06 setembro 2006

O tempo esse grande simplificador 3

Louvor e simplificação de um carteiro
que desistiu de entregar correio

oferecido ao Exº Sr. Dr. Coutinho Ribeiro
carteiro de outros e vultuosos méritos
pelo recoveiro do Foco


Um carteiro do doce pais do spaghetti, entendeu lutar contra o sistema, metendo na formidável máquina do Estado omnipotente, o seu pequeno grão de areia. Poderia ter pegado num par de litros de gasolina e numa caixa de fósforo e deitado fogo a uma mata próxima da via Appia; poderia ter carregado um carro velho com botijas de gás, muitos pregos, um relógio despertador e mais uns quantos artefactos fáceis de arranjar e enviar tudo aquilo contra o Quirinale ou San Pietro in Vaticano e bum!; poderia escrever duas cartas anónimas à Ornela Mutti ameaçando revelar ao mundo que ela (impossível sonho de tantos anos atrás!) era de facto um travesti chamado Bernardo e antigo amante do onorevole Andreotti, encarregado pela N’dranghetta napolitana de vigiar-lhe os passos e suavizar a política anti-crime da antiga Democrazia Cristiana de fraca memória.
Poderia, com mais trabalho, mais combustíveis e provavelmente mais cúmplices carrear para o Vesúvio combustíveis e provocar uma erupção terrível como a que sepultou Pompeia, cidade pecadora por excelência como se pode comprovar pelos lupanares que se revelam impudicos aos olhos do turista ingénuo.
Enfim poderia pôr açúcar na gasolina do Ferrari onde corre esse gajo que ganha tudo e provocar um desastre, uma derrota, uma explosão, desfazendo a carripana o piloto e alguns elementos do respeitável público como outrora em Roma os émulos de Ben Hur faziam quando se zangavam.

Fez qualquer coisa dessas? Não. Matou alguém? Não consta. Roubou valores, enriqueceu à custa alheia, pregou algum susto às doces velhinhas que à tarde vão tomar ruidosamente uma tisana ao Caffè Grecco na Via Condotti, atacou acaso as prostitutas que noite pós noite, deambulam pela via Cavour e enquanto esperam um cliente se encomendam a um santo amigo, ali mesmo na quarta grande igreja da Cristandade, Santa Maria Maggiore, que estende a sua sombra protectora pela pobre humanidade que se assoma ao seu adro?
Nada, sempre nada!
Por junto o nosso carteiro, pobre e pequeno Robin Hood em luta contra o sheriff de Nothingham moderno (ou seja o presidente dos CTT italianos) entendeu não distribuir todas as cartas que por mister havia de entregar. Provavelmente, guardou com ternuras de mamma italiana as cartas com tarja preta, anunciando lutos tremendos, desgostos amargos, arrependimentos tardios (lá se foi o Peppino e eu que já não lhe telefonava há anos!...), igualmente desviou do seu triste e utilitário destino cartas comerciais, anúncios exagerados, propostas irrecusáveis que um monte de empresas enviava aos pobres tansos encontrados numa lista telefónica. O que estes terão poupado em sonhos impossíveis, em despesas incomportáveis, em angustiadas respostas, em calafrios ao pagar a centésima “cambiale” devida pela compra de um artigo inútil, caro e feio. Terá igualmente desviado citações de tribunais, sempre ameaçadoras para quem as recebe, idem do fisco, meu Deus o fisco italiano é quase tão perverso, porco, feio e mau quanto o lusitano. Pior: é mais eficiente! Finalmente, que eu não pretendo fazer aqui a lista exaustiva da correspondência desviada (note-se desviada e não destruída) que se encontrou em casa deste combatente da liberdade contra o monopólio estatal da distribuição de cartas, terão sido postas a bom recato cartas de desamor, rompimentos de promessas de noivado, lancinantes apelos de maridos traídos, soluços de mães solteiras abandonadas por sedutores que de Mastroianni nem sequer um Marcello teriam, frenéticos apelos de colegiais internas aos cantores da moda italianos que de S. Remo lhes prometem pão amor e fantasia mas que de mais perto só lhes querem uma coisa, que eu por pudor não digo, e depois não te vejo nem te conheço.


Querido Confrade Carteiro do Marco: não se envergonhe, não se amofine nem se exalte com a façanha deste seu colega transalpino. Louvemos-lhe antes a paciência beneditina de guardar numa casa que não há-de ser grande (lá como cá o pessoal afecto aos correios não nada na abundância!) esses milhares de quilos de cartas, postais, telegramas, tudo atado por fitas de nastro de várias cores, por dia mês e ano (suponho, claro) pronto a reentrar no circuito caso se verificasse a sua necessidade, cartas que, repito, ninguém terá reclamado ou só alguns mais mesquinhos mais nariz no ar, mais exigentes que não perdoam a um postino italiano o direito ao dolce far niente.
O tempo ou a sua passagem simplificam tudo mesmo as cartas urgentes.
Receba um abraço forte, deste seu colega mais velho em coimbrice menina e moça risonha e recoveiro (amador) do Foco.


PS: obrigadinho por ter dado um jeito ao meu texto abaixo. Ou antes : grazie tante

3 comentários:

o sibilo da serpente disse...

Eheheheheeh. Notável!

josé disse...

Belissimo.
Io chi ho visto il Papa a Santa Maria Maggiore, e ancora participato nelle messe del Corpus Domini, mi piace moltissimo questi ricordi.

Grazie tante.

O meu olhar disse...

Adorei este seu texto MCR!