Da má fé, do mau gosto na boca depois de uma borracheira, da traição, da cobardia e de outras coisas igualmente detestáveis
Anda por aí uma polémica entre dois cavalheiros que terão passado por distintos grupos maoístas. A causa acidental terá sido a edição de um livreco onde um dos contrincantes narra a sua história da carochinha.
A criatura terá entrado num pequeno grupo maoísta ainda em tempos do Estado Novo. Terá sido presa. Terá sofrido maus tratos da polícia política (coisa obviamente a requerer prova efectiva dos factos...). Terá em função disso “falado”. Ou como se diz na tropa: borregou. E borregou ao que parece, forte e feio. Não fez apenas confirmações quanto à sua actividade, coisa aborrecida mas, enfim, desculpável em quem provavelmente teria escassa formação política e ideológica. Parece que denunciou camaradas. Que terão, ou não, sido presos, o que pouco importa, tanto mais que a polícia nem sempre ia atrás dos recém identificados.
Posteriormente passou a ser “confidente” da polícia política, “informador”, quiçá provocador até. Desconheço, porque me recuso a sujar o olho no seu patético livro, se era pago pela tarefa de espiar outros jovens como ele tinha sido.
Em chegado o 25 de Abril, terá sido descoberto e preso. Que maldade! Prenderem um “bufo” por denunciar, espiar, camaradas e amigos! Já não há justiça!
Entretanto a criatura, ou lá o que é, parece sentir à sua volta um toque de reprovação social.
Logo ela, a criatura, que na cadeia ou até antes, teve, como os pastorinhos a revelação do mal execrável que era o comunismo, o maoísmo, o stalinismo, o bolchevismo, e mais uns tantos ou quantos ismos que os leitores quiserem acrescentar. Mal execrável esse que parece justificar a traição, o jogo do esconde e aponta, o amancebamento com a PIDE & similares!
Indo por pontos:
Quem não sabe não se estabelece. Trocando em miúdos: quem acha que a acção política clandestina tem riscos graves (a prisão, a tortura, a morte até) toca viola em casa, faz renda de bilros ou assobia para o lado.
Quando esse alguém é um estudante universitário, com o mínimo de cultura que na época era suposto ter a coisa ainda piora porquanto não se desconheciam os riscos da acção política legal ou ilegal. Eram conhecidos! Havia livros e manuais, lembremos apenas o “Se fores preso, camarada” ou as descrições maoísantes da gesta prisional dos seus principais dirigentes então em Peniche. Era conhecida a luta destes contra os “rachados”. A rapaziada “m-l”, então, andava sempre com isso na boca para arrear forte e feio nos “revisas” do PCP. A cultura de esquerda em Portugal (até em Portugal...) mamava nos romances heróicos de Aragon (Les Communistes) de Jorge Amado (Os subterrâneos da liberdade) nos portugueses que copiavam o neo-realismo italiano e que eles também faziam a apologia do heroísmo frente à polícia e a condenação da delação.
Enfim e para não se gastar mais papel com tão ruim defunto, quem estas traça teve o azar de conhecer a prisão por mais de uma vez, de lá dentro ter sido confrontado com declarações que o implicavam, com declarações que até o implicavam em coisas jamais feitas. Teve também o azar de, numa salinha esconsa do último andar da Rª António Maria Cardoso, sob o olhar atento e benevolente da matilha policial, passar alguns dias sem dormir e sem se sentar ou deitar. Por sorte, por convicção, por respeito e por vergonha futura, não prestou declarações. Não confirmou acusações e muito menos delatou quem quer que fosse. Teve sorte, muita sorte. Se calhar mais um dia ou dois e pimba!, toma lá nomes, datas, pseudónimos, e tudo o resto. Todavia para além da sorte (inegável) sabia duas coisas:
à polícia e aos costumes diz-se nada.
O respeito por nós impede-nos de ser, como dizia Antero, um esgoto moral.
E tinha obviamente a sensação, exaltante e esmagadora, de ter lá fora gente que amava, que o estimava, que o respeitava, que confiava nele e que sofria por ele.
Quem estas escreve passou pelos alvores do maoísmo português. Meteu-se nessa guerra, foi “controlado”, controlou outros camaradas, viu caírem companheiros, camaradas e amigos e teve sempre a certeza que não o delatariam. Recebeu festiva, terna e comovidamente muitos que vinham das prisões. Nunca lhe passou pela cabeça que, fosse qual fosse, o seu comportamento diante da polícia, eles sequer pensassem em espiar por conta daquela, por dinheiro ou por fé recentemente adquirida, pelo sindroma de Estocolmo ou por outra coisa parecida.
Saiu do maoísmo discretamente depois de saber um par de coisas desagradáveis ocorridas durante a “grande revolução cultural e proletária”. Continuou o combate político mais só, mais triste, mais desenganado mas com a mesma determinação. É que de um lado estavam as vítimas e de outro os carrascos. Não havia escolha possível.
Um famoso revolucionário russo, um dos primeiros membros do CC do partido comunista (b) da Rússia, foi como quase todos os seus camaradas acusado pela clique de Stalin de ser um traidor. Como tinha origens proletárias, um passado heróico, deram-lhe a hipótese de se retratar e assim evitar a condenação num dos famosos processos de Moscovo. A sua resposta, simples e exemplar foi esta: Digam ao camarada Stalin que tenho sessenta anos de idade e quarenta e cinco de revolucionário. Não me parece ser esta a boa ocasião para estragar a minha biografia.
Foi julgado, condenado e executado.
Em Caxias em 1971, tinha essa frase na cabeça, no coração e nas restantes vísceras transidas de medo. Mas maior, como no poema de Fernando Pessoa, era “a vontade que me atava ao leme”. E a porra da biografia que eu queria estimada e sem nódoas.
E o que agora digo, aconteceu à imensa maioria dos que se viram nestes mesmos e negregados trabalhos. Ou seja: nem sequer tive o privilégio de ser excepção à regra. E é isso a nossa honra. A nossa pequena, humilde, reconfortante vitória.
“...e mais que o mostrengo que me a alma teme
e roda nas trevas do fim do mundo
manda a vontade que me ata ao leme
de el-rei D João segundo.
...Trairei amanhã, hoje não,
amanhã.
É preciso uma noite para me resolver,
....
para renegar, para abjurar, para trair.
Para renegar os meus amigos,
Para abjurar o pão e o vinho,
Para trair a vida,
Para morrer.
....”
o segundo excerto pertence ao último poema de Marianne Cohn, fusilada aos 23 anos (in Vértice, nº 40-42, Vol III, Dezembro de 1946
4 comentários:
Caro d´Oliveira:
Estes textos fleuve continuam a ser um must "imperdível", como agora se diz.
E este texto, entáo, concita-me atenções particulares que se náo andassem atormentadas em podar um texto sobre música francesa, ainda iria comentar demoradamente.
Porque este texto, é um compêndio daquilo que considero a essência de uma certa esquerda que surgiu em Portugal e se formou em valores que aqui ficam bem explanados de modo particular.
É uma esquerda idealista e de valores aprendidos, mas que se moldaram carácteres que eram bem formados de origem.
Que fique bem claro que eu gosto de pessoas assim que colocam a honra individual em patamar alto.
Porque são pessoas confiáveis e com quem se pode contar nas amizades, porque são generosos e humanas.
Porém, os carácteres não se aprendem: nascem connosco. E se a lealdade se aprende, a coragem já não. Se a disciplina partidária se pratica, a integridade de carácter é um factor aleatório nos indivíduos.
Sendo estimável, é independente de ideologias, partidos,correntes e famílias.
Daí que em todos os lados, se possamm encontrar exemplos de integridade de carácter e contra exemplos.
O que acho piada na esquerda utópica e nos seus militantes de sempre, é a hiper-valorização dessa integridade de carácter que devendo ser um valor a esperar de todos, é entendido como um sinal distintivo de "pertença" ao grupo.
Meu caro d´Oliveira, de quem aprecio os escrito, o estilo e os modos:
Entre os lutadores contra todas as ditaduras - e náo só contra a de Salazar Caetani-há pessoas íntegras e outras que o não são.
A integridade de carácter não é privilégio da esquerda, por muito que isso fosse reivindicado por Álvaro Cunhal no seu interessante panfleto "Da superioridade moral dos comunistas".
Em nome da verdade, elogiem-se os valores, mas estendam-se os mesmos democraticamente...
Um abraço.
Quero com isto dizer que do lado dos "fascistas" também havia pessoas com carácter e leais e ligados à causa e ao bem da Nação.
Serão esses "fascistas" maus por natureza?
Aqui coloco o acento na luta ideológica.
COmo é que se deve lutar ideologicamente com alguém que defende soluções de organização política e social absolutamente contrárias aos princípios e valores em que acreditamos?
Por muito brandos que sejamos, há um ponto em que o confronto pode ser decisivo. E isso aconteceu por várias vezes em Portugal, nestas últimas décadas.
O cónego Melo é um fascista?
E o Veiga Simão?
E as FP 25?
COmo é que se luta pelas ideias em que acreditamos?
Só a escrever?
Meu Caro Amigo
V., já aqui tem sido dito e várias vezes, é o nec plus ultra dos comentadores. Ou, por outras palavras, o leitor ideal para quem, como eu, escreve, assim, em roda livre, sem Deus nem Mestre.
Parece, tenho quase a certeza, que já por aqui alguém disse que ao escrever um texto, tinha sempre presente "o que diria o leitor José". E isso porque V. põe as questões realmente interessantes.
A esquerda em que acredito é uma esquerda de valores. Creio igualmente que há uma direita de valores. Uma direita culta e uma direita que sabe o que diz, lê os sinais dos tempos, é arejada e defende também ela ideias de liberdade e democracia.
Aliás, como pode ver pelo meu texto, a criatura que refiro. se calhar ainda se diz de esquerda de uma esquerda sem os "desvarios" do m-l, os sótãos escusos do Pc. ou as corrupções de certo ps muito municpal e camarário.
Na direita claro que os que varrem a feira a cajado como o pobre Joãozinho das perdizes, os racistas, os xenófobos, etc...
Respondendo concretamente ás suas perguntas
a) Veiga Simão parece-me que o homem se remira no seu próptrio umbigo. Acho que nunca foi outra coisa senão isso. com a agravante de se pensar um iluminado. Serviu a direita com a mesma falta de convicção com que ancorou à esquerda.
As FP 25 eram apenas um grupo de tontos, pintados de fresco com tinta esquerdista, sem perceber em que mundo viviam, o que são os métodos de luta na democracia e na ditadura, falaram que se fartaram, racharam idem, mataram-se uns aos outros no exílio, e cairam no mais banal banditismo. Tenho-lhes asco!
O senhor cónego, que conheço mal, parece-me um tanto o u quanto trauliteiro, um daqueles padres que andou metido com o Remexido, com a Maria da Fonte e com o senhor rei D Miguel. Mas, continuo, conheço a criatura muito mal e, se calhar por burrice supina, no tempo em que ele era activo eu achava-o menos perigoso do que outros.
Todavia percebo perfeitamente que no Verão quente em reacção ás palermadas esquerdistas (??) tivesse havido uma reacção violenta.
chega ou ponho mais uma posta de molho?
Um abraço
Uma? Ponha o bacalhau inteiro que é um regalo degustá-lo.
Além disso, há mil e uma maneiras de fazer bacalhau, como sabe e o seu amigo, falecido precocemente, de nome Pacheco mas de outra estirpe que não aquela em que está a pensar, saberia muito melhor.
É desse bacalhau, feito por pessoas assim, que me dá gosto petiscar.
Porque leva condimentos subtis que muitos não conhecem.
O bacalhar quer alho, é uma verdade.
Mas se o alho for assim ou assado já há uma diferença.
Se, além disso, o azeite for de Moura ou do Douro alto, o paladar será o da comida de rei.
É desas iguarias que procuro...
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