Longa viagem com Rilke
O prometido é devido. Enfim se a promessa comoveu alguém, caso contrario perdem-se aqui o tempo do leitor inocente e o destoutro, impenitente. Ou por outras palavras o primeiro passa a penitente e o autor desta a chato de serviço. Esperemos que não.As leitoras que até aqui chegaram hão-de ter lido o belo poema de Rilke aí mesmo em baixo. E se o “postei” (raio de palavra mais mal amanhada, credo!) foi por várias razões. À uma gosto dele. Depois, começa o Outono (em Munique parece que está já começado com a Oktober Fest. Conhecem? Ai não conhecem? Pois não tem nada que saber: a magnifica cidade é invadida por um milhão de bebedores sequiosos que durante um par de dias não farão mais nada senão beber e mijar, ou mijar e beber, como queiram. Milhões de litros da bela cerveja bávara passarão pelo conduto desta gentuça e desaguarão nas ruas, praças e jardins da capital bávara sob a forma pouco atraente de Harn (der Harn). Espectáculo tão fora de sentido quanto essas pífias queimas das fitas que hoje se usam. Os verdadeiros bêbados, que os há, os bêbados elegantes e pundonorosos piram-se para paisagens mais amenas, deixando estes bárbaros à solta.
Lá me perdi. Já é má sina. Estava aqui a falar das razões porque postei o poema do Rilke. Faltava-me uma razão mais sentimental: há muitos, muitos anos, penava eu no sétimo ano do liceu, encafuado num colégio como interno, tive a sorte de passar uns dias de férias em casa da tia Néné, já aqui bastamente celebrada, e do tio Marcos. Ora este tio era homem de qualidades várias, todas de primeira. Era amável. Sabia ensinar (era professor), amava (e nunca uma palavra desta densidade foi tão bem empregada) a poesia e gostava de a dar a conhecer. Vai daí emprestou-me para durante o inverno me servir de viático os “poemas” de Rilke, dois volumes, da Coimbra Editora, tradução maravilhosa de Paulo Quintela. Edição bilingue!
Eu era um rapazola triste e infeliz por ter de aturar aquela fradesca prisão colegial – e só quem andou nesses hediondos sítios sabe o que é um colégio interno. E então naquele tempo de negrume! A verdade é que comecei aplicadamente a ler o Rilke e vai daí resolvi copiar os dois volumes para um caderno, vários cadernos, por entretanto ter sabido que era livro difícil de arranjar pelo menos para o parco bolso de um estudante dos liceus. Copiei linha a linha, poema a poema, todo o Rilke, versão Quintela. Durante anos, soube de cor algumas dezenas de poemas. Graças a este viático a prisão colegial foi menos sentida. E também, graças a este primo amore, fiz amigos em Coimbra, entre eles o Assis e o Alegre também rilkeanos tesos.
Nunca fui capaz, apesar de ter estado por duas vezes na Alemanha, no Goethe Institute, de ler o poeta no original: o alemão que aprendi não dava para cavalarias destas, como sabem todos quantos se atreveram com o estudo do alemão. A malta lá vai falando, consegue ler os jornais populares, percebe o que se diz na televisão, nos filmes e bonda. Para a grande poesia, é preciso mais. Todavia, em conhecendo os poemas, volta e meia consegue-se perceber um diseur alemão que os recite.
Ora, e última razão, foi o que me sucedeu numa belíssima tarde estival na pequena cidade de Wiesloch, onde eu estava a comandar um grupo estúrdio e divertido de artistas do Norte de Portugal acolitados por alguns funcionários da Delegação Regional de Cultura. Convém dizer que os ditos funcionários pagaram a viagem de seu bolso e aproveitaram os dias de férias a que tinham direito (naquele tempo éramos assim: pobres, honrados e, pelos vistos, completamente parvos). Eu não: estava em representação oficial da pátria madrasta o que significava que as ajudas de custo a que tinha direito não davam sequer para pagar o hotel quanto mais a comidinha... Felizmente, os nossos hospedeiros, sabendo ou não, destas vergonhas, ofereceram-nos casa e comida, o que me permitiu inverter a miséria das ajudas em prendas a todos eles.
Ora na casa onde arribei, a casa do presidente do pequeno círculo cultural de Wiesloch, ouvi certa tarde o famoso “Gott es ist Zeit...” com que se inicia este poema. Dei um salto, bradei no melhor alemão possível: porra! é o Rilke!!!, e os meus hospedeiros ignorantes do português vernáculo, ficaram abismados por um bárbaro meridional lhes conhecer o Poeta. De facto a rádio ou a televisão, já não me lembro, debitava, na sala, algo sobre Rilke com poemas à mistura. Nós estávamos no jardim à conversa mas o meu guincho pôs a Frau Bergtolt aos pulos. Que culturrra! Ach, diese Portuguiese... und so weiter... Foi num salto aos discos e por força queria oferecer-me um belo exemplar com poemas de Rilke. Achei que não, o disco pelos vistos estava esgotado mas pedi-lhe o favor de me gravar uma cassete. A senhora, que já me tinha em alta conta, mais espantada ficou porque, segundo ela, um alemão, teria logo aproveitado a sua estouvada liberalidade. Claro que copiou o disco para uma cassete, oferecendo-ma e contando nos poucos dias que ainda lá permaneci, esta gloriosa façanha a todas as pessoas amigas. O meu prestígio saiu reforçado e julgo que o da pátria também.
Mal sabia o tio Marcos (e já não terei tido oportunidade de lhe contar) como o seu cuidado em educar um sobrinho, relapso mas amador de versos, havia de ter tão boas consequências. Menos ainda saberá (lá onde está) que esse livro que me emprestou me salvou da solidão três longos meses. E da tristeza! E da infelicidade!
E dá para esquecer a bebedeira colectiva destes dias. A Alemanha não é só borracheira e nazis, que diabo!
As leitoras e leitores que fizeram o favor de me acompanhar poderão apanhar este Rilke, mais Brecht, Goethe, Hölderlin, Nelly Sachs, Georg Trakl, Nietzsche e outros, muitos outros, duas mil e quinhentas páginas de poemas, na Gulbenkian, Obras Completas de Paulo Quintela, volumes II, III e IV (traduções). Ainda por cima os volumes são baratos. Apressem-se, corram, não deixem os da Gulbenkian desconfiar que estão a vender ao desbarato, grande poesia, grande literatura e muito, muito amor. E alegria, muita, também.
9 comentários:
Meu caro:
Deixe-me ser iconoclasta. E diletante também, como garbosamente me apresento.
Não conheço a poesia de Rilke como a conhece, na origem germânica e de sentimentos subtis.
Mas o que Rilke transmite, pelo exemplo supra, é uma noção facetada de fases da vida com cores do momento.
Não entendo alemãe, o que é uma das maiores lacunas que sinto na minha educação humanística. E chegava-me saber o suficiente para poder ler a Der Spiegel. Desconfio que mesmo assim, não chegaria aos calcanhares do bestunto rilkeano.
Mas...desconfio que os nossos sentimentos de homens e mulheres não variam assim tanto com as latitudes e por isso, a paleta se sentimentos difusos que se podem apresentar ao leitor não deve superar as tonalidades que se podem ler em autores portugueses bem portugueses.
Desconfio apenas que a saudade,a ausência, a idade e o Outono real e simbólico, podem muito bem ter ficado escritos por aí, em poesias de antanho, com ressonâncias da nossa língua.
E agora, aqui para nós, acha mesmo que a tradução do poema de Rilke que colocou acima, está assim muito bem feita?!
Olhe...deixe-me ser mesmo iconoclasta: não está. As palavras portuguesas não deviam ser aquelas e a sintaxe das frases podia ser outra.
Mas isto, como disse, é um diletanto a falar.
Pus o poema pelas razões que aduzi, provavelmente bastante sentimentais.
Não é o maior o melhor poema de Rilke mas também nem V nem eu falámos disso, Penso contudo que um bom poema e, creia-me, gosto desta versão de Quintela. Provavelmente não o traduziria assim mas continuo a achar que assim está(muito) bem.
A questão de ler alemão é esta: entre o falar comum e a maioria do escrito não popular há um forte abismo. Claro que se eu tivesse persistido no Goethe Institut chegaria lá ao Spiegel e aos livros dos melhores autore. Só que... teria sido bom, quando regressei ter ao menos uma televisão em alemão. E na altura ainda não havia o satélite, quanto mais o cabo.
confrontei as traduções de quintela com as dos outros poucos tradutores. confesso que o quintela continua, a meu estrito ver, a ganhar por pontos, E mais: anda por aí muita tradução do alemão via contrabando francês, espanhol e inglês... Um dia destes valerá a pena levantar este pássaro bisnau, com tempo, com tempo lá chegaremos.
finalmente e sobre poemas e outono: não conheço mas tenho a certeza que os haverá cá tão bons quanto este, é uma questão de procurar, assim de repente não me lembro mas que os deve haver restam-me poucas dúvidas.
Por ultimo dilettante, se o meu italiano ainda vale é amador, o que ama. Acha pouco, caríssimo Amigo?
Um post de memória e sensibilidade.
Gosto. Muito.
Abraços,
Silvia
Quem agora não tem casa, já não vai construí-la.
Quem agora está só, longo tempo o será, fará vigílias e lerá, escreverá longas cartas
e vagueará, de cá para lá, nas alamedas,
agitado, quando o vento arrasta as folhas.
Não conheço Rilke, mas gosto do Outono, associo-o à tranquilidade dos finais de tarde.
Quem agora não tem casa, já não vai construí-la.
Quem agora está só, longo tempo o será, fará vigílias e lerá, escreverá longas cartas
e vagueará, de cá para lá, nas alamedas,
agitado, quando o vento arrasta as folhas.
"Quem não tem casa, agora, já a não vai construir.
A quem está só, será longo o tempo, de vigílias, de leituras, a escrever cartas longas e a vaguear, de cá para lá, nas alamedas,
agitado, quando o vento arrasta as folhas."
Mal por mal, preferia assim.
É a grande vantagem da poesia: abrir portas e janelas numa parede muda, num mundo inexistente, povoar a solidão de palavras e encontrar uma resposta em leitores. Obrigado Mar(cia) obrigado "grande leitor" José. Vocês acabam por dar razão a Rilke, Quintela, ao Tio Maecos e a mim, tendo também vocês inteira razão:
Dificil? Não! Poético.
Mais outro forte obrigado: assim vale a pena continuar impenitentemente a escrever aqui, nesta mesa redonda de gente que amenamente conversa. E para isso fazem falta todos: os que estão e os que lêem e que às vezes não se atrevem a intervir. É pena porque de certeza eles trariam muito e bom palpite.
Conto consigo José: V. é o pior tipo do mundo porque me obriga a dar às meninges que nem um galego. V. é o melhor adnvogado do diabo (ou de algum deus goliardo que nenhum grego inventou).
A leitora Mar(cia) é, para um nado e criado em Buarcos (nado é um modo de dizer, como já expliquei alguma vez), um oásis, uma promessa de rede bem carregada para quem anda nesta faina, empoleirado num bote virtual à mercê de ventos e marés.
Que a voz desta Mar... seja seguida de muitas outras: as mulheres, dizia Mao, são metade do ceu.
Menos ideólogo e mais novo direi: são três quartos do céu. E nós tanto precisamos desse "um pouco mais de azul..."
Caro MCR:
Só há relativamente pouco tempo descobri as suas incursões no terreno minado das traduções. Invejo-lhe a sorte em ter de lidar com as palavras, mas não invejo as angústias que isso provoca. As alegrias, sim, também me alegram. Porque as deve haver.
Quanto ao problema das traduções, já uma vez aqui falei nisso, é quase sempre um problema de cultura sólida e de habilidade criativa.
O O´Neill devia ser um tradutor fantástico. Não sei se o era. O Pacheco, Assis, também. V. o poderá dizer, pois teve a grande sorte de o conhecer.
Um exemplo concreto e que apontei há uns tempos:
Na tradução de um livrito de bd do LuckY Luke, chamado originalmente Psicanálise para os Dalton, foi agora traduzido como Os Dalton vão ao psicólogo...e muitas frases do francês, aparentemente simples de traduzir, traem a intenção original e modificam o sentido da tradução original,para mim mais correcta e perfeita. Mesmo que a actual esteja paresentável e sem erros, falta-lhe aquela chama criativa do génio tradutor: o que chama do texto original, o espírito criador da invenção que nos entusiasma. Nesses casos raros, a tradução às vezes é uma nova criação, sem traição. Antes pelo contrário.
Falamos de textos literários, claro.
Ou de textos populares, de bd, com as suas onomatopeias.
Pum!Pum! Bang! Bang! Tzziiiimm...
Nota-se agora na escrita corrente de jornais, o uso de onomatopeias importadas do inglês, principalmente.
A mim, pouco me ferem o ouvido, mas seriam música se fossem adaptados como os brasileiros o fazem. Esses é que são os génios da tradução para português popular que dá gosto ler.
Nos velhinhos livrinhos de cóbóis, apareciam as personagens do Disney ( agora é "da" Disney) e algumas delas tinham nomes incríveis e de uma criatividade extrema.
Repare só nesta maravilha:
João Bafo-de-onça. O pinguim Paulinho. Os pilantras. Os metralhas. Zé Carioca: Tio Patinhas.Pato Peninha. A maga patalógica. Margarida, etc etc.
A editora Abril abriu novos mundos ao mundo das palavras em português.
Popular.
Ah mas os brasileiros são de um génio criativo, imaginativo e repentista único no mundo, ou quase: estou a lembrar-me de vários negros de Moçambique que conheci, populares ou quase, modestos, se calhar incultos, mas duma genialidade nas alcunhas e na descrição de situações que nem lhe digo nem lhe conto.
A minha Avó Aldina nada e criada nas Huilas do nosso descontentamento era, por influencia das criadas que lá terá tido e que em boa parte a educaram, outro génio das alcunhas e da descrição. até a desgraça conseguia pintar de furta cores!
A minha mãe segue-lhe os passos de tal modo que a Crazy Grazy chora de tanto rir durante os longos conciliábulos que ambas têm longe do meu ouvido. Devem dizer que estou gordo, que sou um preguiçoso, que isto e que aquilo, mas consigo ouvir a voz sempre séria da mater dolorosa e as gargalhadas súbitas da minha meia metade... Fico furioso mas que hei-de fazer se mesmo aqui por cima disse que as mulheres erem 3/4 do ceu?
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