16 junho 2006

Uma dor de alma...


Como confidenciei em anterior post, decidi recentemente vir trabalhar para a capital do império, como o Delfim gosta de dizer.
Instalaram-me num gabinete espaçoso, mas completamente desprovido de mobiliário. Paredes brancas, vazias. Para lá se acarretaram alguns móveis, metálicos, impessoais. Enfim, um desconforto total. Nem ao menos uma carpetezinha, e já não estou a pensar em Arraiolos.
A vista da janela, contudo, reconfortou-me a alma: no lado contrário da rua, estreita, situava-se um espaçoso logradouro de um palacete pombalino. Várias acácias, choupos e palmeiras, para além de trepadeiras com flores multicolores e, para compor ainda melhor o ramalhete, uma nespereira carregadinha de frutos, amarelos, apetecíveis. Os únicos hóspedes do local eram os pássaros, uma vez que, em dois meses e meio, nunca vi vivalma naquele jardim.
A visão daquele quase oásis numa zona de Lisboa onde não se vê uma árvore, acabou por me reconfortar a alma, depressa esquecendo o desconforto do espaço laboral.
Durante estes meses muitas vezes espraiei a vista por aquele espaço, procurando inspiração nas folhas das acácias ou nos frutos da nespereira. Era, quase, o meu jardim privado e secreto, uma vez que, dada a disposição dos prédios e o muro alto, poucos mais o poderiam ver.
Hoje cheguei cedo ao meu gabinete, seriam umas nove horas da manhã. Ainda antes de entrar na garagem, vi que alguma coisa de anormal se passava, Aquela rua, sempre tão sossegada e quase deserta, fervilhava de camiões, tapumes e máquinas e até dois polícias controlavam o trânsito. Depressa percebi que o muro do meu jardim tinha sido esventrado por uma retro escavadora. Quando cheguei à janela do segundo andar, já a nespereira tinha sido arrancada, as trepadeiras cortadas, e um choupo, certamente com mais de um século, estava a ser cortado por uma moto-serra.
Agora, ao final do dia, apenas resta a palmeira que, disse-me a funcionária da portaria - sempre atenta a tudo o que se passa à sua volta - parece que vai ser transplantada para não sei onde.
O dia está cinzento. Chuvisca. A minha alma sente uma dor tão profunda como as raízes do choupo arrancadas a golpes de camartelo.
Eu sei que o metro quadrado de terreno para construção nesta zona de Lisboa deve valer um dinheirão. Sei que os proprietários do terreno têm direito a fazer os seus negócios. Sei também que, daqui a alguns meses, ali estará um daqueles prédios modernos com aspiração e aquecimento central e ar condicionado, talvez até com música ambiente em todas as divisões, incluindo a casa de banho. Mas isso não me enche a alma, não me conforta, nem servirá de abrigo aos pardais e outras aves que, já esta noite, irão procurar poiso noutras paragens.
Uma dor d’alma, meus amigos…

2 comentários:

Kamikaze (L.P.) disse...

Ai Nicodemos, o seu post esta tao o bem escrito que a gente ate fica com a dor de alma que descreve!
Aqui fica, a falta de melhor, uma abraço solidario.

M.C.R. disse...

Meu Caro Nicodemos

então V instala-se (espero, para seu bem ,que provisoriamente) na FP (função pública, Caro Amigo, função pública!...) e queria mobílias, vistas para jardim et tutti quanti? mas em que país pensa que está?

a FP é isso mesmo: desconforto, desconsideração pública e assistir estarrecido ao bem que os privados fazem.

E o urbanismo (com ou sem ministério de tutela: uma inutilidade pelço que se vai vendo) é isso mesmo Mais prédios feios e menos melros bonitos.

PS: fui a Lisboa mas antes de aprtir já sabia que a perigosa Kami estaria no Algarve a banhos(!!!) e o piedoso Derlfim no Alentejo (a pecar:deve ter comido que nem um abade!...) Mas voltarei em breve em semana com menos pontes e menos cheiro (molhado) a férias. Para a tal cigarrada que desculpará, não fumarei. já foi tempo...

um abraço