13 outubro 2006

Diário Político 29

A liberdade não passou aqui

Temo-me que este vá ser um texto melancólico. E isso apesar do prémio Nobel da literatura ter sido atribuído a Ohram Pamuk um turco de Istambul, um escritor talentoso, um homem de coragem e de princípios. Claro que o prémio é político, quase sempre o foi quer pelas escolhas quer pelas recusas. Mas, uma vez isto sabido, vale a pena verificar se o prémio cai num escritor digno de o receber. E Pamuk é-o com certeza. Também o eram Amos Oz, um israelita critico, ou Adonis, um grandíssimo poeta libanês. Porventura seria este, em termos literário-políticos o que mais deveria recebê-lo. Mas a Academia sueca a tanto não chega, não chegará nunca. Têm medo, e o medo guarda a vinha. Poderão não dar o prémio a um judeu mas não se atrevem a enfrentar o poderoso lobby judaico atribuindo-o a um libanês, mesmo que este seja um poeta admirável e não tenha quaisquer relações com o Hezbollah ou outras bizarrias. Portanto a aposta no autor turco ganhava em várias mesas, sem sequer ofender a Turquia apesar de Pamuk já ter escrito sobre o morticínio arménio e sobre a questão curda. Aliás e desde há muito que alguma atenção se dava aos autores turcos. O problema é que na sua maioria eram muito à esquerda do que a Academia sueca está disposta a tolerar. Lembro Yasar Kemal, de quem se conhece entre nós, “Memed, o meu falcão” para já não referir o enormíssimo Nazim Hikmet.
Mas não era exactamente de literatura que eu vinha falar. Não que não valha a pena mas porque num diário que se intitula político não deve ter lugar central. Todavia a notícia do Nobel caiu no mesmo dia em que a Assembleia Nacional Francesa entendeu votar uma lei estúpida, aberrante e claramente perigosa na sua exemplaridade. Doravante quem afirmar que não houve genocídio arménio responde en tribunal e presumivelmente será condenado visto que a negação do genocídio é qualificada como crime. E vejamos como é que se votou esta lei. Mais de metade dos parlamentares saíram do hemiciclo para não a votar. Os restantes mesmo assim entenderam votar a referida lei. Só por isto já a coisa cheira a esturro. Mas há mais. Um dia destes, um qualquer outro lobby que não o arménio resolve propor uma lei que considere crime a negação da figura histórica de Jesus, Maomé ou Buda. Ou entende propor ao areópago uma lei que considere o “Terror” francês um crime conta a humanidade. Ou a Restauração. Ou a Comuna de Paris. Ou o mistério da Santíssima Trindade. E por aí fora. A propósito da Shoa e da perseguição ás teses negacionistas já aqui se terá dito que é lei burra e celerada. Porque nem permite a discussão entre os que falam de Holocausto e os que o negam. Em resumo não se permite que pela força dos argumentos históricos ou outros se convença o adversário da sua falta de razão.
Legiferar sobre a História é um exercício ridículo, arriscado e finalmente sórdido. Enfim, é lá com eles. Ou se calhar não. Imaginemos que um cidadão português se atreve a dizer que a comunidade arménia foi sempre a quinta coluna dos russos (brancos, vermelhos ou czaristas pouco importa) e que por isso criou no seio da Turquia, atacada por todos os lados (até pela Grécia...) um foco perigoso de instabilidade política que poderia levar (como aliás houve um projecto) à desaparição da Turquia dividida em protectorados. E que sabendo disso, os turcos de Mustafá Kemal seguiram os passos dos seus antepassados que viviam sob as ordens da Sublime Porta. E que os arménios foram perseguidos pelo sobressalto nacionalista dos turcos cercados e a ponto de se verem perdidos. E que as operações de afastamento dos arménios enfim.... E publica tudo isto num jornal, num blog, num livro. E um cidadão francês lê e indigna-se. E aproveitando o facto do autor temerário se passear por Paris para ir até ao Moulin Rouge ver o can-can o denuncia. E as autoridades interpelam-no e um jovem juiz de instrução aplica-lhe a lei com todo o vigor. E etc...
Ou estoutra hipótese: nos finais da 1ª guerra mundial, a Grécia sob a direcção de Venizelos entendeu atacar a Turquia, invadindo-a, ocupando Esmirna e alcançando zonas interiores da Anatólia. Posteriormente os turcos sob o comando de Ataturk contra-atacaram derrotaram os gregos numa série de batalhas, expulsando-os de todos os territórios ocupados e só parando na fronteira devido às ameaças dos anglo-franceses. A esta humilhante e estúpida derrota seguiu-se uma onda de refugiados gregos dos territórios onde desde os princípios da história tinham vivido (se alguém quiser ler um bom romance sobre o tema tem: “Cristo recrucificado” de Nikos Kazantzakis), fugiam obviamente dos turcos, viajaram em condições atrozes e deixaram milhares de mortos pelo caminho. Suponhamos agora que se considera que isto esta deslocação forçada de populações configura uma tentativa de genocídio sobre os gregos da Turquia... Ou que as multidões turcas que abandonaram a Grécia pela mesma altura sofreram das mãos gregas e ortodoxas os mesmos tratos de polé e que isso é também uma tentativa genocídio. Ou mais perto geográfica e temporalmente: o milhão e meio de alemães sudetas expulsos no fim da guerra pelas autoridades checas, entre vexames (acaso merecidos, mas inúteis e cruéis na altura da derrota) assassínios, roubos e violação de mulheres, que os houve e muitos, foram ou não alvo de uma tentativa de genocídio? E a ordem de Churchill á aviação aliada para bombardear sistematicamente alvos civis da Alemanha nazi, Hamburgo, Dresden e as restantes cidades num total que ultrapassa o milhão e meio de civis mortos, foi acaso um genocídio? E a ocupação do hinterland dos Estados Unidos com a consequente desaparição dos nativos?
Eu, pobre de mim, não quero ocultar a história horrível e infame dos desgraçados arménios, dos infelizes judeus, dos ciganos (de que ninguém fala, claro et pour cause...) ou de outro grupo humano que por motivos de raça, cor ou religião foi barbaramente atacado. Quero mesmo falar disso, vezes sem conta como falo da guerra de Espanha e das vítimas republicanas de Franco. Quero poder continuar a escrever sobre a bondade dos budistas ou a maldade dos muçulmanos whahabitas, atrever-me a pensar e discutir sem condenar o meu adversário a uma multa, á uma prisão ou a uma fogueira. A propósito houve ou não da parte dos portugueses uma tentativa de genocídio contra os crentes judeus? Estão a ver para onde nos querem levar?
Apetece dizer como Maurice Clavel (20 de Dezembro de 1971) na televisão: Messieurs les censeurs bon soir!
O que estas escreve, não tem a elegância do escritor e resistente citado, pelo que lhe prefere o bon mot de Cambronne: Messieurs les deputés, Merde!

2 comentários:

C.M. disse...

Embora com as “fronteiras” bem definidas acerca destas “questões”, certo é que este texto, na sua mestria, é bem revelador da triste história da humanidade, do mal que nela entrou mas que, assim creio, um dia será vencido.

Talvez importuno, todavia não queria deixar de colocar aqui um pequeno comentário, pois que este texto não nos deixa, (nem pode deixar) indiferente!

(Também subscrevo o «bon mot de Cambronne »: Messieurs les deputés, Merde!)

jcp (José Carlos Pereira) disse...

Totalmente de acordo, caro dOliveira.