07 setembro 2006

Au Bonheur des Dames nº30

No céu de Nova Iorque: Um lenço? Um pássaro?
...te sentirás acorralada
te sentirás perdida o sola
tal vez querrás no haber nacido...*

Conta-me a Luísa Felix que numa janela das torres gémeas havia alguém que acenava desesperadamente um lenço branco. Provavelmente, lá, daquela altura desconforme, acompanhava o aceno com um pedido muito simples “tirem-me daqui”, daqui, deste centésimo andar coroado de fogo, longe dos homens e mais longe ainda da mão de Deus.
Pouco a pouco, continua a Luísa, os acenos foram sendo menos fortes, mais calmos quase, mais cansados de certeza. Até que chegou um momento em que cessaram de todo e o lenço soltou-se da mão e, serenamente, lentamente, veio por aí fora, caindo desse andar esquecido pela piedade. Com uma graça leve, revoluteava sustido pela brisa do Hudson ali tão perto e quem o viu pairar entre as ruas Vesey e Murray pensou numa pomba perdida ou numa gaivota aturdida pelas sirenes dos bombeiros, pelo crepitar das chamas, pelos gritos da rua.
E, ao contar-me isto, o rosto da Luísa era uma pedra dividida ao meio pelo parco sol outoniço que, pela esquerda, vinha da janela do café onde num domingo, onze dias depois, nos encontrámos. O João Félix enterrava os olhos e o bigode numa chícara de café e eu tentava suster pela enésima vez uma lágrima teimosa e quente.
Tínhamos os três estado em nova Iorque e, por várias vezes, comentado as respectivas viagens, juráramos regressar a uma terra que o nosso comum amor ao cinema e ao jazz tornara também nossa. Até já conhecíamos três ou quatro sítios em “downtown” onde se podia tomar um café verdadeiro, dos nossos, mais espuma que líquido, enfim, uma bica, um cimbalino como por cá se diz. E havia, depois, um rosário de recomendações que iam desde o hotel, barato e bom, até ao pequeno restaurante italiano no village que, segundo a Laurinda Simas, servia a melhor “Sachertorte” a oeste de Viena (de Áustria!).
Há muitos, muitos anos, quarenta provavelmente, um amigo trouxe de França uma edição poche de “Paroles” de Prévert. E o primeiro poema que nos leu, numa tarde de praia e vento na figueira, foi o “Barbara” que tem esse verso único e terrível “quelle conerie la guerre”. E, entre todos nós, em idade de carne para canhão, nesse ano difícil de mil novecentos e cinquenta e nove, ressoou longamente a litania “rappelle toi Barbara”, e termos acabado um pouco mais cedo a nossa adolescência. Dois anos depois, a “conerie” instalava-se e ameaçava-nos a todos. Alguns morreram numa terra africana tão desconhecida como inútil e os que ficaram recordam-nos aliviados e envergonhados por estarem vivos.
São estes mortos que agora nos vêm bater à porta de mistura com outros, muitos outros, desde uma basca chamada Yoyes até um menino palestino agarrado a um pai desesperado que, coincidência fatal, pede a paz e a vida por um telemóvel igual aos que se usaram nas torres. E tão inútil como esses...
Ainda ninguém sabe porque se atacaram as torres, ou melhor, ninguém consegue perceber o efeito útil do ataque. Milhares de mortos, de sessenta e tal nacionalidades, o dobro dos órfãos, provam o quê? Que a America também se abate? Para isso bastava uma bomba na estátua da Liberdade! Para extirpar o grande satã das terras santas de Meca e Medina? Deixem de usar dólares! Para vingar os mortos da Intifada? Parem um só dia a retaliação! Ou matem os matadores!
Os mortos das torres nem sequer representavam o capitalismo triunfante ou a desregulação dos mercados e a exploração desenfreada dos recursos do planeta. Na esmagadora maioria, e logo pela manhã, nas torres só estavam empregados subalternos das empresas aí instaladas. E ascensoristas, mulheres da limpeza, contínuos. E turistas ansiosos por ver a cidade desde aquela imensa altura. Não morreu um único capitão da indústria, um banqueiro, sequer um guru das novas tecnologias. O capitalismo continua intacto, eventualmente mais forte. Em contrapartida, a nossa liberdade vai ser reduzida, os nossos passos e as nossas opiniões vão ser mais seguidos. Virá o tempo em que analistas de olhos frios prescrutarão as intenções mais subtis deste papel que enfim consigo escrever e poderão ver nele uma ameaça ao sistema, um recado de Alá, de Yhavé ou de uma qualquer outra divindade vingativamente justiceira.
Paralelamente há-de haver por aí um compagnon de route dos deserdados e oprimidos que censurará em nome da história e dos amanhãs radiosos, este degenerado que se comove com a morte dos ricos em vez de perpetuamente chorar o destino dos pobres. E explicará, uma mão num Evangelho apócrifo e nobelizável, e outra a tapar as fossas comuns dos gulags, dos laggers, do primeiro, segundo e terceiro mundos, as raízes deste gesto vil mas compreensível à luz dos olhos cegos dos autoproclamados defensores da nova ordem internacional.

Perdoname
No sé decir nada más
pero tu comprende
que aun estoy en el camino...*


(*José Agustin Goytisolo)

Este texto que aqui dou não é original: publicou-se num jornal de pouca expansão e já desaparecido em 11 de Setembro de 2002. Terá merecido honra idêntica num jornal de província, mais propriamente Castelo Branco em data desconhecida porque nunca o vi. Entrego-o agora, à leitura generosa dos confrades e leitores porque, apesar do acima dito, ter a vaga percepção que este escrito continua a ser actual e, na medida do possível, justo. Será porventura muita prosápia minha mas continuo, vários anos depois, a identificar-me com o que aqui escrevi, como de costume numa penada, com mais emoção do que razão, mas que querem?, fui assim feito e já há não mezinha que me endireite.
Na altura (cerca de um mês depois dos acontecimentos) ofereci-o (e a oferta mantém-se) aos meus amigos Luisa e João Felix
que são, como mais uma pequena ruidosa e alargada caravana de pessoas generosas, meus amigos, o mesmo é dizer o sal da terra.

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