Da imortalidade em letra pequena,
em pé de página ou em nota avulsa
em pé de página ou em nota avulsa
Isto de livros e leitores é um mundillo como dizia o meu prezado Fernando Assis Pacheco, amigo paciente e leitor omnívoro. Basta estar um no sítio certo, ou em hora incerta (como a batalha, e vá lá leitorinhas gentis e preguiçosas, um esforço para descobrir esta inter-textualidade) e zás!, escarrapacham-lhe com o nome num livro. A primeira pessoa que me chamou a atenção para o fenómeno foi o Rui Feijó que se considerava o campeão das aparições em notas de rodapé. Só que há aqui que fazer uma advertência: este Feijó, Rui Maria de seu nome, é um homem das arábias, uma biblioteca, um repositório de piadas, de historietas, de grande cultura, um cavalheiro no mais puro sentido da palavra, ou como já tive oportunidade de dizer, um “fidalgo” a par do João de Azevedo Coutinho, amigo do meu pai de que só depois de morto soubemos que era marquês de Angeja e dos verdadeiros, dos antigos, nada dessa malta “Foge cão que te fazem barão! - Mas para onde se me fazem visconde?”. Já me perdi!
O Rui Feijó, dizia eu, foi o primeiro Delegado Regional de Cultura do Norte e, nessa qualidade, foi meu chefe. Volta e meia, recebia um livro com dedicatória extensa e elogiosa. Ficava como um cuco, como compreenderão. E ia ver o índice onomástico, onde, regra geral, lá aparecia em duas ou três entradas, quando não era em notas de rodapé. “Dezoito” – dizia-me ele, com ar contrito. E eu já sabia. Aquele livro, ou aquele autor, acabava de entrar numa especial categoria, a dos citadores de “Feijó, Rui Maria Malheiro de Távora e Castro...”. Eu acho que ele achava graça e se sentia, intimamente envaidecido. Aliás logo no primeiro livro que cometi, lá vem ele, logo na dedicatória, para não falar num par de textos por lá recolhidos. Suponho que na altura o número de citações já fosse aí na meia centena. Que o diabo do homem teve cá uma vida...
Bom, aviado que está o Rui, vamos ao que estas traça. Amigos meus, gente boa e gentil, vão-me, volta que não volta, advertindo, de aparições do meu nome, em revistas, jornais, livros. Um, longínquo e fora da vista (mas não do coração) há mais de vinte anos, até me mandou um e-mail (onde é que ele apanhou a minha direcção é que eu gostava de saber) para me dizer que me topara num artigo de autor para mim completamente desconhecido sobre a Coimbra dos anos de brasa. E abraços, choradeira, notícias de filharada e netos, vem até cá abaixo, pá, que ainda há um salpicão ou um presunto para encetar, ao canto de uma conversa, de uma lareira, de uma mesa franca e risonha, com seu vinho, seu pão fresco, seu sal... E vou, mano, é só apanhar uma aberta e aí me terás encabidado que temos uma conversa em atraso de vinte e muitos anos para pôr em dia...
E lá estou eu... cheguei a uma idade que não posso pôr o pé na rua, tantos são os desvios, as paragens, as voltas e reviravoltas. Até parece que escrevo com o taxímetro a funcionar, raios me levem! Falava então de aparições em letra impressa. Claro que nada que se compare com os do jet-set. Felizmente! Imaginem se eu agora desatava a contar as plásticas, as amantes, os orgasmos, os segredos de A ou de B, o iate de X. E ainda por cima, que me lembre nenhum dos meus amigos tem iate. Porra de amigos: nem um iate! O Manel tem um barco, feio como um polvo neurasténico, e um par de canoas para remar. E uma prancha de surf! Mesmo tudo junto não se chega ao iate. O Fernandinho tem um barco de pesca. Cheira-me que só para o rio. Alguém me disse que aquilo, o barco, não aprecia ondas. Um cunhado dele, o Wilfredo Sangaró tinha um barcalhão já com uns dois ou três metros: naufragámos pouco gloriosamente no Algarve há muitos anos. Melhor: ficámos sem combustível e fomos rebocados por um iate verdadeiro mas pequeno até Portimão. Uma vergonha! E é tudo. Nem jet, nem set. Nem dívidas, também, valha-me isso ao menos.
Portanto, eu em corpo dez, em livro, ou noutro suporte aliteratado. Pois num escasso mês foi um fartote. Mas, modesto, como convém, perante tanta glória, limito-me a dois títulos distantes nos anos mas lidos só agora e ao mesmo tempo. Comecemos pelo César Oliveira que escreveu umas memorias antes de estupidamente morrer há já um bom par de anos. Referindo-se ao ano de 75, noticia ele, a minha saída do MES, pouco depois da que ele, Sampaio, Cravinho, Mestre e Brederode, tudo amigões do coração, tinham protagonizado. É curioso: fomos colegas em Coimbra desde 60. Metemo-nos em todas as alhadas que nos foi possível. Em 62 enquanto eu ia para a choça ele era expulso, o que foi uma sorte pois mudou de Direito para Letras, História mais concretamente e deixou um rasto de livros bem interessantes sobre temas do século XX (sindicalismo, 1º República, Guerra de Espanha...). No Porto ainda nos encontrámos várias vezes sempre na conspirata que era um pouco a nossa vida. Mais tarde foi a aventura do MES e depois, durante anos, fiz parte de uma mesa de almoço no snack do Hotel Florida onde o sampaísmo tinha o seu quartel general. Em indo a Lisboa, o que me sucedia com frequência quase semanal era certo e sabido. Aí pela uma já estava instalado na mesa daquele grupo sendo por várias vezes o primeiro a chegar mesmo antes do Luis Nunes de Almeida que também já é uma saudade. Disto tudo, e não me estou a queixar, o César retira uma saída do MES. É assim que fico para a história.
Assim não, porque, no segundo livro, “À mesa da Brasileira” o meu primeiro patrono na advocacia, Dr. Alberto Vilaça, relata uma audaciosa fuga minha à polícia política. Em resumidos termos: “A Brasileira” tinha duas entradas. Graças a isso duas ou três pessoas terão tido a presença de espírito de, ao avistar um pide farejante, se porem ao fresco pela porta das traseiras que dava para a Praça Velha. Nesse lote, o Dr. Vilaça incluía o seu “estagiário fantasma”, isto é, este vosso criado. Lamento muito mas não foi assim. Antes fora!
De facto, estando eu de partida para um curso de direito comparado em Estrasburgo, caí na asneira de comprar um saco de viagem. A vendedora, e que bonita era, meu Deus!, reparou numa pequena mancha e propôs-se limpá-la enquanto eu beberia uma bica ali ao lado. Aceitei a ideia e marchei para “A Brasileira” onde alguém me passou, se não erro, o primeiro número de um jornalzinho copiografado do nascente MRPP: o “Bandeira Vermelha”. Quando vi um agente da pide, chamado Figueiredo (que a terra lhe seja pesada como chumbo!) espreitar pela montra para mim, entendi dever libertar-me daquele lastro perigoso pelo que, deixando o café a meio, subi ao andar dos bilhares cuja porta sempre aberta ocultava um pequeno buraco na parede. Depositei aí o papelucho subversivo e desci de novo as escadas para acabar o café. Estava já no último degrau de acesso ao salão do café quando uma turbamulta de pides me interceptou aos gritos aqui está ele! Aí sim, descemos mais um lanço ou dois de escadas para a porta das traseiras. Atravessei a Praça Velha e as ruas seguintes no meio de uma flotilha de sete agentes da “prestimosa” até um carro que nos esperava na Rua Direita. Pelo caminho cruzei-me com vários conhecidos “futricas” que ao ver-me em tão desgraçada companhia empalideciam. Houve mesmo um que se persignou. O resto já não importa porque já o terei contado: mais um estágio, em Caxias com vista para o rio. Nada que não fosse infelizmente habitual.
No meio de tudo isto, dois pontos a salientar: não paguei o café porque um empregado, o senhor Damião, fez questão de mo oferecer quando tempos depois voltei ao redil. Ofereceu-me, aliás, dois, o da saída e o do regresso. Era assim a solidariedade em 1971. Quanto ao papelucho devo dizer que me esperou fielmente no seu buraquinho. Uma vez lido, deixei-o em sítio idóneo para ser descoberto por outro conspirador atento. Espero que dessa vez a coisa tenha corrido melhor.
Como calculo que o Dr. Coutinho Ribeiro me pergunte pela bonita empregada e pelo saco que ficara aos seus cuidados, devo dizer que recuperei este último (que ainda anda por aí), limpo e pronto a usar.
Por falar em Coimbra e anos de brasa: fazem-me falta os textos do Rui do Carmo, do Anto e do Nicodemos. Então malta? A fazer gazeta ao blogue?
9 comentários:
MCR: quando vier em Junho a Lisboa, bem que podemos combinar um almoço/jantar com o Nicodemus e a Kami se cá estiver...que tal?
Capital do Império! Gostei dessa tirada...lá vai o MCR "passar-se"...ahahah...
QUANTO AO JANTARINHO, PODEM CONTEM COMIGO...:)
É JÁ A SEGUIR!....
Sobre o saco, está explicado. E a empregada bonita, voltou a vê-la?
Ai, Carteiro. Eu, um dia destes, conto-lhe umas histórias de partir o coração ou qualquer outra víscera menos nobre. Entretanto sempre lhe pergunto se conhece algum camelo com três bossas? Não? Pois há um, e V conheceu-o durante os colóquios literatura em viagem, em Matosinhos. Três bossas no mínimo!
Em tempo: mcr anuncia para breve a sua triunfal ida à capital do império. Já está a fazer as malas e a empacotar uma merenda não vá dar-lhe a fome durante o percurso
Foi ótimo ler o seu texto, MCR, como sempre. A memória tão bem registradas. Eu as acompanho e vou conhecendo mais o seu país.
Abraços,
Silvia
Ehehehe. Estou mortinho por saber quem é o camelo da 3 bossas.
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