06 maio 2006

ad usum Delphini 3

De minimis non curat praetor

O meu prezado amigo DLM fez o favor de me tentar consolar porque, num blogue dos muitos que por aí andam, um par de cavalheiros entendeu que a minha prosa era reaccionária ou colonialista, ou ambas as coisas. E o DLM, amicus certus in re incerta, pumba: fogo á peça sobre os filisteus. Que os cavalheiros eram hipócritas, invejosos, ignorantes insultuosos, enfim um rosário de pecados que os afundaria na mais pura ignomínia.
Ora bem, caro DLM, as coisas não são bem assim. Que as criaturas, coitadas, sejam ignorantes, transijo sem dificuldade. Basta lê-las ainda que eu, laico e esquerdista, não leve a minha sanha ao ponto de obrigar os nossos leitores a tão doloroso sacrifício.
Já hipócritas e invejosos parecem-me atributos que velam uma outra realidade e lhes dá ao fim e ao cabo um estatuto imerecido. Ou seja, as referidas sumidades, reconhecendo, intimamente, qualidade no que escrevi, arreavam-me forte e feio para não terem de me aturar na disputa de um qualquer lugar ao sol a que, desde já aviso, não sou candidato.
Portanto, vamos ao que interessa. Para os leitores deste blogue é fácil reconhecerem que de neo-colonialista ou coisa semelhante, não tenho nada. Escrevi já o suficiente sobre a aventura africana dos portugueses para se perceber o que penso a respeito deste desvario que inclusive se pintou de império: andamos um par de séculos a arranhar a costa de África, traficando escravos, povoamos um par de cidades de degredados, mas ocupar o que se chama ocupar o “hinterland” africano, foi coisa que só nos ocorreu na segunda metade do século XIX. E mesmo isso tem como momento alto e triste a questão do mapa cor de rosa. A ocupação plena de Angola e Moçambique terminou já ia bem entrado o século XX. E há mesmo quem defenda que foi por um triz que tal facto ocorreu porquanto ingleses e alemães estariam dispostos a partilhar todos ou parte destes territórios durante a 1ª guerra mundial.
Também não é segredo que aqui mesmo já narrei, em tom mais divertido do que eventualmente devia, um par de aventuras policiais em que eu, “apoiante activo” dos movimentos terroristas (sicut polícia política), fui alvo de uma excessiva generosidade do Estado Novo que inclusive me ofereceu por três vezes uma irrecusável hospitalidade num estabelecimento da linha de Cascais. Valha a verdade que tinha vistas para o mar, o que já era um consolo...
Claro que nada disto tem de ser do conhecimento dos meus “críticos” nem sequer isso serviria para melhorar a minha qualidade literária a seus olhos. Só que...
E ainda que lidos sem demasiada atenção, os meus “críticos” entendem que “cheiros de África” podem não ser má escrita mas pecam por reaccionários, o que destrói qualquer putativa qualidade literária. Pareceu-me mesmo que alguém dentre eles (que serão três, o que também não faz uma multidão, que diabo!...) atribuiu a autoria daquele texto a um cavalheiro chamado Luis!
Façamos aqui um parêntesis. Eu não me tenho por Eça, por Stendhal ou por Dostoievsky, para citar (também) uma trindade de autores que muito prezo. Mas apesar disso, não gosto que entreguem a outro o que pari, por mau que seja. O decerto excelente cavalheiro e escritor Luís... fará pois o favor de não me tirar o que escrevi e não se enfeitar com as penas de galinha que a assinatura mcr pressupõe. Portanto, mau, péssimo ou só medíocre, “cheiros...” é meu e dos leitores que fazem o favor de me aturar.
Passemos agora a um outro ponto: pareceu-me entender que, na óptica de uma das criaturas já referidas aquela meia dúzia de páginas merecia um arraial de porrada porque não falava da tuberculose em Portugal de 50, mas de peitilhos nos fatos de banho para homens (decreto lei que só caiu em desuso nos fins de cinquenta...) e outras coisas do mesmo estilo. A culpa é evidentemente minha. Eu deveria ter falado na tuberculose, claro. E nos furúnculos, na hidrartose das criadas de servir, nos fleimões (ou será fleumões?) e em mais um par de doenças, talvez venéreas. E deveria ter chamado ainda mais nomes ao dr. Salazar. E não deveria gracejar sobre a coca-cola, “água suja do imperialismo”, como também um dos luminares já aludidos refere. Tudo isso e a nostalgia, são índices de conservadorismo, neo-colonialismo, saudosismo e mais uns tantos ismos que por hora me dispenso de citar.
Nos meus tempos de oisive jeunesse dei-me a um par de leituras pouco edificantes que metiam, imagine-se, Marx e Engels, hoje tão fora de moda. E é Engels, se não erro, quem numa carta famosa a Margaret Harkness (cfr. Ausgewälte Briefe), faz a apologia de Balzac (outro dos meus autores favoritos) e sustenta que apesar de conservador e monárquico, é ele e não Zola quem de facto tem uma atitude literária revolucionária porquanto sob a forma de crónica dos anos 1816-1848, descreve a ascensão da burguesia contra a sociedade anterior. Ou seja: um conservador pode ser nesta matéria muito mais revolucionário do que um revolucionário. E Zola sem dúvida que o era em muitos e ponderosos aspectos desde o “J’acuse” até à defesa dos pintores impressionistas.
Do mesmo modo, uma criatura detestável, chamada Destouches, escreveu sob o nome de Céline um par de livros admiráveis. Olha se os iam criticar à luz do pensamento de Destouches.
Mas há mais: Jorge Amado cometeu um calhamaço chamado “Os subterrâneos da liberdade” que é uma ode ao mau gosto e à má literatura panfletária. Exactamente o contrario de muitos dos seus últimos romances onde perpassa um claro sentimento progressista ao lado de uma amável visão da vida baiana.
Ou seja: não devemos misturar alhos com bugalhos. Um texto pode ser literariamente excelente sem por isso ter de revestir a forma de ode ao politicamente correcto. E por falar em odes: Neruda, esse imenso poeta não coroou Stalin, esse miserável seminarista georgiano, em poemas de que depois (cfr. Confieso que he vivido) se arrependeu amargamente?
E não anda por aí um laureado escritor ( e nalguns livros merece aplauso) que não há muitos anos foi um implacável censor de colegas e aparatchik policial do pior que se fabricava nos anos post-abril? E vamos dizer que o livro A ou B é mau porque o seu autor é, citando Antero de Quental, “um esgoto moral”? Também Pound e foi um dos maiores poetas do seculo passado.
Portanto, caro DLM, faça-me um favor: recite um par de avé e outros tantos pater nostri pelo feio pecado de chamar invejosos e hipócritas a umas pobres criaturas que apenas são vesgas (física ou intelectualmente, á escolha). E que devem cristalizar no sistema ortorrômbico, o que é muito bem feito!
Finalmente: eu não sei se essa gentinha é do P.S. ou não. Sei de ciência certa que é irrelevante a filiação partidária quando se entra no domínio da asneira. E sei igualmente que num país livre se pode fazer a apologia de toda e qualquer ideia por muito que para alguém, mais sensível, tais apologias possam ser desagraveis ou até insultuosas.
Em seu tempo defendi, também aqui, o direito dum jornaleco dinamarquês publicar caricaturas do profeta. Ou de Jesus! Ou de Bush! Ou de Buda. Ou do engenheiro Sócrates se bem que me pareça que ele não é prioridade para nenhum caricaturista. (Nem Marques Mendes e muito menos Ribeiro e Castro, coitados...). Como também defendi, ai o que eu vou agora dizer!..., que é uma imbecilidade chapada condenar em tribunal o chamado “negacionismo” como se a aplicação de uma pena de prisão limpe a infâmia de uma tese. As ideias combatem-se com ideias. Quando a isso se substitui o cárcere, mal estamos. E eu que o diga!
De todo o modo, creia que lhe agradeço, penhorado, a defesa que fez do meu bom nome literário. Mas não vale a pena. Nem eu sou um “escritor”, nem os meus “críticos” merecem tanto trabalho. Ao fim e ao cabo, em que espelho se hão-de mirar senão neste, mesmo pequenino, enfezado, tristonho, como o Portugal que tentei descrever em três linhas naquele texto que tantos engulhos parece ter causado.
Olhe faça como recomenda o excelente Manuel António Pina a propósito de um escritor muito em voga: “não li e não gostei”.
Seu amigo
mcr

1 comentário:

C.M. disse...

Meu Caro Amigo Marcelo, cheguei agora a casa (23H00) vindo do jantarinho habitual dos Sábados à noite, com os nossos amigos franciscanos, após uma tarde bem passada na Igreja das Mercês, aqui em Lisboa, próximo da Assembleia da República, (esse antro de vícios…), onde celebrámos o mistério das palavras pronunciadas por Nossa Senhora a 13 de Julho de 1917:
"Se fizerem o que Eu vos disser, salvar-se-ão muitas almas ... virei pedir . a Comunhão reparadora nos Primeiros Sábados de cada mês."
Este é o primeiro segredo de Maria. É a forma de livrar as almas dos perigos do inferno: primeiro, as nossas almas; e também as dos nossos próximos; dos nossos amigos, de perto ou de longe…porque a misericórdia e o poder do Imaculado Coração de Maria não têm limites…
Ora, aqui chegado a casa, dou uma “olhada” ao “Incursões” e li o seu postal “ ad usum…”: (inevitavelmente) gostei do seu texto. A expressão latina “De minimis non curat praetor” vem mesmo a calhar para os pobres coitados…

Boa resposta a sua! Como não podia deixar de ser! Talvez seja demasiada cultura para certos cerebrozinhos enfezados…aqueles que precisamente pelo seu ódio e intolerância criaram no passado (e criariam no futuro se os deixássemos) os famigerados gulags…

Deixá-los, com efeito, “cristalizar no sistema ortorrômbico”…

Um Abraço e Bom Domingo!

Incondicionalmente seu,

DLM