14 setembro 2006

Au Bonheur des Dames 31

Bonsoir tristesse

Ele há dias assim, em que sem motivo, quase por nada, ainda menos, tudo à nossa volta respira devagar, como se a nostalgia viesse nesta chuva mansa que visita o fim do Verão. Há no ar, um cheiro que mais do que anunciar o Outono, vem recordar-nos que o tempo passa inexorável (gasta imagem) e é tempo de prestar contas. Será?
Hoje dei comigo a trabalhar enquanto vou ouvindo uma série de discos dos anos sessenta, outra antologia mais que vou entremeando com o Dave Brubeck, luminosa descoberta que devo ao Carlos Ferrer Antunes e ao Eduardo Batarda, esse mesmo, esse enorme pintor que vem prosseguindo indiferente a modas, marés, compras, mercado, uma carreira obsessiva, sem baldas, sem compromissos, ou melhor, um só compromisso: com a pintura ela própria.
E dou por mim, tantos anos atrás, caloiro fresquinho, arribado a Coimbra, em casa de um deles, qual?, a ouvir pela primeira vez na vida “Take Five”, Brubeck e Paul Desmond, que dupla, amigos, que dupla e que música. Era o meu segundo encontro com o jazz, o segundo e definitivo encontro e o princípio de um desgosto que me há-de fazer companhia quando já mais nada houver, a impossibilidade, a incapacidade de tocar saxofone, piano, bateria, o que for. Sou, além de outros defeitos, maiores e menores, completamente desafinado, patologicamente desafinado, não há volta a dar-lhe.
O professor Aurísio Pinheiro, topou-me à primeira, na primeira aula de canto coral, naquele pequeníssimo liceu (que se a memória não me falha ousava chamar-se Liceu Municipal Bissaia Barreto. Seria? Quase que o juro, terei mesmo visto uma placa junto do portão por onde os cento e trinta alunos e alunas do primeiro ciclo, o único aliás, entravam). Vem cá menino. Ora canta lá, do re mi. Olha, meu filho estás dispensado do Canto Coral, podes ir brincar para o recreio que a tua simples presença, mesmo que mudo como um bacalhau seco, já me dá cabo da aula.
O professor Aurisio (era assim que se chamava) condenou-me a um exílio horrível que no recreio nem viv’alma e eu para ali perdido a gastar um tempo que parecia longo, a olhar para as paredes do terreiro mudas, também elas, não como bacalhaus secos, simplesmente como paredes cuja mudez é por vezes interrompida como era o caso por palavras escritas a giz, o J ama B. , viva a Naval, viva o Ginásio, estive aqui no dia 11 do 10 de 1950, olha um do ano passado, pensei, podia ser mas não estava assinado, só uma marca, um circulo com um M dentro, a marca amarela do Mundo de Aventuras, os Black e Mortimer.
Nesse tempo eu não sabia que estes heróis da BD continuariam a ser conhecidos e reconhecidos cinco décadas depois, convenhamos que nesse tempo eu não sabia nada e que hoje estou na mesma, ou pior porque menos inocente, mais tristonho, sempre desafinado, não há volta a dar-lhe, anda por aqui tanto amor não correspondido pela música que chego a duvidar se o que oiço, e com que prazer, é o mesmo que os outros ouvem, ou é apenas a versão pobre de uma outra música a que nunca acederei por via desta incapacidade de cantar do re mi sem tropeçar numa semi-fusa ou numa colcheia que é o que sucede aos meninos que nem para uma aula de canto coral, numa terra pequena e perdida entre rio, mar e serra, servem.

9 comentários:

josé disse...

Dave Brubeck e "Take Five": só a descrição já me provoca sininhos no ouvido e vou ouvir quando puder.
De descobertas dessas, ando sempre à procura. Porém, com esta sensação permanente de dèja vu, imprópria para o sentido em causa, vou desconfiado.

De vez em quando soam notas sincopadas em saxo tenor ou soprano que me alegram o ouvido.
Mas devo confessar que não foi através de Coltrane ou do pássaro Parker que recebi melhores presentes sonoros. Foi através de Michael Brecker ou Stan Getz que não sendo génios, afinam em tonalidades mais simpáticas.
E foi em discos pop que apreciei os melhores cameos. Dos Steely Dan, há uma mão cheia. Dos Weather Report outra que tal e ainda sobram alguns para os Spirogyra, uma alga perigosa para quem aprecia sons de mistura.
Os Crusaders também contam e não gosto muito da trompete de Miles Davis. Mas falávamos de saxofones...

josé disse...

...e Brubeck tocava piano. Que tal Bill Evans? Há muitos anos ouvi algo excepcional e que prefiro guardar em memória, pois nem lembro exactamente o que foi.
Houve um tempo em que se ouvia Jarrett a todo o instante, na rádio.
Mas nesta área ainda prefiro Pat Metheny.
É guitarrista? Pois é, mas acabou o tempo para escrever aqui sobre isto, por agora, porque de guitarristas está o Jazz cheio. E o rock. E a pop.
Mais logo, vai outra guitarrada.

M.C.R. disse...

Bill Evans é um génio. Como tantos outros jazzmen, já não falo do Ellington porque esse era um duque dum país onde a nobreza se ganhava no campo de batalhamusical, guerras incruentas mas alucinantes, mas apenas desse magnífico Fats Waller para me cingir só a estes dois incontornáveis.
E já agora: eu falei de Desmond, Paul Desmond, todo um senhor. Que me diz, V. que é um apreciador de gabarito?
Um abraço

Silvia Chueire disse...

Take Five...Tenho o Cd. : )

josé disse...

Ora bem...movido pela curiosidade auditiva, farejei por aí e dei com esta toca.

Neste momento, ao escrever isto, aqui atrás de mim e mesmo saidinho da lura, soa "It´s a raggy Waltz". E a seguir virá um "bluette" arrastado que começou agora mesmo.
Soa bem, devo confessar. Mesmo em mp3, formato diabólico que rapa sons transitórios para nos dar uma versão final que engana ouvidos atentos e...lhes poupa os tostões da versão digital em cd.
Take Five.
Ou, em português, muito obrigado.

josé disse...

E agora, sim. "Blue rondo a la turk" e a propriamente dita, "take five" do disco Time Out.

M.C.R. disse...

Meu caro José: eu gabo-me de ter uma discoteca interessante. E emprestável a pessoas de bem. quando quiser já sabe onde pode vir bater: são cerca de 2000 LP e o dobro de cd.
Á sua disposição

josé disse...

Muito obrigado , meu caro MCR.

Mas...discos emprestados, LP´s ainda por cima, prefiro pedir para gravar.Os discos LP´s originais, para mim, são actualmente obras de arte que se guardam em redomas.

No entanto, para quem tem uma Koetsu, acoplada a um "prato" digno de lhe fazer justiça, a sugestão de empréstimo é reveladora de grande generosidade.
Nunca a minha pobre Audio Technica comprada já em segunda mão ( a primeira foi devidamente limpa do respectivo diamante, pela empregada de limpeza que se decidiu a limpar o pó invisível do "prato". Como a agulhinha se agarrou ao espanejador, está a ver o resultado...)seria capaz de extrair dos sulcos de vinil aquilo que uma Koetsu consegue com uma perna às costas.
E só de me lembrar da diferença sonora e audível,agradeço a generosidade mas declino com o devido respeito ao honorável artesanato japonês e às maravilhas insondáveis do nirvana sonoro.

Quanto aos cd´s, a diferença com o mp3 parece ser mínima em alguns casos. Em todo o caso, depara-se-me um maná, actualmente, na net e em lugares como o apontado.
Há dezenas de beneméritos que se deicidram a pôr em linha álbus e álbuns de toda a música disponível nos sótãos.

Imagine que um destes dias, consegui baixar em frequência bem audível e aceitável os primeiros EP`s da Filarmónica Fraude. Sim! Um daqueles que tem os Animais de Estimação! Ao fim de mais de 30 anos pude novamente ouvir a voz de uns tipos da minha geração e que me encantaram na minha adolescência e ainda hoje são referência de uma qualidade perdida.
maravilhas da Rede, sem dúvida.

M.C.R. disse...

É uma Kiseky Blue S Velhota já mas que prazer...