24 setembro 2006

Au Bonheur des Dames 32

Modernos, dizíamos
(a propósito dos cinquenta anos do Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra)

O meu caro amigo António Lopes Dias, companheiro de CITAC e de tantas outras coisas, libertou-me de várias dificuldades. Ao escrever um texto extenso sobre os nossos anos teatrais, o que queríamos, o que vivíamos e, acaso, o que éramos libertou-me de tarefa idêntica e seguramente fastidiosa. É que, vejam, jovens companheiros desta aventura ao cimo das tábuas, nada me espantaria mais, a mim, que seguramente tenho a idade dos pais dos mais velhos dentre vocês, que os actuais “citaqueanos” se nos assemelhassem.
Ou melhor: tenho a impressão que à vista dum palco nu, nos percorre a todos ( a Vocês e a mim) um frémito de alegria, de gula, de excitação temperado por essa estranhíssima sensação a que os franceses chamam “trac”, aquela insidiosa angústia que nos revolve a tripa no exacto momento de entrar em cena. Ora aqui está algo que não muda, Moliére seja louvado! Moliére e essas pancadas que marcavam o ritmo aos rapazes e raparigas que no fim dos anos cinquenta se atreveram a montar uma peça de Torga. Modernos, diziam, queremos fazer um teatro moderno. Gil Vicente e os gregos são óptimos mas nós vamos por outro lado. E vamos sozinhos, ou quase, numa cidade que, legitimamente, prestava há anos homenagem ao TEUC e a Paulo Quintela. Mas não nos enganemos! Sem o TEUC, sem Quintela, o CITAC não existiria. Porque o gosto do teatro apanha-se a ver teatro. E nesses anos era o TEUC que víamos. E ao vê-lo, víamos do melhor, do mais inteligente e do mais rigoroso! E por isso mesmo adivinhávamos que sobre a crua realidade das tábuas poderia haver outra linguagem, outro modo de estar, outros e mais próximos autores.
Eu, disto, lembro-me mal. Andava no liceu D João III, vivia numa “Pensão Alentejana”, ao alto da Lourenço de Almeida Azevedo e tinha a má sorte de ser “bicho” em terra de universitários. Valeu-me o João Cabral de Andrade, que já ia no 5º de Medicina e me protegia nas saídas. O João era do CITAC e foi por isso que consegui ver uns ensaios ( quando o espectáculo subiu à cena, já a família me enfiara num colégio lá para os lados de Braga, para ver se ainda salvava o ano. Salvei mas com que tristeza!).
Os rapazes e raparigas do CITAC além de poucos, navegavam naquela Coimbra a contra-corrente: não eram praxistas, frequentavam a Brasileira, discutiam autores estrangeiros e não usavam capa e batina. Ousaram até, oh sacrilégio, editar uma revista de teatro, obviamente chamada “CITAC, boletim de teatro”. E querem saber mais? Cinquenta anos depois ainda se consegue ler!!! Poupo-vos às criticas que os críticos já instalados na praça, crocitaram.
E afinal onde estava o escândalo? Pois na furiosa afirmação de modernidade que aquele percurso já indiciava. Os do CITAC liam Ionesco, Adamov, Beckett Artaud e alvoraçavam-se com o surrealismo, com o teatro do absurdo e politicamente estavam firmemente á esquerda, uma esquerda onde cabia mais gente do que o costume desde os católicos aos sociais-democratas com passagem por alguma gente do pc e descomprometidos variados.
E também isto, esta alegre confusão era novidade numa cidade onde os sobreviventes do MUD Juvenil afrontavam uma direita monárquica e integrista. E também houve quem tentasse trazer o CITAC para posições “mais correctas” mais “linha geral”, mais “realismo socialista”. Baldado esforço: aquele punhado de jovens mostrava-se irredutível.
E isto, acreditem-me, para um miúdo de 16/17 anos que começava a ler Rilke, os franceses da nova geração (Vaillant e companhia) e os realistas italianos, era o máximo... sobretudo numa Coimbra, muito embiocada em capas e batinas, relentos de garrafão, lares para meninas obrigatoriamente bem comportadas, com uma universidade autoritária num pais autoritário e beato onde até para se usar isqueiro era preciso licença camarária. O CITAC era uma ilha, um espaço de liberdade, anarqueirão ás vezes, mas exigente e rigoroso quando se tratava de pôr de pé um espectáculo.
É claro que uma peça que se monta acaba por ter sempre, sobretudo a vinte, trinta, quarenta anos de distancia, um frustrante aroma que depressa se desvanece: a magia do teatro é o efémero duma noite irrepetível porque nas tábuas, na viva respiração das palavras que se perdem contra o quente escuro duma plateia, nada se repete tudo é novo e diferente.
Isto dura há já cinquenta e tal anos? Chiça que velho estou, que velhos estamos!!! Todavia, pensando bem, quando à pressa escrevo estas linhas, sinto-me absurdamente de novo com os mesmos maravilhados dezoito, vinte, vinte e dois anos a mexer no órgão de luzes, a recitar baixinho e para mim a peça que sei de cor, a peça que estou a viver, ali em frente num palco vestido de esperança, de palavras, de palavras vivas, ou seja o teatro em todo o seu esplendor.
Os próximos cinquenta anos vão ser ainda melhores!
Marcelo Correia Ribeiro

Permitam-me que relembre: João Cabral de Andrade, morto em Angola, João Quintela, Isabel Mota, António Caeiro, Vasco Airão, Helena Aguiar, José Tavares Pinto, Fernando Assis Pacheco, meu compadre, António Mendes de Abreu, meu quase irmão. E o Vítor, o Vítor Garcia, argentino duma figa e encenador de mão cheia. Eles gostariam de estar connosco.

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Texto que faz parte do livro colectivo Citac 50 anos (esta danada caixa preta só a murro é que funciona). Aqui se traz á freguesia incursionista porque não só se duvida que estejam dispostos a arriscar 25 € num livro líndíssimo mas muito virado para a comunidade coimbro-teatral mas também porque pode ocorrer que o livro esgote antes de aparecer nas livrarias mais à mão. Tiragem modesta, coleccionadores e amigos, enfim o costume. Entendi que sendo eu desta casa com o mesmo entusiasmo e alegria que sou do CITAC e de mais meia duzia de ajuntamentos igualmente não fungíveis aqui o deveria pôr, uma vez publicado.

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