné viu-se obrigada a moderar a sua dose e a arranjar outra actividade compensatória. Entretanto os dois primeiros sobrinhos (o meu delinquente irmão e eu próprio) iam crescendo em graça e formosura e alimentados a histórias fantásticas contadas por uma avó de ilimitada imaginação e memória. Parece que algumas delas lhe teriam sido contadas por uma criada negra, lá nos confins do sertão angolano. Dessas histórias só recordo uma com as aventuras de um gigante muito mau chamado “Olharapo”. Anos, muitos anos depois, descobri que o “Olharapo” era o Polifemo homérico. Estão a ver? Como é que eu não havia de ter estas manias se de todos os lados me chovia livros e histórias deste calibre?
Já por aqui contei que quando comecei a ler baixo, a família rejubilou pelo silêncio reencontrado. A Tia Néné ter-se-á juntado à missa laica de acção de graças por esta nossa vitória e resolveu celebrar esta nossa manumissão da leitura em voz alta com um presente digno de reis.
Teria eu nove anos no máximo e, pela mão segura e admirável da Tia Néné dei entrada na Biblioteca Municipal Manuel Fernandes Tomás. Aí conheci o senhor Santos e os seus dois ajudantes: a filha e o genro, ambos surdos-mudos, qualidade muito consonante com o silêncio normalmente imposto nas bibliotecas. Um mundo novo abria-se perante o menino de calções. Um paraíso que ainda hoje, tantos anos, tanto mar, tanto amor, me faz sonhar.
Tenho nesta casa onde agora escrevo, cerca de quinze mil volumes (um pouco mais para falar verdade). Espero, quando o meu dia chegar, que os meus herdeiros –se os livros lhes disserem pouco – me façam esta última e única vontade: mandem-nos para a Biblioteca da Figueira para que uma outra Tia Néné e uns outros sobrinhos rabinos e leitores possam dar vazão à sua sede de aventura.
Reparo agora que não falei de nenhum livro. Que isso não seja por mal. Saiu há dias um livro com o sugestivo título “Os Vencidos da Vida”. Quem por ele for á procura de um ensaio sobre essa geração brilhantíssima, que tire o cavalo da chuva. O livro é uma má e pobre antologia de textos ultra-conhecidos (os melhores) ou pouco expressivos (os restantes). Sem um enquadramento sem umas notas sem nada. Tempo e dinheiro perdidos. Assim não vale a pena. E é um truque baixo. Por vezes um leitor é penitente!
8 comentários:
Peço desculpa que, com a pressa, enganei-me na escrita; aqui vai de novo:
JÁ SEI A QUEM ESTE (SOBRINHO) SAI!!!
Pergunta impertinente: será que o meu amigo não tem aí umas edições antigas do Marcello Caetano? Não é por nada...
Ainda em tempo: até estou a cair da cadeira: mais de 15 mil volumes!!!
MCR está para os livros como o MRS (para quem não esteja a "ver"...: Marcelo Rebelo de Sousa: este "camarada" aposta na Biblioteca do Marco...creio que é o Marco de Canavezes )
Afinal, que livros tenho eu?! Nenhuns...
Infelizmente,o Prof. Marcelo doou os livros à Biblioteca de Celorico de Basto e não à de Marco de Canaveses. Aliás, a Biblioteca de Celorico tem o nome do professor.
Caramba! 15 mil livros é muita obra!
Ah meu caro, tem razão: é então Celorico! Ora bolas...
A propósito, há um alfarrabista que costuma ir à Faculdade de Direito vender, no átrio, umas raridades...lembro-me que há cerca de dois anos, creio o MRS comprou-lhe para aí uns 15 CAIXOTES (!!!) tudo de DIREITO ADMINISTRATIVO!!! bem, a carteira dele não é como a minha...ai ai
Novamente e sempre a delícia de ler as suas histórias MCR ! E com certeza teria adorado conversar com a Tia Nené.
Abraço,
Silvia
Querida Sílvia: basta mandar um mail para mariamviana@sapo.pt (é a filha da tia aventureira....) e esta receberá as suas carinhosas palavras.
Caros contertúlios: 15.435 livros registados (cerca de 700 roubados, confiscados ou com paradeiro incerto) não significam 15.000 lidos! há os dicionários e serão umas dezenas, as enciclopédias, os livros de referência e muitos outros que se irão consultando ou revendo á medida da necessidade ou do prazer.
Os leitores cumpulsivos são assim: têm por força de ter aquele livro já. Imediatamente. Ontem!!!
À conta disso (e de alguns discos e de alguns quadros sou um sexagenaério teso como um carapau. Mas que querem? nasci para isto.
Caro Cabral Mendes. do Caetano, nada. Todavia andam por aqui alguns livros de direito de que darei notícia e que já só interessam a estudiosos.
Ficamos à espera...ahahah...
Enviar um comentário