Em nome dos meus companheiros antigos do bibe e do pião*
No tempo em que a escola era risonha e franca, tempo claramente conotado com as mais sinistras práticas, como adiante se verá, no tempo, convém dizê-lo, em os professores (e sobretudo os primários porque estavam por todo o lado, eram os mais numerosos e acabavam por ser para a grande maioria os únicos conhecidos) eram respeitados, meu pai, médico e vagamente João Semana (não tanto porque quisesse mas sobretudo porque naquele pobre meio piscatória não se podia fazer outra prática da medicina), agarrou-me pela mão um dia e disse-me - Hoje começa a escola. Vou ensinar-te o caminho. E lá fui, sete anitos, a alombar com uma mochila carregada de livro, caderno, lousa, lápis, caneta de aparo, enfim “os necessários”. Calcorreámos toda a rua Henrique Tenreiro, depois a inteira rua de Buarcos, passámos o Poço da Vila, o largo dos pescadores, o largo grande e finalmente depois de um larguinho mais pequeno e ao cimo duma ladeirinha, aí estava a escola do senhor professor Mourinha. O meu pai entregou-me aos cuidados de um homem ainda novo e disse-lhe “Se for preciso, dê-lhe umas palmadas! Depois deu-me um beijo e perguntou-me: – Sabes ir para casa?Sei. – Então está tudo bem. - E foi tomar a camioneta para a Figueira.
No primeiro dia de escola, aprendi a dizer três bons palavrões, a jogar ao “parado” e a usar as minhas bonitas botas de atanado para andar à pancada com uns tipos descalços, de roupinha remendada e provavelmente dados uma precoce luta de classes. Ai o gajo é rico? Toma que já comes.
O gajo rico(?), eu, também achava uma injustiça apanhar duas lamparinas só por ser o filho do senhor doutor. Pimba, arreava também, e usava as belas botas para canelões de grande qualidade.
Nesse mesmo dia fiquei amigo de alguns dos meus contendores, a saber o Ganhitas, o João São Marcos Amaro, conhecido por “Mantana”, o Joaquim José Romão e o Aranha Eires. Com eles, e durante quatro anos, partilhei tudo, mas eram eles quem mais dava porque, nas suas casas modestas, a palavra supérfluo era como visita de Páscoa: uma vez ao ano e por pouco tempo.
O professor Mourinho deu-nos, durante os dois anos que foi nosso professor, bastas lamparinas e, quando a coisa era pior, umas reguadas.
A terceira e quarta classes foram passadas noutra escola, também primária e também oficial, mas que ficava um pouco mais acima. Aí era o professor Cachulo quem mandava. O professor Cachulo também não era para graças: ali a miudagem tinha que aprender a ler escrever contar, fazer redacções, saber a história de Portugal, a geografia, os rios todos, as serras todas, as estações e apeadeiros do caminho de ferro (linhas do Norte, da Beira Alta, de Sueste, do Oeste, ramal daqui e dali, linha do Douro etc... tudo! Que eu saiba não me fez mal algum decorar aquilo tudo e se hoje ainda consigo perceber as canalhices de sucessivos governos é porque sei que terras que tinham caminho de ferro e já não têm isso significa mais dinheiro em estradas, gasolina automóvel etc...
De vez em quando o meu pai perguntava aos professores se ia tudo bem. Eles diziam que sim e o meu pai agradecia cortêsmente e avisava-me para continuar no bom caminho. O professor calava as minhas travessuras porque já me tinha ferrado as xulipas da ordem e o meu pai fingia que acreditava.
Depois foi o que se viu: os meninos vão para a escola no popó do papá ou da mamã, o professor não lhes sacode o pó dos fundilhos e as criaturas chegam ao fim da primária tão burramente virgens de conhecimentos como entraram. No secundário repete-se a receita e depois é o que se vê: nem estudantes nem cidadãos.
Agora uma senhora ministra entende que os professores, classe maldita e incompetente, devem ser avaliados pelos pais. Pelos pais que, ao que consta, depositam os filhos na escola o maior número de horas possível para as criancinhas não ficarem sozinhas em casa. Por pais que não querem, não sabem ou não podem acompanhar os estudos dos filhos. Por pais que acham que a escola tem de dar aos seus abencerragens a educação que a família não dá. Por pais que subitamente descobrem que entre a escola e a casa, há drogas à venda, há bandos a formar-se, há crianças a perder-se.
Mas se algum professor manda dizer que o menino não aprende, que é mandrião, que tem más notas, que vai chumbar, aí muda tudo de figura. É o professor que é incompetente, a escola que não cumpre o seu dever, os direitos da criança que não são respeitados. E subitamente junta-se meia dúzia de pais vociferantes e energúmenos, que ameaçam professores, fazem exposições ao Ministro e chamam jornais e televisão.
Claro que há professores que são um atraso de vida, uns miseráveis que não sabem ensinar, nem souberam aprender, que estão no ensino por todas as más razões e por uma ainda pior: o Estado contratou-os sem cuidar de ver, de verificar, de examinar as suas competência e conhecimentos. Também nunca os inspeccionou devidamente nem sequer entendeu discutir com os sindicatos as coisas que de facto interessam. Ou que apenas os obrigou a fazer umas coisas prodigiosas como aulas de substituição ou deixar passar criancinhas que não sabem nada. Destas responsabilidades do Estado ninguém cuida ou muito poucos. Da verdadeira qualidade dos professores idem.
E por isso agora vem a peregrina ideia de pôr os pais a avaliar os professores. Ora na maior parte das vezes, o que os pais querem é sossego. E que os filhos passem. E que não aborreçam demasiadamente os anjinhos do lar. E que não mandem fazer muitos trabalhos de casa. E que os conservem lá na escola, longe do vício enquanto a família, cá fora, labuta para pagar o carro, as prestações da casa, as férias em Espanha ou no Algarve.
E não vale dizer que há pais, médicos, engenheiros ou advogados. Eles, quando se juntam, são pais. Só pais de crianças inocentes, inteligentes que o professor persegue. Porque as “tomou de ponta”; porque é um reaccionário; porque é um perigoso esquerdista. Porque...é, ou parece ser, um pedófilo. Porque sim e porque não.
As associações de pais, pelo que se vê nos meios de comunicação social, vociferam muito, propõem pouco e valem menos. Mesmo quando (felizmente) há excepções. Entregar a estes órgãos voláteis e incontroláveis, o direito de inspecção e de voto sobre os professores é abrir a porta aos piores abusos e ao mais requentado populismo. Talvez seja também, como dizem os sindicatos, “comprar uma guerra terrível”. Não sei. Sei sim que nessa guerra não haverá vencedores.
Mas já há vencidos: os meninos. E é neles que uma vaga memória das pobres e honradas escolas primárias de Buarcos, dos professores Mourinha e Cachulo, dos meus amigos, hoje pais e avós de meninos que irão bem melhor do que eles à escola, que vejo pintar-se um terror enorme e cidadão. Acudam que estão a matar a escola! A nossa escola!
Vai esta para o Eires, o Ganhitas, o Joaquim João e o “Mantana” onde quer que estejam.
o título é uma citação de um grande poeta, grande cidadão e que me honrou com a sua amizade: Manuel da Fonseca
3 comentários:
belo postal!
Diria mesmo mais: excelente postal.
Bonito postal, cheio de evocações de um tempo em que éramos mais inocentes.
Vou colocar um postal sobre este tema, rebuscando alguns textos fragmentados, na evocação de todos nós, e daqueles que nos deram a conhecer horizontes insuspeitados.
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