31 maio 2006

Chateado no calabouço 5

Exposição enviada ao Ex.º Director Geral de Segurança pelo recluso *** a propósito de arruídos provocados pelo bater de mãos nas paredes, nas próprias, assobios e outras formas ditas de comunicação prisional.

Ex.º Senhor.

***, aliás Bernardo, aliás Costa, aliás Justo, aliás “o chinês da praia de Carreiros”, de 29 anos de idade, casado e bígamo, detido a 30 de Fevereiro, p.p., por transportar em situação de “nítido agravo à moral pública” a secretaria da subsecção Porto-Foz do Movimento Nacional Feminino, vem por este meio expor e requerer a V.ª Ex.ª o que se segue:
1º foi o supracitado recluso repreendido verbalmente pelo guarda de serviço ao recreio do isolamento por nesse local se entregar á prática de “assobios folclóricos e sediciosos”;
2º dias depois voltou a ser repreendido com ameaça de calabouço e corte de sobremesa por em sua cela bater com os pés na parede ao mesmo tempo que com as mãos batia palmas
3º ontem mesmo, ao fim da tarde quando rapava o tacho da sopa com a colher regulamentar foi advertido que o não podia fazer porquanto era comprovável (sic) o intuito de comunicar com o detido da cela ao lado.

Por lhe parecer injustificado o procedimento do guarda de serviço, vem, por este meio, representar a V.ª Ex.ª os seguintes pontos:

I
Tendo em consideração o nº 7 do art.º 230º da Organização Prisional, aprovado pelo Decreto-lei nº 26.643 de 28 de Maio de 1936, inserto a p. 6 do “Horário e Regulamento da vida prisional”, secção “Deveres e Regalias dos Reclusos”, edição policopiada e s/d, que expressamente estatui:
II
“são absolutamente proibidos os cantos, gritos, palavras grosseiras ou qualquer forma de comunicação convencional com reclusos de outras salas”
III
Considera que nesta norma não são mencionados assobios, pancadas nas paredes ou bater de palmas.
Mais
IV
considera até que tais manifestações são permitidas pois que o art.º 7º já citado descreve em pormenor as actividades proibidas.
De resto,
V
não podem considerar-se as manifestações mencionadas na segunda parte do artº (... "ou qualquer outra forma de comunicação convencional”) como dizendo justamente respeito ás actividades ora em apreço porque
VI
Não são formas de comunicação convencional (o sublinhado é nosso) o que decorre não só da análise dos termos em si mas ainda do facto de se não poderem distinguir de actuações eminentemente pessoais tais como
a) palmada em qualquer parte do corpo para matar uma pulga ou qualquer outro animal similar;
b) assobio exclamativo perante fotografias ou histórias escandalosas ou divertidas (cuja entrada é expressamente autorizada pelo citado “Regulamento”);
c) batidela de mão na parede para sacudir o pó desta “de maneira a manter a sala escrupulosamente limpa, como é peremptoriamente determinado pelo “Regulamento”;
VII
Que não são formas de comunicação “apertis verbis” claramente o demonstra
a) a boa educação (que um estabelecimento prisional como este mais do que nenhum outro tem por missão fomentar) que as não permite;
b) os usos e costumes que a este respeito são totalmente omissos;
VIII
Muito menos se poderá aqui falar de convencionalidade da comunicação pois
IX
Ou convencionalidade tem aqui o sentido de convenção, acordo, mútua resolução comum e isso é impossível, porquanto os reclusos de celas diferentes não se conhecem ou, conhecendo-se, não combinaram ou, tendo combinado, estão de má fé e por isso caem sob a alçada de outro artº sendo-lhes aplicável a sanção correspondente que não é a que deu motivo a este requerimento
X
Ou convencional tem aqui o sentido (de todo em todo despropositado) de usual, costumeiro, habitual e então não se poderá de modo algum considerar “usuais” ou “habituais” assobios, pancadas nas paredes ou palmas.
Com efeito
XI
Os assobios utilizam-se para insultar o árbitro no campo de futebol ou para chamar animais, mormente cães, e não é crível que os presos comuniquem justamente insultando-se (este ponto não tem em linha de conta senão as comunicações entre presos. Se o assobio for dirigido a guardas a questão é obviamente diferente),
XII
As pancadas na parede utilizam-se para se saber da sua solidez, mas não será este o caso sub judice visto ser do conhecimento geral, “communis opinio” na feliz expressão dos canonistas (cfr. Por todos Braga da Cruz, “Lições de história de Direito Português, Coimbra, 1958, ed. copiografada), serem as prisões dotadas, et pour cause, de paredes sólidas o que de resto se compreende dado ser a região de Lisboa uma zona sísmica por excelência.
XIII
Poder-se-ia dizer, utilizando o pitoresco termo prisional que os presos telegrafam (sublinhado nosso). Contra isso bastará dizer que não parece crível terem os presos cultura especializada suficiente para dialogar em morse (excepção feita a telegrafistas, funcionários dos CTT, oficiais de transmissões, faroleiros e profissões similares)
XIV
Mas se for este o sentido da expressão “telegrafar” - de resto não compreendida, como se verá e já se viu nos termos legais em discussão – deverão os guardas ater-se à escuta dos sinais efectivamente trocados em alegado código morse, detectando as breves e as longas de modo a poder afirmar sem contestação possível o carácter telegráfico da manifestação em causa.
XV
No que respeita a palmas, elas usam-se, entre nós, como manifestação de louvor, apreço político etc., mas não consta que com elas se transmita algo mais do que o snobismo dos frequentadores de ópera, o facciosismo dos adeptos desportivos e o servilismo dos assistentes de actos públicos com discurso.
XVI
Para além desta refutação semântica, aponta-se estoutra de carácter mais vincadamente jurídico: a formula “ou qualquer forma de comunicação convencional” permitiria a quem aplica a lei actuar por analogia o que
XVII
Sendo o direito penitenciário um ramo do direito criminal não pode, sem grave entorse dos princípios deste direito ora referido, sancionar-se. O direito criminal conhece a regra do numerus clausus não tão rigorosamente quanto o direito das coisas mas de todo o modo com força mais que suficiente.
Mais
XVIII
Admitir esta extensão analógica levaria a todos os abusos pois poderiam ser sancionados espirros, tosse, quedas, vassouradas no chão, bater de talheres no prato, puxar de autoclismo, etc.
XIX
No caso em apreço, o recluso tem ainda a seu favor a letra da lei: com efeito o artº 7º proíbe a comunicação entre salas e não entre quartos o que, das duas uma:
XX
Ou se trata de uma omissão – e o recluso não a pode sem mais intuir urgindo preencher a lacuna pelo método apropriado.
XXI
Ou se trata de permissão de os reclusos de quartos vizinhos se corresponderem o que seria compreensível dado o humanitarismo do decreto 26.643, expresso, de resto, em tantas outras normas
XXII
Isto sem se conceder que as manifestações apontadas no nº 3º da presente exposição sejam formas de comunicação.
XXIII
Por tudo isto se requer
a) levantamento, por desculpas ao recluso, das repreensões verbais:
b) reexame e reelaboração do nº 7º do art.º 230º do Decreto lei 26.643 de 28 de Maio de 1936

P.D.


em Caxias 1971

2 comentários:

C.M. disse...

Marcelo, V. "fartou-se" de gozar com a malta...estou a imaginar o Director da DGS a ler a presente carta e a ficar vermelho, apoplético: "este tipo está a gozar comigo!"

M.C.R. disse...

Meu caro,
como calcula estas prosas foram escritas lá mas não foram submetidas á censura policial. bastante trabalho, aliás, me deu, escondê-las dos guardas.
Posso ter alguma coragem e algum humor mas não sou tolo...