O lento e imprevisível percurso da semente
Porque é que uma pessoa é como é? Que alquimia misteriosa lhe deu origem? Não falo da origem física, isso já todos sabemos, ou presumimos saber, vai-se a ver e um dia destes com tanto gene, tanta DNA, tanta mitocôndria, ainda enlouquecemos mansamente antes de sabermos como foi que aqui nos puseram.
Falo de outra coisa a que um cavalheiro chamava a “circunstância”, isto é aquilo que nos distingue tão poderosamente como os palavrões de há pouco, o DNA para não ir mais longe. A maneira como pensamos, como reagimos, como sentimos. Ou mais concretamente, e neste caso meramente pessoal, e com a exígua importância que terá: Porque é que este cavalheiro de meia idade é, ou presume ser, de esquerda, se é que a palavra não ofende ouvidos sensíveis ou sequer levanta logo a tempestade dos que hoje em coro afirmam a sua inexistência ou, pelo menos, a sua não importância, esquerda ou direita são modas, e pronto já está, não se fala mais disso. A criatura que estas vai dedilhando no computador, um tanto ou quanto ao acaso (sei lá como é que isto acaba, olha no que me meti, mcr, juízo, pá, muito juízo, já não tens idade para estas coisas, cala-te e deixa andar, estás a meter-te em cavalarias altas de mais para as tuas fracas competências), sabe bem quais os seus limites mas persiste em afirmar-se de esquerda e jura que há uma direita ali mais para o lado e que entre ambas há diferenças e de peso, que são visíveis a olho nu.
Mas a verdade é que de há quarenta e muitos anos a esta parte venho-me sentindo de esquerda. Mais precisamente desde o ano de 1958, ano do Humberto Delgado e dos primeiros e formidáveis movimentos de massas a que pude assistir.
E tudo começou, em Braga, por um incontrolável burrice policial: de facto, com mais uns colegas de liceu, eu tinha ido ao cinema ver “A ilha ao sol” (do Robert Rosen com Harry Belafonte e Dorothy Dandridge, dois actores negros que deram que falar). Ora à saída um pelotão da polícia carregou sobre os inocentes espectadores e praticamente atirou-nos para uma avenida onde milhares de pessoas esperavam a pé firme pelo candidato Humberto Delgado, manifestando-se ruidosamente contra a polícia.
Até essa data, o meu pensamento político carecia das octanas mínimas para sequer dar à embraiagem. Mas as cacetadas policiais, acrescidas à história de amor e racismo do filme, deram-me num ámen todas as justificações necessárias para me sentir do “reviralho”. Isso e o facto de estar numa instituição chamada “internato anexo ao liceu” que era como o nome indica uma prisão para alunos liceais. A única de resto e que eu saiba, em todo o pais. Tinha que ser em Braga, claro. Valha a verdade que também fui expulso de lá por, em pleno refeitório, ter ferrado dois bofetões com muita alma e mais energia num energúmeno que me estava a dar cabo do juízo. Infelizmente a família meteu-se e fui readmitido até ao fim do ano escolar.
O restante tempo liceal, passado sempre em locais altamente vigiados, forneceram-me não uma teoria política mas, pelo menos uma praxis anti-sistema: eles eram padres, eu ateu, eles não nos deixavam pôr o pé em ramo verde, e nós fugíamos acrobaticamente por janelas e muros altos. Eles eram a autoridade e nós as vítimas. Nos intervalos, descobri que para sair de vez em quando do colégio com autorização, bastava ser sócio da Juventude Musical. Alistei-me logo. E para espanto meu comecei a gostar da música que por lá se fazia. E pelo teatro que entretanto também me permitiam ir ver desde que mostrasse o bilhete. E assim entre música clássica, Teatro Experimental do Porto e livraria Divulgação (posteriormente Leitura) comecei a frequentar um meio onde imperava a esquerda intelectual. As minhas desordenadas ideias sobre o mundo, foram-se organizando, com base em leituras em algo de mais sistemático. O mundo começava a ser percebido de outra forma. Os pobres continuavam pobres mas havia um fio lógico nessa pobreza.
Claro que, antes disto, algo teria acontecido (e aconteceu): eu venho de uma terra piscatória onde o meu pai era médico. Os clientes pagavam pouco e mal e a desoras. Ou nem pagavam porque não tinham dinheiro. Acho que o principal meio de pagamento era em espécie: pescador paga em peixe que pescou e que o mestre da lancha ou da traineira lhe atribui a título de caldeirada. Filho de pescador anda descalço ou de tamancos (Eu estou a falar dos anos quarenta). Filho de pescador vai à escola, faz a terceira classe e já está. Filho de médico faz a quarta e vai para o liceu. Isto poderia (nos romances pode sempre, claro) ter despertado uma consciência social numa criança sobredotada que faz tirocínio para Kim Il jong ou outra criatura do mesmo jaez. Todavia eu era apenas um mcr trivial e pequeno, que lia Júlio Verne e Emílio Salgari, pelo que não me caiu em cima nenhuma iluminação.
Mesmo em Moçambique, para onde parti aos treze anos e onde fiz o 2º ciclo dos liceus, não era fácil adquirir uma “consciência social” nesses verdes anos. A minha preocupação era a puberdade e os seus efeitos, o universo feminino e os seus mistérios, a autoridade paterna e os seus malefícios. E todavia, durante esses anos verifiquei que só havia dois rapazes negros no liceu Salazar, e um deles era o Joaquim Chissano meu colega de turma do 3º ao 5º ano; e que os negros eram criados, operários, camponeses mas nunca doutores ou engenheiros. E que viviam nos bairros do caniço e não na cidade de cimento. Mas o mundo era assim, ninguém protestava, criticava, sequer comentava. No Norte, no último ano da minha estadia em Moçambique, íamos muito para o “mato” visitar amigos do meu pai ou parceiros de bridge, o que vinha quase a dar no mesmo. Então aí o “branco” era um senhor. E os “pretos” nem português falavam. As pessoas mais avisadas aprendiam um pouco de makua e lá se aviavam. Os outros nem isso. E foi numa dessas terras perdidas no Norte, em Morrupula, para ser mais preciso, que vi, pela primeira vez um castigo colectivo: as culturas do algodão estavam atrasadas e o chefe do posto (e só lhe omito o nome porque sou amigo do filho, excelente pessoa e homem honrado) disparou para os cipaios do posto: kuekuero nesses grunhos filhos da puta. O kuekuero era uma espécie de raquete feita de borracha entrançada que doía que se fartava no lombo e rotundidades dos flagelado. O crime do malandro era o seguinte: deveria cultivar uma determinada parcela de terra com algodão que depois era comprado pela “companhia algodoeira”. A companhia assegurava-se da boa vontade do chefe de posto mediante um pequeno suborno e pagava a habitual miséria ao cultivador. Para quem não saiba o algodão é uma cultura que empobrece a terra (já de si pouco fértil) e obviamente enquanto se cultiva algodão resta pouco tempo para fazer a machamba de mandioca, milho e outras coisas comestíveis. O que encarece esses produtos básicos. Mais: em regimes de plena agricultura de subsistência, as culturas industriais são uma violência e servem, quando servem, para arranjar o dinheiro suficiente para pagar o imposto (talvez alguém recorde o “imposto de palhota”; para o efeito serve.). Ou seja a civilização ocidental e a economia de troca por intermediação da moeda entravam nestes cafundós ao mesmo tempo que o abuso e o castigo físico. A segunda coisa, vista com estes que a terra há-de comer, foi a inspecção sumária dos futuros trabalhadores “contratados”. Recordo apenas como se fazia o despiste da lepra, endémica em todo o norte de Moçambique. Queimava-se o peito do candidato com um cigarro. Se não reagisse teria lepra. Mas não é contra isto que falo. Ao fim e ao cabo toda a gente se queima uma vez ou outra. E mais vale despistar a lepra que deixá-la correr. Aqui o problema era o “contrato”. De facto os contratados iam normalmente trabalhar para as grandes companhias agrícolas, as mais das vezes longe, muito longe, da terra deles. Iam por todas as razões, boas ou más: para arranjar dinheiro para o lobolo a pagar ao pai da futura mulher, porque tinham dívidas, porque o chefe do posto mandava (ganhando a percentagem paga pelo engajador etc...). O regresso à terra costumava ser tardio não só porque o sistema funcionava a favor do empregador mas também porque o empregado devia continuamente dinheiro àquele por adiantamentos para vestuário ou alimentação, sistema de resto não exclusivo das sociedades coloniais. E regresso tardio significa, além da juventude perdida, filhos tardios. E significa também, mas disso ninguém gosta de falar, destribalização forçada sem substituto sociológico á altura, doenças venéreas contraídas durante o contrato, ou seja a entrada na modernidade pela porta das traseiras e com direito a tiro no intruso.
Mas tudo isto era algo que eventualmente eu já consideraria injusto mas que não tinha ainda consciencializado. A adolescência, a primeira adolescência não é terreno fértil para preocupações de ordem política ou social sobretudo se pertencemos a uma classe privilegiada, como era o caso. Todavia, a memória disso, existia e a seu tempo influiria nas escolhas de vida e de acção. O terreno estaria semeado mas ainda não chegara o tempo da colheita. Deixemo-la para os próximos capítulos.
Em nota: suscitei –e alegro-me – um debate que me parece sério e civilizado. Creio que irá continuar tendo sobretudo em conta dois dos argumentadores que mais achegas trouxeram ao anterior “bombordo”: José e “O Hóspede”. Bem-vindos e obrigado. E outra nota só: eu acho o dr. Salazar e o seu autoritarismo caseiro e aldeão profundamente detestáveis. Só não lhe chamo fascismo por questões de pura definição. Mas que era parecido, muito parecido (ou até uma imitação tosca e lusitana) ai lá isso era.
4 comentários:
Temos muitas dúvidas acerca da pretensa falta de qualidades de Souto Moura.
Como exemplo temos este comentário de Ricardo Costa no Diário Económico e que poderá ser melhor visualizado lá no Blog
"Há uma insustentátevel leveza em todas as frases e actos do ainda Procurador Geral da República. A entrevista que deu ao “Sol” e as frases ditas na apresentação do seu livro (com o curioso nome “direito ao assunto”, o que só pode ser uma fina ironia), mostram um homem que faz o seu auto-retrato perfeito e que acha tudo normal.
Penso que não vale a pena perder muito tempo em analisar todos os “casos” de Souto Moura, desde as frases surrealistas sobre Carlos Cruz ou Herman José (o célebre “pode ser”), até à incompetente decisão de colocar uma carta anónima de um louco no processo da Casa Pia (com acusações ao Presidente da República!) ou à diligente forma com que a Procuradoria acabou com a carreira política do líder do maior partido da oposição, numa investigação incontinente."
Comentário: ao princípio chateava-nos ler tanto comentário ao envelope 9. Especialmente quando os diversos textos mais pareciam um concertação monocórdica. Mas analisando melhor, começam a divertir-nos. Manifesta-se Ricardo Costa Contra “a incompetente decisão de colocar uma carta anónima de um louco no processo da Casa Pia”. Ora se o jornalista tivesse o cuidado de ler a entrevista a Souto Moura, veria que a incompetente decisão não foi da responsabilidade do PGR. Como Ricardo Costa pode constatar na entrevista por ele próprio mencionada e, aparentemente não lida, Souto Moura afirma “esta carta nem foi o MP que a meteu no processo, foi o juiz de instrução”. Curiosamente Souto Moura também afirma “a campanha desproporcionada que depois se fez mostra bem aquilo a que estamos sujeitos”.
Quanto ao "louco" que escreveu a carta …
Continua RC" Mas o “envelope 9” merece ser analisado uma última vez. Souto Moura e muitas pessoas que trabalham na área da Justiça teimam em dizer que os oito meses que demorou a dar uma resposta ao Presidente da República são absolutamente normais.
O argumento do PGR é este: não há processos de primeira, as investigações demoram o seu tempo, o caso era complexo e a PGR tinha que ter tudo pronto para descobrir eventuais acusados."
Comentário: O argumento do PGR, que pode ser lido na página 33 do suplemento do SOL é “ao ouvir certos jornalistas falarem do caso, sou levado a pensar que nem o último comunicado leram. Claro que o inquérito acabou por durar oito meses – mas, como me fartei de repetir, a investigação do MP estava pronta em dois meses. Não tenho culpa que a defesa tenha interposto um recurso que só baixou do Tribunal da Relação no passado dia 13. Ou seja, em oito meses, seis não são da responsabilidade do MP. Sabem … não há pior cego do que aquele que não quer ver.”
Continua RC "Só que não foi nada disto que Jorge Sampaio lhe pediu. Sampaio conhece a lei e sabe que um pedido dele não acelera um processo. Mas sabe que o Presidente da epública tem o direito (e o dever) de pedir explicações ao PGR sobre um processo que (uma vez mais) o envolvia directamente e divulgava centenas de números de telefone pessoais.
O ex-Presidente queria, apenas, saber como é que era possível que uma folha de Excel ficasse à vista de todos num processo tão complexo. E a explicação para isso descobria-se (como se descobriu) em meia dúzia de dias e outras tantas diligências.
Mas Souto Moura sabia que Jorge Sampaio nunca o poderia demitir: estava na última semana de mandato e as acusações de “vingança” do PS seriam difíceis de gerir para um Presidente em final de mandato. Com este calendário e com estas circunstâncias tudo correu nos célebres oito meses. Sampaio ficou sem resposta e o Procurador ficou com o lugar."
Comentário: Se “Sampaio conhece a lei e sabe que um pedido dele não acelera um processo”, porque exigiu que as “averiguações estejam ultimadas a curtíssimo prazo”?
Se “Souto Moura sabia que Jorge Sampaio nunca o poderia demitir” porque demorou oito meses a revelar algo que se descobriu “em meia dúzia de dias e outras tantas diligências”? Sem que a sua teoria tenha mais explicações por parte do seu autor (Ricardo Costa), ela não faz qualquer sentido. E para agravar ainda mais essa falta de sentido, o PGR estava desejoso de sair.
E depois há este pequeno e delicioso pormenor que Souto Moura menciona na entrevista: “Cheguei a ter gente aqui às onze da manhã e sair de casa às 17 Horas e ainda estavam sentados no passeio, à minha espera. Vi-me pressionadíssimo. E quem não me largava a porta era quem depois me criticava por dizer coisas que não devia”.
Não duvido da razoabilidade do seu comentário mas confesso que me intriga: o dr SM é um individuo mediocre de que não desejo ocupar-me. E o meu texto nem de perto nem de longe possibilita um comentário destes que nenhuma ligação tem como que escrevi.
Meu caro MCR:
Há um livro de Joseph COnrad,que deu um filme interessante nos anos setenta: Apocalipse Now, de Copolla.
O livro relata uma viagem "ao coração das trevas", por um rio acima, na guerra do Vietnam e segundo diário de um viajante combatente.
O que acabamos por entender, em livros grandes, é por vezes mais do que o autor nos quis dizer. Esse livro concreto, aliás, pode ser uma metáfora de outras realidades que passam além das guerras de guerrilha.
Este seu texto, para já, vai seguindo um paradigma cronológico, e que a meu ver assenta bem como uma viagem rio acima ( ou abaixo), com paragens esplêndidas em paisagens descritas em tonalidade que suscitam admiração.
E estes seus textos despertam outra ideia: e se eu mesmo tentasse dizer porque é que sinto as coisas de outro modo, embora sitonize com o seu modo de dizer?
Se tiver tempo e engenho, vou tentar o paralelismo, noutro blog cuja administração me pertence.
A sua opção ideológica, como adivinhei, é muito mais tributária da razão que a razão desconhece do que outra coisa que seja um pouco mais racional.
E no entanto, a minha também- mas nem tanto assim, como tentarei dizer.
Até depois- que vou pensar nisso.
yhntbx
Qualquer leitor de Conrad (e sobretudo do "Coração das Trevas") é bem-vindo. Força, avante com esse projecto que lerei (e comentare) com gosto. De certeza.
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