17 maio 2006

Afogado




Tinha os olhos afogados no medo. Como se neles só restassem dúvidas.
E quase, sempre quase, fazia o gesto que o redimiria.
Mas eram incertas as coisas, pensava. Uma vida insensata, cheia de perguntas sem respostas. Cheia de precipícios e arestas imprevisíveis.

Nunca a reconheceu quando ela surgiu na sua vida. Apesar de todos os sinais. Do rio de palavras naturalmente partilhadas, subitamente acesas as idéias.
Dos olhos de ambos a sorrirem. Do estremecer da pele quando a via. Do desejo a caminhar-lhe os membros. Da ocultíssima ereção até, que o ameaçava, ao olhar para o seu decote.
Não a reconheceu. Nem com a lava de ternura a invadir-lhe o peito, o impulso de se deitar nas coxas dela, ou aquele perfume que parecia conhecer desde sempre. Nem com a vontade de saber seu sexo e a impressão de que já sabia.
Não a reconheceu ainda assim. Nem com os acontecimentos a despertarem-lhe todos os sentidos e todas as palavras. Cada momento a abrir uma fissura na pedra que carregava em si. Nada foi suficiente para move-lo de onde estava. Era um homem descrente. Não acreditava na verdade mesmo que a vivesse. Um homem vencido pelas incertezas.


Quando ela dobrou a esquina, pensou que talvez estivesse chorando. Que talvez seu corpo doesse porque era ela a ir-se. Contemplou longamente a mulher a desaparecer, sentindo-se esvair. Como se fosse ele a cair com a chuva miúda pela rua. Mas não esboçou gesto ou som. E olhou com aqueles olhos afogados a paisagem em torno.

Nenhuma nitidez.


Silvia Chueire


1 comentário:

M.C.R. disse...

começo a ser repetitivo: perfeito!