(A propósito do Carlitos de Felgueiras, que o JCP trouxe ao debate, em postal abaixo)
Recordo-me que tudo aconteceu mais ou menos ao mesmo tempo: aos cinco anos, eu já andava na escola, lia e escrevia, aprendi a conduzir automóveis e comecei a trabalhar. A trabalhar, sim. Creio que foi por aí que conquistei também a minha ansiedade crónica, a que me levava a transpirar tardes inteiras, claustrofóbico, quando o que apetecia era ir dar uns toques na bola ou ir jogar aos caubóis para o monte ali ao lado, onde os outros putos se matavam uns aos outros com pistolas arrancadas dos ramos das árvores, mas eu não podia, tinha de ficar na fábrica de biscoitos, a ensacar biscoitos, que nessa altura ainda não havia máquina empacotamento automático.
Cresci assim, sem férias. Eu já nem sabia o que era pior: se o ficar ali dias inteiros a ensacar biscoitos, ou ter de sair com o motorista distribuir biscoitos pelo Porto, por Vila Real, por todo o lado. Muitas vezes, uma tarde a entregar mais de 500 pacotes de 3 kg, cinco de cada vez, braços estendidos, a atravessar ruas movimentadas e tantas vezes a descer duas caves para os instalar nos locais indicados pelos clientes, indiferentes ao cansaço do puto, carregado de bicoitos e de calor e tantas vezes de indignação.
Já mais tarde, a partir do 15 anos, já estudava no Alexandre Herculano, e lá vinha o telefonema do meu pai, de véspera, para no dia estar no dia seguinte no cruzamento do Bonfim, porque era precio ir com o empregado à RAR carregar açúcar. Aí, tinha a normal solidariedade do meu amigo Mário Moreira que, à falta de dinheiro para o ginásio, via naquelas tardes uma boa solução para puxar músculo. E ali íamos, para a zona industrial do Porto, onde era preciso tirar os sacos de 50 kg da palete e acomodá-los na furgoneta. Para a coisa andar mais depressa e para puxar pelo físico, habituámo-nos a carregar dois sacos de cada vez, o que até nem era mau para a prática do ciclismo que acumulava na altura.
Já no ano propedêutico, as coisas agravaram-se, porque afinal não tinha muito que estudar. Passei a ser eu a conduzir a enorme Mercedes, norte acima, norte abaixo, com um empregado que, de tão lesma, me obrigava a fazer o serviço praticamente sozinho, mas paciência, afinal eu até já estava habituado e às vezes nem o levava, e pedia aos amigos para irem comigo, que assim as coisas até eram mais divertidas e o JCP ainda foi algumas vezes.
Na faculdade as coisas melhoraram um bocadinho, por causa da distância que tornava a colaboração impossível, a não ser nas férias, claro, que aí tudo voltava a ser igual. Lembro-me da última vez que trabalhei: já estava casado, já era advogado e, por altura do Natal, de visita a casa dos meus pais, a minha mãe, que atendia um cliente, distraidamente, disse-me: Pesa-me aí esses bolos-rei. E eu olhei-a com um sorriso e chamei um empregado e disse-lhe: Olhe, faça o favor de pesar esses bolos-rei.
Pois. E tudo para concluir: isso fez-me bem ou mal? Não sei. Se eu tivesse podido escolher, teria optado pelo inter-rail...
8 comentários:
Chiça!, Carteiro, chiça!
Um abraço
Este carteiro representa o HOMEM que não foge, luta e é generoso...
Sem tempo para te ver pessoalmente, encontro-te, em foto, num blogue perto daqui.
Beijos
Atenção Carteiro: UAU!!!
Olá, JU, amiguinha! A minha foto num blog perto daqui?
O Porto espera por ti.
(Oh, Delfim, não é nada do que julga... :-)
Decerto que aquelas féras na infância devem fazer falta até hoje.
Um abraço,
Silvia
Férias eu quis dizer. Perdão.
Pois, tem toda a razão, Silvia.
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