14 julho 2006

Chateado no calabouço 7

DOS ELÉCTRICOS

(8 Teses sobre Faraday mas com uma moral civilizada)


para a Teresa Feijó

1. Os eléctricos são mecanismos sensíveis como espelhos. Talvez porque só tenham um olho, andam a direito desprezando as regras de trânsito mais elementares e o direito dos automóveis à ocupação plena e indiscutida da faixa de rodagem.

2. Justamente porque só têm um olho -o que é um triunfo da simetria - dotou-os a natureza de um corno, também único, é certo, e completamente inútil uma vez que está sistematicamente voltado para trás. Houve quem dissesse - e esta opinião é mais generalizada do que à primeira vista parece - que o homem, presumível criador do eléctrico (pelo menos na sua actual forma) tentou baldadamente construir uma simbiose mecânica e pouco graciosa do ciclope homérico e do escorpião.

3. Autores há, porém, que afirmam ser o eléctrico um animal marinho degenerado, raia ou tremelga gigantesca, que resolveu completar a inacabada aventura da baleia de Jonas, transportando diariamente dos subúrbios para a cidade, as multidões proletárias que ainda não ingressaram na voraz delícia da sociedade automobilística. Daí a repelente cor amarela, cor da subnutrição como se sabe, com que os eléctricos se revestem. Daí os múltiplos anúncios com que escondem a miséria envergonhada, um pouco ao jeito dos "homens-sanduiche" que por vezes quebram a pacatez provinciana da baixa metidos na sua álacre concha publicitária.

4. De qualquer maneira os eléctricos pertencem já ao folclore das nações civilizadas: comboios envergonhados e subdesenvolvidos, metropolitanos fugidos das poluídas catacumbas do subsolo citadino, os eléctricos tendem a desaparecer do labirinto urbano. Há já quem afirme que os troleicarros são os seus directos e impiedosos descendentes. Tratar-se-ia pois apenas de mais uma manifestação concreta da doutrina de Darwin: os bicornes veículos de dois andares teriam vencido os amáveis eléctricos.

5. E isto porque, possivelmente, e em luta aberta, conseguem esgueirar-se melhor sabendo-se como se sabe que o eléctrico, animal de hábitos que é, apenas caminha pelo trilho de ferro que, com o rodar dos anos, criou nas ruas por onde inevitavelmente passa. De resto ninguém desconhece o carácter hermafrodita do eléctrico o que, numa sociedade construída sobre a tensão sexual, não só é prova de mau gosto como até, e sobretudo, de espírito conservador.

6. É possível que, com a eliminação destes unicórnios da era industrial, se assista ao simultâneo desaparecimento daqueles fios telefónicos que os eléctricos, com suave persistência e sacrifício, criaram um pouco por toda a parte. É que, sabe-se, tais fios só se sustêm no ar graças ao chifre amável do eléctrico que, pouco a pouco, lhes foi dando vida e forma. Na realidade os fios ditos "de eléctrico" nada mais são do que o subproduto do corno do eléctrico que, crescendo continuamente, só consegue desgastar-se em contacto com as camadas superiores da atmosfera (mais ricas em hélio) deixando, desse modo, no seu rasto esse subtil fio de aço. Assim se evita que se rasguem as finíssimas coberturas do céu ou se provoquem desastres aéreos que decerto não tardariam a verificar-se: tenha-se em consideração o facto dos aviões serem cegos de nascença.

7. E ainda que se saiba que a natureza porque tudo cria, tudo previne e tudo transforma, não é com menos intensa curiosidade e justificado receio que se aguarda o aparecimento dos netos, dos bisnetos do eléctrico. É imprevisível o destino da claridade que por ora se desfruta quando as ruas da cidade forem constantemente sulcadas por 328 ou 164 fios consoante haja ou não uma via dupla de transportes comuns.

8. Prevendo o futuro, os nossos por vezes sábios governantes mandaram já alargar as ruas e enterrar os fios de telefone propriamente ditos e os cabos de electricidade ao mesmo tempo que baniram a construção de dólmenes (ou palafitas) obeliscos, estelas funerárias e estátuas equestres. O mundo já não é o que era.


1969 nos calabouços da PJ (Tribunal de Coimbra) Crise Académica de 1969

termina aqui a série chateado no calobouço composta entre 1969 e 1971 em dois estabelecimentos prisionais onde o autor se encontrou contra vontade exactamente por ser contra. ingenuidades! Numa prisão há pouco que fazer sobretudo se - como era o caso - se está só. Nessas alturas, um homem é capaz de tudo, até de escrever pacíficas loucuras.

3 comentários:

M.C.R. disse...

Porventura terá V. razão. Todavia eu voltaria a fazer as mesmas coisas.
Aliás não faço parte do grupo (seguramente grande) de pessoas que não sabiam o que ia acontecer. sempre tive a clara percepção que uma vez feitas as coisas alguém se iria aproveitar.
Olhando para trás acho que essa hipótese -se bem que posta como provável - não nos desanimou. Se calhar as nossas motivações eram egoístas. Metíamo-nos na política mais por nós do que finalmente pelos outros.
Mas nem sequer isto é completamente certo...

Kamikaze (L.P.) disse...

"em termos económicos, tudo voltaria ao estado anterior."

Caro Hospede: esta afirmaçaonao tem nada a ver com a realidade dos factos! Vc seguramente nao faz ideia do que era "o estado anterior em termos economicos", mas pode facilmente informar-se, ate ha estatisticas disponiveis...

Silvia Chueire disse...

Eu tenho a impressão e que é assim que a História caminha, as mudanças são lentas. Há passos para frente e passos para trás. Às vezes percebemos as nuances, outras vezes nem isso. Mas vai mudando o mundo. Penso que nós , mergulhados que estamos no nosso tempo não temos o olhar necessário e que só o futuro dará a outros ao olharem para trás sem paixão.
Nunca subestimo a importância das revoluções que mexem com a estrutura de uma país na sua História e na sua cultura, mesmo que ache que houve retrocessos.