19 agosto 2006

Férias para que te quero 4

(de bandeiras, de picnics, do trisavô e de meninos
(dos que fomos e dos que estão a chegar))
Quinta feira

Os incêndios estão para durar segundo diz o jornal. Todavia a praia estava menos sombria, havia mesmo sol, avistavam-se a margem sul e Portonovo, pelo que espero que as pessoas comecem a ganhar esta batalha temível. Pelo menos, e isso é um bonito gesto, apareceu pela região autonómica o primeiro ministro declarando que vinha assumir todas as responsabilidades. Eu, que não sou um fã incondicional de Zapatero, tenho que lhe louvar a dignidade. E também não sendo um patriotaço como já por várias vezes aqui declarei, devo dizer que me tocou e orgulhou a presença de bombeiros portugueses chegados para ajudar. E gostei de ver a bandeira nos autotanques e nos restantes equipamentos. Esta bandeira vale cem golos, perdoarão a insistência.

Sexta-feira
Os incêndios não acabaram. Mudaram apenas de sítio mas isso explica que a cinza já não apareça tanto, e que o ar que se respira seja menos pesado. De todo o modo há pelo menos duas cidades importantes com o fogo a chegar às casas: Ourense e Santiago. As coisas são de tal modo que começo a pensar se nisto não andará mão organizada. Com que fins é difícil sabê-lo, e é isso que me contém as convicções. Mas que estes fogos começam sempre da mesma maneira, nas zonas mais inacessíveis para abrir caminho até povoações disso já não restam dúvidas. E de todo o modo os fogos são ajudados por dois factores: o vento de nordeste que de dia quase se não sente e à noite aumenta de intensidade, e a desbragada plantação de eucaliptos cujas copas ardem violentamente propagando assim com extraordinária rapidez as chamas vorazes. Se o primeiro factor não pode ser controlado (no Verão e nas zonas costeiras ocidentais da península o vento sopra geralmente do quadrante norte, a “nortada rija” que me recorda a Figueira natal...) já o segundo é única e exclusivamente obra do homem. Além de secarem tudo à sua volta os eucaliptos precisam de fogo para crescer e renovar-se. É claro que a plantação selvagem e desregrada deles e o abate das espécies indígenas tem consequências temíveis e que já se conhecem.
Todavia deixemos este tema, e passemos, a outros mais amáveis: por exemplo a praia e as multidões que agora, num frenesi desesperado, percorrem a beira mar a marchas quase forçadas. Alguém terá dito às criaturas que andar pelo areal faz bem. Vai daí isto parece a olimpíada da terceira idade. Não param! Avançam em pequenos grupos, em passo estugado, ar concentrado, como se só assim gozassem a praia. Como se com um par de quilómetros na areia fossem a absolvição de onze meses de falta de movimento. Como se o stress urbano, o ir para todo o lado de carro, pudessem ser compensados com duas semanas de passeios matutinos à beira mar. Tanto mais que não são passeios, mas marchas determinadas e forçadas a meio trote. Isto para já não falar nos solitários que percorrem o areal raivosamente, sozinhos, com auscultadores nos ouvidos. Para eles nem sequer o existe o barulho da rebentação, os gritos da miudagem, só uma meta longínqua, o fim da praia, a meia volta e o recomeço desse jogging desigual sob o sol inclemente do Verão.

sábado
Contra todos os hábitos de cavalheiro civilizado que, ao ver-se chegado a uma idade respeitável, já não dispensa as suas pequenas comodidades, transigi em participar de um picnic que os meus velhos amigos (e amigas, pois claro!) veraneantes da praia de Moledo, a que me ligam tão boas, e tão exaltantes, recordações, todos os anos organizam. Também eles acusam o peso dos anos e o gosto pelo conforto. O picnic ocorreu na casa da Isabel e do Manel “electricista”, havia cadeiras, muito comida (e boa!) e a excelente conversa do costume. E uma excelente piscina para um mergulho pela tardinha para abrir um apetite entorpecido pelos, como já se disse, muitos e excelentes pitéus. Como dizia o António Martins, outro dos convivas, chegámos demasiado depressa à idade do desperdício. Tendo comido como abades, a mesa continuava cheia de coisas boas que davam para mais dois encontros destes. Como as minhas pacientíssimas leitoras terão adivinhado isto passa-se com um grupo de pessoas de esquerda que, apesar de tudo, lá vai tentando manter viva a chama de há vinte, trinta ou mais anos, quando corríamos à frente da polícia, como bem lembrou uma ex-cliente minha surgida do nebuloso ano de 1972 ou 73 quando ela estava acusada de distúrbios na universidade e eu advogadinho fresco e com o sangue na guelra a defendia e a mais umas dezenas de colegas. Foi bom ver-te, ó caloira ignorante mas insurrecta, mais indignada que revolucionária, foi bom ver-vos amici miei (faltaram o Carlos Brandão e o Manuel Sousa Pereira, mas enfim, não se pode ter tudo). Foi bom ver o João Simas babado com a hipótese breve de um rebento, foi bom ver a Rosa Lu, última descendente (até ao momento!) dos Azinheiras, oito meses feitos, nada e criada no meu Berlim, no Berlim do trisavô Ernst Richard Heinzelmann. Rosa Lu (ou Lou?) que nome tão prometedor! Em tempos que também já passaram, o Manuel Simas, o Anto e este que estas traça, com muitos outros, fundaram uma editora que se estreou publicando a “Praça da Canção” do Alegre e o famoso “Partido, massas e sindicatos” da Rosa Luxemburgo. Fã que sou de Nietzsche e de Rilke se este Lu da azinheirinha for Lou lá está uma bela homenagem a Lou Andreas Salomé. E vai tudo dar ao mesmo!

...los niños.

Sus ojos como absortos
Qye nos miran, envuelven.
La tremenda confianza en nosotros!

Los niños increíbles
Que ahí están, como nada,
Y nos miran, nos miran...
...pensemos en los niños.
Un silêncio espectante
Reluce en esos quietos ojos interrogantes.

Gabriel Celaya: excerto de “los niños miran de frente” in “Cantos Iberos” 1954




2 comentários:

M.C.R. disse...

Escreve-me o Rui Namorado, poeta (aliás excelente), fundador da Centelha, conspirador durante anos e anos nessa empolgante aventura que foi Coimbra dos anos 60, preso em Caxias comigo e com o Anto em 62, e político ainda no activo, um e-mail onde corrige, e bem, dois detalhes desta minha crónica feita demasiadamente em férias de memória. O livro de Manuel Alegre que publicámos como nº 1 da colecção de poesia foi o Canto e as Armas; e o Anto e o Manel Simas foram membros da Centelha mas não seus fundadores. Valeu a pena afinfar com 2 erros para ter notícias de alguém que nunca cedeu, nunca virou e que continua (sem grande sorte... mas isso é outro falar) na brecha e na esquerda. Convém todavia acrescentar que a Centelha publicou posteriormente vários livros de M Alegre (Um barco para Ítaca, Letras e a Praça da Canção e talvez mais algum que agora não recordo) cuja venda, mesmo ao preço ridículo que praticávamos, permitiu muitas outras aventuras editoriais.
Aproveito a boleia do Rui para pedir aos meus escassos leitores que, sempre que me virem meter a pata na poça, me arreiem em comentário, em e-mail pelo telefone pois como já disse a memória tem um segundo nome: traidora!

M.C.R. disse...

Ex.º Senhor António
Esse óptimo princípio da GLQL é por mim seguido em tudo o que é crónica alegre, historieta e coisas afins.
Estou mesmo como o monsieur Jourdain que falava prosa antes de saber que esta existia,. eu sou (ou gostaria de ser, para mais exactidão) um contador de histórias (que adora ouvir histórias).
No conjunto "Gaudeamus Igitur" é tudo verdade só que... por vezes duas ou três criaturas fundem-se ficcionalmente numa só para conseguir qualquer coisa que valha a pena contar. Mas o "gaudeamus" é isso mesmo uma recolha bem disposta de cinco cursos de direito comparado & similares.
A coisa fia mais fino quando prendo contar o que se passou com foros de seriedade (com humor se possível mas sempre com seriedade). Aí convém manter uma rigorosa exactidão mesmo se isso é apenas relativo a detalhes tão inócuos como o do primeiro livro de poesia editado pela Centelha ou se dois associados dela foram ou não do grupo fundador.
Uma senhora que me deu a honra de uns minutos de conversa e que era grande escritora disse-me que havia que dar importancia aos detalhes históricos narrados por insignificantes que fossem: há sempre um crítico que só vê essa escorregadela em quinhentas páginas, dizia-me a enorme Carmen Laforet, autora desse inesquecível Nada.
Tenho repetido isso a todo e qualquer autor que comigo se cruza e, eventualmente, pede ajuda ou leitura crítica de um texto que pretende publicar.
Depois há que ter em conta que a verdade (que devia ser mas não) é sempre revolucionária. como dizia Lenine que entretanto a não praticou com tanta exactidão. Mas isso é outro contar...
Um abraço