21 agosto 2006

Aturem-me lá um bocadinho...

Sinto que alguma coisa estranha está a acontecer. Coisas da idade, suponho. Mas, esta noite, noite baça, prelúdio do dia quente que os meteorologistas anunciam, senti-me cansado da cidade, incomodam-me as luzes tristemente desfocadas sobre o rio, com a noção exacta do autómato urbano em que me transformei à custa de rotinas desmazeladas.

Presumo que seja coisa passageira. Uma espécie de luto pelo fim, hoje mesmo, do sítio onde janto habitualmente, no Arrábida Shoping, aquela imensa passerelle à frente do cinema, que me ajudava a simular que estava sempre no centro do mundo. Eu não consegui pôr fim à rotina, mas o eng. Belmiro fez as coisas por mim. Ponto final. O homem mandou arrasar a parede, alargou o shoping, acabou com os restaurantes naquela zona e, no último dia do mês, quem quiser jantar vai para a zona nova, assim mesmo, uma despersonalizada praça da alimentação onde ao que parece terei de andar com o tabuleiro na mão à procura de um sítio onde me possa sentar. E comer. E ler os jornais. E fumar. E ver as miúdas.

Não sei se aguento. Atentemos no facto: depois de muitos anos a viver na cidade, apenas consegui perder o sotaque. As raízes ficaram. As raízes do provinciano que nunca quis deixar de o ser. Plantei a minha vida sobre o facto. E o facto tramou-me, num mundo que não se compadece com provincianos. Confesso: sempre gostei de alguma luzes. De alguma ribalta. De ter palco. Mas, também é verdade, sempre achei que todas essas coisas só fazem sentido quando são merecidas, quando se faz alguma coisa por isso. Não me apetece o palco só porque existo, ou porque escondo as raízes e pinto a cara com cores que não são as minhas. Sintetizando: ser conhecido nunca foi o meu objectivo - prefiro ser reconhecido. O que torna tudo mais difícil. Muito mais difícil.

Mas voltemos à noite de hoje. Pensei várias coisas. Uma delas, é que preciso de trocar de carro. Outra: preciso de tornar a minha casa mais acolhedora. Ok. Nada de novo. O que verdadeiramente me impressionou, é que tive uma vontade incontornável de comprar uma casinha pequena num sítio pequeno, numa aldeia inexplorada de fins-de-semana pacatos. Um sítio onde, apesar de tudo, possa comprar o jornal e onde haja um café que me garanta comidas simples e onde não tenha de andar com o tabuleiro na mão.

O assunto é grave. Esta repentina vontade de sossego só pode significar que o tempo tem passado (ou será que desisti?). Mas isso é uma coisa a que ninguém pode fugir, pois não?

2 comentários:

M.C.R. disse...

Meu caro Carteiro

Não é preciso ir para uma aldeia pequena (mas que tenha acesso rápido à cidade e ao trabalho - coisa dificil!!!) para poder comprar o jornal num sítio pacato e ir comer a um restaurante discreto, barato e bom. Isso há no Porto a pontapés. Tenho um amigo que vive no largo do Campo Lindo e aquilo parece aldeia pacata e convivial. Aqui no "foco" faz-se quase essa vida e estamos a dois passos da Boavista. Eu nem preciso de dizer o que quero quando entro no café. Quando vou pelo jornal já sei que o tenho lá guardado mais os dois quilos de papel que consumo semanalmente (El País, Le Monde, revistas literárias e de história etc...).
Como saí de casa paterna demasiado cedo sempre tive a nostalgia de uma casa minha. Daí que dê muita importância ao conforto (e suponho que a casa onde vivo seja confortável). Saio muito pouco (já foi tempo de noitadas...) até porque me sinto bem entre os meus livros, os meus discos e os meus quadros. E sinto-me muito mal no meio do barulho das luzes, na confusão atroadora de uma discoteca, nos cinemas dos centros comerciais que parecem desertos onde só se ouve o mastigar das pipocas e o (mau) som altíssimo dos filmes. E onde raramente se vê filme que preste, mas isso é outra história.
Finalmente: a gente não o atura: V. escreve bem, tem uma graça expontânea e um tom sofrido que deve fazer desmaiar muita donzela sua leitora. A gente gosta do seu estilo, do seu português limpo e escorreito, do seu levíssimo tom blasé, da sua evidente sinceridade. Por favor não mude. Deixe-se estar assim a envelhecer bem como um bom tinto da Borgonha ou um bom tawny do Douro: Carteiro vintage reserva especial. Tá?
Um abraço

o sibilo da serpente disse...

Calma, calma, que eu só estava a pensar nos fins de semana :-)