17 agosto 2006

férias para que te quero 2

(notícia de uma língua, de amigos sempre presentes,
da memória a redescobrir e da coragem )

2º dia
Se há coisa com que a Crazy Grazy engalinhe é com a simples suspeita de que, nalgum esconso da casa que ocupa, por uma vida, ou por quinze dias, haja um temível grão de pó. Esta nasceu com a mania da higiene. Resultado: adivinham quem esteve durante uns largos minutos a lavar louça? Quem votou CG enganou-se e volta para a casinha do inicio neste jogo da gloria veraneante. Quem estas dedilha no iBook G4 esteve de faxina durante um tempão para a louça vulgar. Amanhã iremos comprar lixívia, esfregão palha de aço, remédio contra as formigas, idem contra os mosquitos. Com o treino que estou a ter posso montar uma empresa de limpeza a domicílio.
Para espanto e inveja dos confrades que se atiram para o Algarve, a água do mar aqui tem estado a temperaturas mediterrânicas! Um escândalo! A Galiza tinha boa fama mas era mais no que respeitava ao chope-chope do que à calidez das suas águas.
Desde que este aquecimento não signifique mais lenha para a fogueira independentista que assola sectores minoritários das autonomias espanholas, força! É que uma das tolices que ouvi por várias vezes é a da perdida soberania galega. Convém lembrar que, fora uns escassíssimos anos que se perdem nas brumas medievais, nunca a Galiza foi independente. E mesmo nessa incerta época de estados a fazerem-se e desfazerem-se num xadrez para que também contribuímos, a ideia de Espanha, herdada dos visigodos, era o fio condutor das políticas peninsulares.
E com esta, aproveitando a boleia, vamos à língua galega. Indo por partes. Se bem recordo ouvi Rodrigues Lapa defender que o galego era tão só um português parado no tempo e que só no português teria futuro. É uma opinião, respeitável mas só uma opinião. Na verdade, o galego não parou totalmente, sempre se falou entre o povo, a arraia miúda, os “labregos e mariñeiros”, ou seja camponeses e pescadores. Os “señoritos”, a burguesia galega, os emigrantes adoptaram sempre o espanhol, que era como Camilo José Cela chamava ao castelhano. E a inteligentsia galega escreveu sobretudo em espanhol. Ou foi bilingue. D. Ramon del Valle Inclán deixou proibido por testamento a encenação das suas peças usando o galego. E isso porque, justamente, eram tantos e tão saborosos os galeguismos na sua especial língua que a tradução os mataria, destruiria o dinamismo daquela riquíssima linguagem que tantos lhe invejavam. Torrente Ballester, Cela, seguiram-lhe o exemplo, escrevendo em castelhano. O grande Cunqueiro escreveu muitos dos seus textos em castelhano e por aí fora. A emigração galega, sobretudo a argentina e a cubana, foram vectores de espanhol e não do galego original que os seus maiores teriam falado, como pobres que eram. O mesmo ocorreu com os galegos (e foram tantos) que vieram enriquecer Portugal, enriquecendo-se eles também.
Mas para mim, turista desde há tantos anos nestas terras, e neste mar, o problema há muito que se resolveu: falo português semeado de palavras galegas se as sei e por pura simpatia. Gosto da palavra nai bem mais do que da lusitana mãe e teria pena se esta última substituísse a primeira.
3º dia
A história da minha relação com a Galiza vem de longe como a esquecida fama doLicor Beirão (ou seria do brandy Constantino?). De facto, na minha estouvada mocidade liceal, quando tive de ler (e que bom que foi!!!) os trovadores galaico-portugueses, já me perguntava como seria esta terra, se as “ondas do mar de Vigo” eram iguais às de Buarcos (não são, claro, as de Buarcos além de fortes tem o perfume e a frescura dos primeiros anos, dos primeiros amores, dos primeiros sobressaltos ao adivinhar um seio em flor pudicamente escondido num daqueles fatos de banho incríveis que se usavam no rançoso Portugal de cinquenta.
Depois dessa descoberta de afinidades literárias, veio a descoberta da terra pobre, deste litoral perdido, longe de tudo, que os meus amigos emigrados demandavam para poderem estar um pouco mais perto da pátria madrasta. E aqui vinha eu, acolher-me, por uns dias, à jovial hospitalidade da Luísa Feijó e do Octávio Cunha, amigos antigos, doces amigos, que alugavam uma casinha de lavradores na perdida aldeia de Noalla em frente da Lanzada praia enorme e deserta como quase deserto eram Sanxenxo e O Grove.
Por essa época, acabada que fora a nossa tumultuosa vida académica, o temível Manuel Simas Santos, magistrado recentíssimo na fronteira, desafiou-me para a aventura de passador clandestino de clandestinos fugitivos políticos e de militares relapsos à guerra infamante de África. Com a Cândida Laurinda, corajosíssima, o Zé Teixeira Gomes e o Zé Ataíde entre outros estudamos aquela fronteira toda, quilómetro a quilómetro, passo a passo e podemos, hoje, gabar-nos de 100% de êxito nas passagens que fizemos.
E se recordo essa aventura é tão só para poder recordar melhor Manuel Alves, pai da Laurinda, soldado da República espanhola, na brigada Máximo Gorky que fez a guerra nas Astúrias. O senhor Manuel Alves, ex-mineiro, ex-contrabandista mas sempre homem de bem, foi, enquanto soldado republicano, clemente com os inimigos desarmados. escondidos e aterrados a tal ponto que, no campo de prisioneiros onde a derrota o conduziu, foi reconhecido como tal por alguém a quem perdoara a vida. De volta a Portugal, acolheu fugitivos republicanos, protegeu-os, alimentou-os e salvou-os sabe-se lá de quê. Possivelmente da morte... Em época de Ley de la Memória Histórica há que relembrar que Portugal não foi só a retaguarda dos franquistas, o berço dos “viriatos”, a entrega infame de fugitivos aos carrascos do outro lado. Muita gente, a melhor, arriscou muito, por esses desgraçados acossados pelas polícias dos dois países. É bom lembrá-los através desse meu velho amigo senhor Manuel Alves, que curiosamente foi o pretexto do meu primeiro texto neste blogue que fidalgamente me acolhe. E é tempo de escrever o que sabemos senão o que vimos.

...No. No dejan ver lo que escribo
Porque escribo lo que veo.
Yo me sento en el estribo.

E escribi sobre la arena:
Oh blanco muro de España!
Oh negro toro de pena!


(Blas de Otero: Excerto de “no quiero que le tapen la cara con pañuelos” in “Que trata de España”, 1964)


2 comentários:

josé disse...

Pode continuar que a gente agradece...mesmo que tudo seja visto do lado esquerdo, a estereoscopia alcança-se com o lado oculto: a generosidade dos sentimentos aparentes.

Silvia Chueire disse...

É bom ler, MCR. É muito bom.

Abraços,

Silvia